Agradeço ao Doutor Luís Bento dos Santos e ao Banco Santander Totta a oportunidade e o gosto de participar nesta conferência. A todos cumprimento.
Foi-me proposto que, sob o tema geral de Everything is connected, abordasse de modo mais específico a temática da Segurança e que, desejavelmente, o fizesse numa ótica de modernidade, numa perspetiva de multidisciplinaridade e de interpenetração e articulação de saberes e das respetivas praxis.
A primeira questão é: o que se entende por Segurança?
Há, naturalmente, múltiplas abordagens. Todas legítimas e possíveis. Por exemplo visões de base marcadamente cultural, fundadas no pensamento anglo-saxónico ou latino ou africano e há igualmente um grande pluralismo entre autores. Podíamos falar horas acerca disto. Porventura, de modo inconclusivo.
Para os fins desta nossa sessão, talvez seja interessante reter apenas uma ideia que tenho como fundamental. A de que a noção de Segurança corresponde a uma condição, a uma indispensável condição de vida de uma Sociedade, de um Estado ou de um Ator político. E que, Defesa é o conjunto de ações que visam construir e materializar essa Segurança.
A Segurança esteve sempre ligada a questões como a soberania, a independência e a integridade do território. Questões que refletem valores essenciais e que, por isso mesmo, têm uma marca da perenidade.
Refiro-o porque, induzida por essa razão, há uma certa predisposição e tendência para olhar para a Segurança, para os seus conteúdos e processos, como algo imutável e acima do correr dos tempos.
Permitam-me que invoque Aristófanes, escrevendo 500 anos A.C., e citado por Karl Popper na sua obra “Em busca de um Mundo melhor”:
“A verdade certa sobre os deuses e todas as coisas de que falo jamais
homem algum a soube ou saberá,
se alguém, algum dia, proclamasse a mais absoluta das verdades não o
poderia saber,
tudo está entretecido de conjetura.
..........
Não é desde o início que os deuses revelam tudo aos mortais,
Mas, com o correr dos tempos, procurando, descobrimos o melhor”.
É com esta abertura e este tipo de inquietação positiva que a questão se deve colocar, reconhecendo que todas as fórmulas de Segurança decorrem e atendem aos contextos moral, histórico, político e estratégico em que se inscrevem.
De modo muitíssimo simplificado, como é que a Segurança de hoje lê o Mundo de hoje?
Percebendo-o como um Mundo:
– crescentemente globalizado e interdependente, mas escassamente provido de mecanismos formais de regulação, o que desde logo nos deve alertar para o interesse e mérito dos mecanismos de cooperação;
– com uma crescente multipolaridade geopolítica, embora este parâmetro tenha uma tradução muito singular no que toca à Segurança, o que talvez possamos elaborar no período de debate;
– um Mundo em que, por força das revoluções da eletrónica, da informática e dos transportes, o espaço e o tempo se contraíram fortemente, sendo hoje mais “pequenos” do que alguma vez foram.
De tudo isto resultou uma fantástica e esperançosa aproximação de culturas, perspetivas, expectativas e tendências, definindo um processo que costumo designar como de crescente “unificação da espécie humana”, mesmo sem que seja legítimo ou realista falar, para já, na existência de uma “consciência global”. A meu ver, este é o segundo grande processo unificador do Mundo, apenas antecedido pelo processo de unificação geográfica que nós, portugueses, largamente protagonizámos nos séculos XV e XVI.
Destas alterações resultou igualmente que, do ponto de vista operativo, o Mundo de hoje é uma entidade única, em que tudo ou quase tudo interessa a todos ou a quase todos.
As relações que o percorrem são assim mais abertas e mais próximas num contexto de novos Atores, novos interesses, novas ideias e, consequentemente, novas oportunidades.
