“…A geração do meu pai foi a geração da guerra de África. Pessoas como o meu pai, provincianos, rurais, nada sabiam da política, não pensavam no Portugal multicontinental do regime. Mas estiveram disponíveis quando foram chamados para as comissões africanas, porque acreditavam em velharias como o dever e a sobrevivência …”[1]
1. Introdução
Ao correr da pena, e das recordações, indicarei o que me parecem ser as linhas de força da atuação dos militares na chamada Guerra de África e alguns êxitos dessa intervenção.
Em paralelo, referirei o que se me afigura terem sido as opções do poder político e o modo como, na minha perspetiva, essas opções desbarataram as possibilidades criadas pelo vetor militar.
Neste texto não há lugar para a análise do que se me afigura empiricamente poder concluir-se: a atuação do vetor político, antes e depois da Revolução de Abril, soçobrou por ter uma abordagem ideológica e não realista dos interesses de Portugal e do contexto em que os mesmos podiam ser prosseguidos: da Índia a Timor, passando pelas colónias de África.
Não é de estranhar, por isso, que do vetor militar saísse a “solução” possível: a mudança do poder político.
Pretendo, com as reflexões que seguem sobre “o mérito do vetor militar” na sua participação na Guerra do Ultramar, distinguir as possibilidades e diversa intervenção dos políticos e dos militares na Guerra do Ultramar, abrangendo todos os nossos conflitos militares nas antigas terras do Império, ou seja, “além-mar”.
O que engloba tanto aqueles que tiveram um carácter de “guerra subversiva”, designação que explicita do que efetivamente se tratou nos teatros de operações de Angola, Moçambique e Guiné, como os que não chegaram a desenvolver-se em prolongados conflitos armados com intervenção Portuguesa: Índia e Timor[2].
Aquela foi uma guerra de libertação para os movimentos que lutavam pela independência. Para os militares Portugueses foi, sobretudo, uma guerra subversiva, para a qual prepararam uma doutrina de ação que lhes permitisse cumprir a específica tarefa que lhes estava cometida: possibilitar, pela contenção da força a negociação política.
Escassamente o tema foi tratado na ótica que proponho – o modo como as Forças Armadas cumpriram a sua função, em contraponto com a atuação do poder político. Pelo contrário, na minha perspetiva, a ação dos militares Portugueses é analisada, na maioria das vezes, desenquadrada do tempo em que atuaram, em sentido negativo, se não mesmo culpabilizante, com a escassa absolvição[3] que a Revolução de Abril por vezes lhes concede.
Por evidente, não se torna necessário explicitar que os militares também cometeram erros mas, reconhecê-los e admiti-los, impõe dilucidar o âmbito da sua missão e reconhecer os êxitos e os fracassos: implica discernir a sua função.
Mas, os militares não são o País, e deste se trata, sobretudo da sua orientação política, o vetor político que condiciona, delimita e superintende sobre o vetor militar.
E são os militares, no sentido de Portugueses chamados a servir nas fileiras das Forças Armadas, de uma geração que é a minha, descrita no artigo de Pedro Lomba que citei, por sinal muito bem escrito, que aborda os seus dramas com objetividade, profundidade e grande sentido construtivo. Limito-me a respigar um outro pequeno trecho: “Foi uma geração imensamente disponível, batalhadora, dividida, na ditadura e na democracia, na guerra e na paz, e hoje talvez continue a ser isso tudo, só que com mais amargura e desencanto”.
2. O Vetor Militar
2.1. O início do conflito
O Vetor Militar foi em África o único que se antecipou ao conflito e se preparou atempadamente para a missão que poderia vir a ser chamado a cumprir.
Relembro que o Chefe do Estado-Maior do Exército – na altura, o General Luís da Câmara Pina – se inteirou da situação localmente, em Angola, já em 1958 e, após o regresso, determinou que fosse estudado o problema, quer em termos de pessoal, para eventual necessidade de reforço, quer quanto às necessidades de material. Ficou célebre a elaboração de um “plano rolante de munições” para três anos[4].
Foi graças àquele planeamento de antecipação que foi possível fazer deslocar para Angola, no segundo trimestre de 1961, seis Batalhões de Caçadores (cerca de 3000 homens) e, uma vez rececionados em Luanda, encaminhá-los para o Norte em muito curto prazo de tempo. O que evidencia um planeamento atempado, pormenorizado e conhecedor da situação. É certo que falamos de armamento ligeiro e equipamento reduzido ao mínimo necessário. Porém, com as condições suficientes para desenvolver o combate, uma vez chegados à zona de ação.
Não se pretende esquecer que a missão começou a ser cumprida com grandes dificuldades, nomeadamente no que respeita aos abastecimentos de alimentação (lembrar-se-ão ainda muitos que se centrava sobretudo no feijão, na dobrada liofilizada e, só por vezes, no bacalhau). Com óbvias dificuldades no abastecimento direto em Angola, logo ao nível de produtos frescos, supridos, sempre que possível, pela caça. Particularmente difíceis as ligações de correio, determinantes para o moral dos combatentes, ou os fornecimentos de tabaco[5].
Porém, as Forças Armadas conseguiram enquadrar, num tempo curtíssimo – entre Fevereiro e Junho de 1961 –, o enorme número de mobilizados sem anterior preparação militar, organizar o apoio logístico que permitiu desencadear as operações a vários milhares de quilómetros de distância e assegurar o controlo mínimo do território onde tinham ocorrido os massacres de Fevereiro.
Apesar das dificuldades, há que salientar duas questões no tocante ao apoio logístico em Angola:
2.2. A ação desenvolvida
2.2.1. Os primórdios
Angola foi um paradigma para os outros Teatros de Operações, já que a experiência aí obtida, adaptada às diversas circunstâncias, foi essencial em Moçambique e na Guiné.
O grande desafio dos transportes estabelecia também a maior diferença. Os movimentos logísticos em Angola assentavam em colunas auto pesadas, complementadas pelos meios aéreos militares.
Em Moçambique, em consequência dos rios dividirem o território transversalmente, tornando impossível a ligação do sul, onde eram desembarcados os meios, ao norte, onde eram necessários, foi utilizado um sistema diverso assente em meios aéreos e diferentes níveis de ligações[7].
2.2.2. A necessidade de dispor de doutrina militar adequada
Todas as guerras têm as suas particularidades próprias, sendo que as Forças Armadas estavam apenas preparadas para a eventualidade de uma guerra convencional, que tem muito pouco a ver com a guerra subversiva. Mas, também aqui houve o cuidado de colher um mínimo de ensinamentos sobre o assunto, especialmente no que concerne à ação psicológica, tendo sido enviados alguns observadores à Guerra da Argélia.
No regresso trouxeram elementos de consulta que foram utilizados para preparar os quadros e organizar duas publicações sobre “Guerra Subversiva”, publicadas logo em 1961 e 1962, intituladas “Guia para o Emprego Tático das Pequenas Unidades” e “Apoio das Autoridades Civis”. Em 1966, foram editados cinco volumes sob a designação genérica “O Exército na Guerra Subversiva”[8].
Estes pequenos livros mereceram a atenção dos Exércitos do Brasil, de França e até dos Estados-Unidos. Em abono da verdade, deve dizer-se que os três Teatros de Operações produziram e difundiram abundante doutrina militar.
De salientar o papel que, nesse domínio, teve o Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), tanto internamente, no âmbito das Forças Armadas, como na formação de quadros civis, nomeadamente, nos finais de sessenta e princípios de setenta, com pequenos cursos de “Acção Psicológica” orientados para os mais altos funcionários da Administração Pública.