Desta unidade do Mundo também resultaram alguns desenvolvimentos negativos, designadamente, associados a novos riscos e a novas ameaças. Porque, seja qual for o sitio da sua origem, desafios como o terrorismo, o crime organizado, a segurança energética ou a ciber-segurança colocam-se a todos e manifestam-se em todo o lado.
Por isso, são desafios transnacionais que devem ser prevenidos e respondidos na origem, muitas vezes à distância das fronteiras nacionais, o que traz necessidades acrescidas de cooperação internacional.
Por outro lado, são desafios assimétricos, isto é, na sua natureza muito diversos dos instrumentos securitários clássicos, obrigando a adaptações e ao empenhamento de novos e diferentes instrumentos de resposta. Este é mais um dos motivos que impõe uma capacidade multidimensional à segurança contemporânea.
Mas, este é também um Mundo que tem como a sua maior constante o paradigma da mudança permanente e rápida, ainda que este enunciado pareça paradoxal.
Com o correr destes tempos, significativamente diferentes e muito acelerados, é mesmo necessário procurar para descobrir o melhor, se posso parafrasear Aristófanes.
Dessa busca resulta a evidência que as coordenadas matriciais da Segurança (soberania e independência) não dispensam novas leituras e que, consequentemente, o modelo clássico de Segurança, no essencial vigente até ao fim da Guerra Fria, tem hoje a sua exclusividade muito questionada. Sobretudo no nosso espaço geopolítico.
O modelo clássico estava centrado no Estado, tinha apenas como objetivos o que antes designei como sendo as suas coordenadas matriciais, implicava a assunção de um inimigo potencial, assentava na expressão coerciva do Poder e estruturava-se fundamentalmente no fator militar. E, quando as capacidades nacionais se revelavam insuficientes, procurava-se assegurá-lo através de arranjos como as alianças, definindo dessa forma uma Segurança dita Coletiva. Exceto no que respeita ao contexto político das alianças, a ideia da cooperação não era aqui muito forte, tal como não estava significativamente presente a necessidade de uma pluralidade de aptidões funcionais.
A realidade contemporânea, o Mundo em que vivemos, impõe um outo modelo. Um modelo de Segurança Cooperativa.
Neste novo figurino, mantendo-se naturalmente as preocupações clássicas, promove-se a abertura a novas expressões de Poder, como a influência e a atratividade. Um Poder exercido num ambiente de interdependência e de intensos fluxos comunicacionais, e tomando como objetivos centrais da Segurança a proteção das vidas, dos bens e dos direitos das pessoas. O propósito de afirmar os princípios superiores do Primado da Lei e da Boa Governança.
A centralidade da Segurança cessa de se resumir aos Estados e passa a referir-se, e de modo crescente, às pessoas.
Consequentemente, o fator militar, mantendo a sua indispensabilidade e importância, deixa de ser o elemento definidor e quase único da Segurança, para se associar, articular e interagir com outros fatores, identicamente relevantes, como o político, o diplomático, o económico, o social ou o cultural.
Subordinado a valores e critérios superiores, este é um modelo intensamente percorrido pelo requisito da cooperação. Na relação entre Atores e na articulação entre agentes. Na conceção e na conduta.
E, se o modelo clássico da Segurança Coletiva tem subjacente uma lógica win-loose, a Segurança Cooperativa procura servir uma lógica win-win, o que é inerente à noção de cooperação que, para ser séria e frutuosa, precisa de ser compreendida e praticada como uma two way street.
Segurança Coletiva contra ninguém e Segurança Cooperativa com todos que a queiram promover e praticar, eis a formulação em banda larga do exercício contemporâneo da Segurança.
Controlar e convencer mais do que derrotar e vencer. E não se controla nem se convence, pelo menos agindo corretamente, se não se reconhece e compreende a pluralidade dos parâmetros, e se não se pode ou sabe agir sobre eles. Os alicerces dessa ação são a multidimensionalidade e a cooperação.