Não resisto a referir um episódio paradigmático num deles ocorrido. No encerramento, em Maio de 1972, presidido pelo Chefe do Estado-Maior do Exército, na altura o General Andrade e Silva, este alertou os presentes (e cito de memória) “para serem portadores da mensagem, junto dos seus chefes, de que o Exército já tinha aguentado doze anos de guerra, mas não sabia se tinha condições para aguentar muito mais. E terminou, dizendo que a guerra tem de ter uma solução política e não militar”[9].
2.2.3. Ação psicológica interna e externa
2.2.3.1 Os militares
Uma dimensão não despicienda foi a da ação psicológica, tanto no sentido de manter elevado o moral dos combatentes como no de obter o apoio das populações indígenas.
No sentido de manter o moral das tropas elevado, era de enorme relevância a operacionalidade dos correios[10], único contacto possível com as famílias, e a organização de eventos de entretenimento.
Neste campo, tornando presentes, junto dos combatentes, os familiares e amigos, foi de excecional importância a atividade desenvolvida localmente e na Metrópole pelo designado e bem conhecido Movimento Nacional Feminino (MNF), talvez um dos aspectos em que o vetor político na dimensão inter-
na teve êxito.
Uma das suas muitas iniciativas consistia na entrega aos militares, pela via do comando, dos aerogramas, também conhecidos por “bate-estradas”, porque não pagavam selos, mas só eram enviados nos aviões militares. E, assim, chegavam quando calhava… O MNF também organizava tournées de artistas que percorriam normalmente as sedes dos batalhões, dando espetáculos e convivendo com os militares. Eram formas de amenizar a vivência nos quartéis.
2.2.3.2 A importância da população
Em guerra subversiva, a adesão da população é vital.
No começo do conflito a maior parte da população de origem europeia ou africana do norte de Angola fugiu largando casas e haveres. Ou para as cidades, a europeia, ou para a mata, a africana, porque também os nativos foram vítimas dos ataques sanguinários.
Por isso mesmo, quando os militares portugueses chegaram, as sanzalas eram uma desolação e não foi difícil convencer os combatentes da prioridade de criação de condições para o regresso das populações.
Para isso, eram excelentes as condições de que dispunham os primeiros batalhões[11], com um médico por companhia e um capelão por batalhão[12].
O apoio sanitário e social conseguiu que muitos dos foragidos regressassem, o que aconteceu em muitos lugares do norte. Uma sanzala que ficava nas imediações da sede do meu batalhão, em 1961, estava totalmente deserta à data da chegada do comando do batalhão, e menos de meio ano depois estava completamente habitada.
Mas vínhamos tratando da necessidade de obter a adesão da população às forças de contra-subversão, o que nem sempre era fácil em resultado das ameaças dos combatentes que se nos opunham, isto quer se tratasse de Ango-
la, Moçambique ou Guiné, pelo que se tornava necessário acautelar os contatos, porque a sua presença era importante pela vantagem de dispor de informações e de guias para as operações.
2.3. O epílogo
A inexistência de solução política e a impossibilidade de solução militar de uma guerra subversiva foram desgastando o País e as Forças Armadas[13].
A partir de dado momento era óbvio que a Guerra de África não podia continuar. Essa certeza teve a sua expressão na revolução de 25 de Abril e no grito que logo após surgiu: “nem mais um soldado para as colónias”.
3. O Vetor Político
3.1. O início do conflito: a situação externa
A Segunda Guerra Mundial e o apoio que, nela, os países europeus tiveram de muitas das suas colónias africanas, fizeram com que estas, finda a Guerra, exigissem a concessão da independência e não aceitassem formas mitigadas de integração com as metrópoles, o que acelerou as situações de independência no continente africano. Senão, vejamos a evolução do panorama político das independências no continente:
Independências que respondiam aos desejos de auto-determinação, à semelhança dos países colonizadores – especialmente pelas elites africanas que neles se haviam formado –, e às exigências de obtenção do retorno do esforço de guerra em que tinham participado, como já antes referido.
Papel fundamental assumiram políticos africanos como os líderes nacionalistas Jomo Keniatta (Quénia), Nkrumah (Gana), Senghor (Senegal) e Houphouet-Boigny (Costa do Marfim).
Independências que beneficiavam de um fator antropológico e sociológico – nas colónias africanas não tinha havido a prática da mestiçagem característica das colónias americanas do sul – e de um fator macro-político: o continente africano era cobiçado por cada um dos blocos que se enfrentavam na “guerra fria” (o soviético para expandir o comunismo[14]; o norte-americano para ganhar os novos países para o sistema capitalista).
Ou seja, o contexto favorecia politicamente as independências e, no terreno, os movimentos de libertação dispunham de apoios consideráveis de cada um dos blocos, às vezes de ambos, para além do apoio logístico, de bases e de acolhimento de que dispunham dos novos países independentes e fronteiriços.
3.2. Os movimentos associativos
Por outro lado, após o início da libertação das colónias africanas, surgiram na cena internacional dois movimentos associativos que, fundamentalmente, tinham como principais finalidades suprir ou minorar as dificuldades dos países recém-independentes e apoiar os movimentos de libertação (nessa altura, já eram as possessões portuguesas as únicas que estavam em causa, para além dos regime de apartheid nascidos das “independências brancas”).
Um Movimento exclusivamente africano – a Organização da Unidade Africana (OUA), criada a 25 de Maio de 1963, na capital da Etiópia, Adis Abeba, por iniciativa do imperador Hailé Selassié – e integradas por trinta e dois países africanos[15].
Eram vários os seus objetivos, à data da constituição, mas apenas salientamos dois, mais direcionados para Portugal:
Nos seus cinquenta anos de existência, a OUA não conseguiu regular nenhum dos conflitos com que se foi deparando. Porém, foi muito importante o seu papel na descolonização de África, como grupo de pressão junto da comunidade internacional e no apoio direto aos movimentos de libertação.
A outra associação, mais abrangente, liderada pela Indonésia, Egipto, Índia, África do Sul, China e Jugoslávia – O Movimento dos Não-Alinhados[16], proclamava-se distante dos dois blocos da Guerra Fria, mas defendia as lutas nacionais pela independência, a oposição ao colonialismo, ao imperialismo e ao neocolonialismo.
Mencionamos estas duas Associações porque foram dois atores a considerar em relação aos nossos conflitos em África, já que, politicamente, eram interlocutores importantes no panorama internacional, quer individualmente quer pelo peso que representavam na ONU, onde tinham um eco que Portugal não obtinha.
A atuação política de Portugal centrava-se mais na ONU, embora também na OTAN, em ambas com grande insucesso. O isolamento político de Portugal quase só se atenuava pela participação na OTAN, embora com restrições, pois não nos era permitido utilizar materiais que estivessem afetos à organização[17].
Sinais claros que só não via quem os não queria ver e que tiveram dois caminhos diferentes: os ingleses concederam as independências constituindo a Commonwealth, de países independentes sob a égide ou influência do Reino Unido; a França formou a Comunidade Francesa com idêntico objetivo e mantém ainda hoje pacíficos territórios de além-mar. Quanto a Portugal, nenhum passo foi dado pelo vetor político e o mínimo consenso foi sendo cada vez mais substituído pelo confronto e pelo distanciamento.
3.3. A ação desenvolvida
No vetor político, a determinação evidenciada pelo famoso “Para Angola rapidamente e em força” não foi acompanhada de uma análise estratégica dos interesses envolvidos e do modo de os prosseguir.
Depois da falta de preparação de uma solução que evitasse o desencadear do conflito armado, o arranque inicial era inevitável face à brutalidade dos acontecimentos.
Mas, posteriormente, o que aconteceu a nível do vetor político? A interminável discussão, na ONU, sobre a situação das colónias Portuguesas e a sua apregoada excecionalidade no concerto das Nações[18]. O debate era recorrente e os esforços diplomáticos escassamente conseguiam algumas abstenções, nomeadamente de algum dos países com direito de veto no Conselho de Segurança.