Ainda que possa ser, justificadamente, considerada como excessiva – e a cooperação é mal servida por excessos –, cito uma ideia de John Ruskin, um britânico que fez análise social no final do século XIX e cujo pensamento Ghandi considerava ser a sua principal influência.
Dizia Ruskin que:
“Government and cooperation are, in all things, the laws of the life.
Anarchy and competition the laws of the death”.
No que toca à ideia de competição, sabemos que não é inteiramente assim, mas muito generalizadamente ignoramos, com consequências, aliás, muito nefastas, que competição e cooperação devem andar juntas e que uma boa base de cooperação inspira uma competição mais virtuosa.
Não pode espantar que, tendo as pessoas como objeto central, sendo portanto uma Segurança de base Humana, a moderna Segurança se construa segundo um paradigma de atuação também ele novo, designado como Comprehensive Approach, para o qual ainda não se concluiu uma designação convincente na nossa língua e que, em síntese, pode ser entendido como a ação harmoniosa, convergente e coordenada de todas as dimensões da ação estratégica e política. As dimensões política, diplomática, militar, económica, social, etc., cujo todo não faz mais do que espelhar a complexa unidade da vida social.
É esta a tradução concreta da interdisciplinaridade necessária à praxis contemporânea da Segurança. Uma praxis em que Everything is connected, como se enuncia no mote destas nossas conversas.
Por si só, ela não constitui nenhuma garantia de sucesso, mas quando olhamos para situações como as que, infelizmente, existem no Afeganistão, na Guiné- Bissau, no Haiti, no Sahel ou na Somália, facilmente entendemos que não são resolúveis apenas por processo militar e que só através de uma abordagem em regime de Comprehensive Approach podemos aspirar a construir alguma estabilidade e Segurança. E foi, de facto, por essa via que se conseguiu a pacificação da Bósnia-Herzegovina, do Kosovo e da Macedónia.
São múltiplas as implicações desta nova abordagem, a começar pelo que precisa de ser feito no plano das mentalidades e no plano da formação dos Quadros das diversas dimensões e dos diferentes saberes. Ou quanto à exigência de lideres políticos e institucionais, militares e não só, que entendam este processo e para ele tenham sensibilidade. É um tema extenso e talvez deslocado dos objetivos desta sessão. Por essas duas razões vou poupar-vos.
Voltando, a título de exemplo, ao caso do Afeganistão e independentemente da leitura que cada um faça do maior ou menor sucesso desta intervenção, a ação internacional que ali é, presentemente, levada a cabo é regida por um plano associando entidades tão distintas como as Nações Unidas (NU), a OTAN, a União Europeia (EU), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, agências especializadas das NU e parceiros regionais relevantes como a Rússia, o Japão, a China e a Índia. Um Plano aprovado por todos e que, quotidianamente, todos procuram materializar, coordenando-se e cooperando. Ao que se tem que juntar a presença de uma miríade de Organizações não-Governamentais, relativamente às quais há que saber separar o trigo do joio. Percebe-se que é um Plano muito complexo e nada fácil de coordenar e cumprir, mas só assim se pode aspirar a ser construtivo no caminho da Paz.
Com razoável conhecimento de causa, tenho muita satisfação em afirmar que os militares portugueses estão aptos a agir e a interagir neste contexto, e que o fazem de modo exemplar.
Em jeito de parênteses gostava de acrescentar uma outra ideia que tenho como absolutamente essencial. É uma ideia de uma enorme evidência, mas muitas vezes não compreendida ou então estranhamente negligenciada.
Refiro-me ao facto óbvio de que é indissociável e íntima a relação entre os dois grandes e permanentes objetivos dos Estados; o Desenvolvimento e Bem-estar por um lado e, por outro, a Segurança. E que, por essa razão, só há duas opções para o relacionamento entre esses dois objetivos, ou se prejudicam ou se reforçam mutuamente.
Ao primeiro caso, seja qual for o seu suposto fundamento, corresponde uma errada atitude de competição que torna o Estado disfuncional e fraco, enquanto ao segundo, ao mútuo reforço, corresponde a escolha de uma via de harmonização, de cooperação e de valorização do Estado.