Ou seja, repetia-se a falta de visão da realidade, nomeadamente quanto à multirracialidade e à multiplicidade de culturas no interior de uma única Nação e de um consenso de convívio.
E seria tanto assim? De forma nenhuma. Bastava conhecer minimamente o que se passou em África após a Segunda Guerra Mundial, quanto às sucessivas independências, para ter como essencial uma vontade política de encontrar uma solução realista no quadro das reivindicações de auto-determinação. Realista na substância e no “timing”, pois tinha de atuar em curto prazo de tempo, já que, atempadamente, nada tinha sido feito. No final da década de sessenta, a esperança do encaminhamento para uma solução viável e consensual desapareceu com um golpe que fez abortar todas as esperanças – a chamada Abrilada, conduzida pelo Ministro da Defesa Botelho Moniz.
A radicalização do sistema político português tornou-se cada vez maior e excluiu toda a hipótese de solução diversa da ligação a Portugal. Assim se pôs de parte o princípio básico de que todas as guerras subversivas apenas têm uma solução de natureza política. O vetor político em Portugal passou a esperar a solução do vetor militar.
O uso da força que deveria ter como objetivo conseguir tempo e espaço para que o poder político agisse, onde só ele o poderia fazer[19], tornou-se uma finalidade em si mesma, ao serviço não da criação do espaço para o consenso mas do esmagamento de um dos contendores.
3.4. O epílogo
A radicalização política e a ausência de soluções tornaram inevitável a mudança a esse nível que apenas foi conseguida pela via do golpe de estado, depois do fracasso da Primavera Marcelista e da ala liberal.
Após a revolução a radicalização ideológica e, sobretudo, o denominado efeito “panela-de-pressão”, levou a que a descolonização fosse a possível e, após ela, demorou tempo para que com os novos países fosse restabelecida uma relação que, para o melhor ou para o pior, nos une. E o dilaceramento das comunidades de origem europeia expresso no drama dos retornados é bem expressão do falhanço do vetor político.
4. As Guerras do Ultramar, o 25 de Abril e a Democracia
Termino como comecei, transpondo o texto do jornalista Pedro Lomba: A minha geração “foi a geração da guerra de África”, a geração que fora habituada a cumprir o dever, que ignorava o que era África e o que aí se vivia.
Foi a geração que aprendeu na guerra, que esta não tem em si sentido, que viveu dividida entre o cumprimento do dever e a lucidez dos erros, que se insurgiu contra uma política cega com a qual foi confundida no âmago dos sacrifícios que fez: os combates em África.
Por isso se culpam por vezes os combatentes de prosseguirem objetivos políticos quando tiveram o sentido do dever e da missão, muitas vezes com consciência das situações que não correspondiam à política apregoada.
Só em casos residuais haveria alguma ideologia à mistura com o cumprimento do dever, situação que se foi alterando com a reflexão dos quadros permanentes e o aumento muito significativo de quadros milicianos, patente na Revolução do 25 de Abril de 1974.
Por isso, a adesão à revolução foi de imediato tão espontânea e entusiástica, envolvendo o povo e não apenas as elites. O povo sem conotação política, mas que sentiu na carne a ausência de liberdade, o peso de uma guerra sem perspetivas e a vacuidade da ideologia que a sustentava e sacrificava as gerações a uma guerra sem fim.
Acabaram por ser os militares a solucionar os conflitos e a criar as condições para levar a cabo a descolonização, num clima de exaustão e de inexistência de alternativas políticas.
A descolonização correspondeu à explosão da panela-de-pressão que estava no seu máximo, explosão incontrolada e incontrolável.
Nessa situação, nada pode ser feito como se desejaria e apenas é possível “limitar os danos”, se houver tempo e vontade para o fazer.
Ainda houve tentativas honestas de definir prazos para efetuar as descolonizações devidamente planeadas, o que veio a demonstrar-se ser pura utopia, com as datas para as independências encurtadas de tal modo que, um ano e meio depois da revolução todos os territórios eram independentes, com exceção de Macau[20] e Timor.
Timor, que nunca tivera uma guerra de libertação, conseguiu a independência mais atribulada, já não de Portugal, mas da Indonésia.
A política de Lisboa pretendeu, desde o início, que Timor não fosse obstáculo à independência de Angola e nada fez para buscar uma solução minimamente aceitável para o território, num contexto geopolítico que pressionava para a integração na Indonésia[21].
Timor não era um problema relevante para a política portuguesa e foi o espelho em democracia da invasão da Índia.
Não fossem os acontecimentos sanguinários do cemitério de Santa Cruz, e a sua projeção obtida na imprensa mundial, a questão teria morrido e Timor seria mais uma ilha da Indonésia.
Na verdade, com caraterísticas inteiramente diversas daquelas das colónias africanas, as situações da Índia e de Timor igualam-se por, diferentemente das colónias de África, ocorrerem num contexto que não é de guerra.
A primeira, nos alvores dos conflitos pela independência das colónias Portuguesas e na pujança do Estado Novo, o segundo nos alvores da democracia e no termo da aventura imperial.
Numa e noutro, sintomaticamente, o vetor militar foi abandonado pelo vetor político, não só na definição do caminho como na concessão dos meios. Numa e noutro, o vetor político não conseguiu definir realisticamente os interesses de Portugal e, consequentemente, não forneceu ao vetor militar aquilo que lhe é próprio e a que está obrigado: a definição do interesse nacional e da estratégia realista para o prosseguir.
Pecado original que vinha da Índia e se arrastou até Timor, cometendo aos militares a solução que apenas a política detinha, culpando-os por ela não ser alcançada ou por nela se terem empenhado. Por isso, ao contrário de outras Nações em que os combatentes foram exaltados, Portugal tem-se empenhado em esquecer, esquecendo-os.
[1] Pedro Lomba, in “Público”, de 20 de Outubro de 2011.
[2] Embora em Timor o conflito armado com caráter de guerra subversiva se tivesse desenvolvido após a cessação de facto da autoridade portuguesa, contra a Indonésia, enquanto potência colonial.
[3] Uma absolvição que é sobretudo esquecimento, «não inscrição» a que se refere José Gil (in “Portugal Hoje – o medo de existir”, Relógio de Água, 2012, v.g. p.16), e menos reflexão sobre a realidade vivida.
[4] Ironicamente os três anos que, sem o sabermos, nos distanciavam da guerra.
[5] Recordo que uma operação com a duração inicial prevista para cinco dias só terminou ao fim de dezassete, quando fomos “prendados” com a chegada de uma coluna de reabastecimento. Entretanto, já tinha sido fumado capim embrulhado em fotografias! E quando chegou a coluna foi ver toda a gente a fumar, era uma autêntica fogueira, embora estivesse muito recomendado para não foguear por estarmos em zona perigosa. A meio do percurso fomos sobrevoados por um táxi aéreo, que largou um pequeno saco que toda a gente pensava tratar-se de correio para o pessoal. Nada disso, transportava o Governador do Distrito de Quanza Norte que nos felicitava por termos ocupado uma vila que tinha sido devastada, com um “Angola é nossa”. Escusado será dizer que os impropérios não se fizeram esperar, pena foi que não tivessem sido ouvidos!
[6] Um exemplo muito elucidativo respeita aos géneros alimentares. Era evidente a necessidade de controle dos géneros enviados para os batalhões, tanto na dimensão de controle de custos, como de reposição de stocks. De início, era uma operação bem complicada e morosa. Todavia, passados três meses, estava organizada e a funcionar com simplicidade: até ao dia quinze de cada mês era submetido a processamento apenas um mapa com os efectivos presentes, os géneros consumidos e respetivos custos relativos ao mês anterior. Enviados para o Quartel-General, a aprovação ou correções eram recebidas antes do final do mês. É conveniente ter presente a morosidade das comunicações que dificultava o cumprimento dos prazos. E a simplificação estendia-se a todos os setores, fossem eles a manutenção auto, as transmissões, etc.
[7] O problema apenas foi solucionado nos finais dos anos sessenta, quando foram recebidos apoios financeiros para estabelecer ligações aéreas em três redes: a primária, que ligava Lourenço Marques à Beira, Nampula e Porto Amélia, com aviões da companhia moçambicana; a secundária, que, com aviões militares médios, estabelecia os transportes dos terminais da rede primária até à sede dos batalhões; daqui, os apoios recorriam a táxis aéreos que ligavam os comandos de Batalhão às respetivas companhias. Foi uma verdadeira “revolução” na mobilidade a que acresciam os acordos realizados com o Serviço de Saúde civil.
[8] Com os seguintes títulos: I – Generalidades; II – Operações contra bandos e guerrilhas; III – Ação Psicológica; IV – Apoio às Autoridades Civis; e V – Administração e Justiça.
[9] O mais alto funcionário presente era o Diretor Nacional de Informação. Estes alertas, por parte do vetor militar ao vetor político, foram-se tornando cada vez mais insistentes. O último já foi a concretização: a revolução de 25 de Abril.
[10] A falta mais sentida pelos combatentes era a do correio, que chegava a grandes intervalos.
[11] O cenário do apoio sanitário e social alterou-se grandemente quando passou a haver um médico por batalhão que não podia acorrer a todos os necessitados.
[12] O capelão combatia as manifestações de feiticismo, em algumas circunstâncias cruéis, e o médico tratava os doentes e os feridos que a ele recorriam.
[13] A degradação da qualidade do enquadramento das unidades foi-se manifestando com o desgaste dos quadros permanentes, os quais, às vezes, nem chegavam a estar na Metrópole durante meio ano e já estavam mobilizados para nova comissão. Consequência desta realidade para o militar e respetiva família? É fácil de concluir quando se sabe que cada comissão tinha a duração de dois anos; e houve quadros combatentes a cumprir cinco comissões, ou seja, dez anos de combate! Tenha-se presente que os militares norte-americanos cumpriam comissões de meio ano no Vietname, para imaginar a dureza da vida do combatente português.
[14] O que foi uma das “bandeiras políticas” brandidas por Portugal nos areópagos internacionais e também para uso interno.
[15] Passou a denominar-se União Africana, a partir de 9 de Julho de 2002.
[16] A Primeira Conferência dos Chefes de Estado e de Governo Não-Alinhados teve lugar em Belgrado, em Setembro de 1961, depois de um encontro preparatório no Cairo. Todavia, a origem do Movimento deve ser considerada a Conferência Ásia-África realizada em Bandung, na Indonésia, em 1955. Nela foram definidos “Os Dez Princípios de Bandung” que deveriam ser observados pelos seus subscritores e por todos que, mais tarde, quisessem aderir ao Movimento.
[17] Por isso a espingarda Mauser foi a primeira e única arma a ser empregue em Angola.
[18] Aqui, há que abrir um parêntesis, relativamente aos nossos territórios, em que os políticos erguiam a bandeira dos portugueses não fazerem distinção de raças, o que, muito embora a segregação racial não fosse nada de parecido com a inglesa, aqueles que constatavam a realidade verificavam que não era bem assim… Os próprios colonos europeus acusavam os militares de desestabilizarem a situação pelo tratamento humano que davam aos nativos.
[19] Será conveniente elucidar que as guerras subversivas nunca foram longas – no máximo sete anos, com os Mau-Mau do Quénia – e que terminaram com acordos de independência.
[20] Macau tinha um estatuto de concessão negociado com a China e passaria a integrá-la nos finais de 1999, consensualmente.
[21] Solução vista com agrado pelos EUA