Por razões de escala de afirmação e de natureza própria, a boa prática da nova abordagem da Segurança carece, por regra, de ser feita mediante Parcerias Estratégicas. Entre Estados e, sobretudo, entre Organizações Internacionais, salvaguardando a legitimidade que apenas o Conselho de Segurança das Nações Unidas confere.
Esta doutrina de busca e construção de Parcerias Estratégicas foi pela primeira vez preconizada pela Carta das NU, em 1945, ao ser nela consagrada a possibilidade das NU, em função das suas insuficiências e limitações, recorrerem a organizações regionais para melhor satisfação dos esforços visando a Paz e a Segurança internacionais.
No presente, esta doutrina encontra um reconhecimento pleno e muito nítido nos conceitos de ação estratégica da OTAN, da UE e da União Africana que, juntamente com as NU, que peço licença para insistir, detém o monopólio da legitimidade, enquadram, através de parcerias, a quase totalidade do esforço internacional a favor da Paz e da Segurança.
Dou como ilustração da clara adoção da necessidade e vantagem do estabelecimento de parcerias, a circunstância da OTAN ter, em 2010, atribuído à Rússia um papel de parceiro fundamental.
Mas, no plano da eficácia, maior relevância e maior potencial estão na parceria entre a OTAN e a UE, por ambas considerada como essencial.
A OTAN tem um forte “músculo” militar, é muito pouco expressiva nos planos político e diplomático e nula nos planos económico, financeiro, cultural e social, enquanto a UE é forte em todos esses planos, apenas com a ressalva de que as suas capacidades militares não são, pelo menos por agora, muito exuberantes e dificilmente podem responder a situações militarmente muito exigentes.
Retiro desta manifesta complementaridade a minha profunda convicção pessoal que, mau grado a dolorosa crise de liderança, de visão e de vontade políticas que assola a Europa e a UE, estas duas organizações estão “obrigadas” a entenderem-se e a cooperarem muito intimamente no plano da Segurança internacional.
Para aí apontam, certamente, a sua complementaridade funcional, o facto de vinte e dois países coincidirem como membros de ambas, a sua identidade civilizacional, as responsabilidades históricas e as conexões globais de muitos dos seus membros e a consciência, que se espera, que as alianças dos ricos e mais desenvolvidos saibam ter perante os problemas e os desafios do Mundo.
Isto para não mencionar desenvolvimentos mais concretos, como a recentragem das prioridades norte-americanas na região Ásia-Pacífico e a sua consequente expectativa que os europeus tomem conta do seu próprio continente e também da sua vizinhança próxima, nomeadamente do Maghreb e do Sahel.
Identicamente muito importante à parceria entre a UE e a União Africana, que está especificamente consubstanciada numa estratégia de cooperação entre ambas. Uma estratégia fundada em princípios mutuamente acordados e que, basicamente, visa capacitar os africanos para assumirem a resposta às questões que se lhes colocam e a apoiá-los no combate às suas ameaças e preocupações mais prioritárias, que são a fome, as pandemias, a iliteracia, a carência de infraestruturas e a fragilidade dos seus instrumentos de segurança nas áreas militar, policial e de proteção civil.
É bom ter presente que, embora por regra, sem um nível de violência muito elevado, é em África que ocorre a maioria dos conflitos do nosso tempo. O que justifica a atenção de que África dá ao desenvolvimento de uma Arquitetura Africana de Paz e Segurança, a ser assegurada pelos africanos, mas que só pode ser viável e efetiva com a cooperação europeia.
Ainda no âmbito da EU, é também saliente a cooperação que, no quadro das políticas chamadas de vizinhança, é mantida com os Estados da sua periferia, designadamente com a Ucrânia e com o Maghreb. No caso dos países da margem sul do Mediterrâneo, esta cooperação é um esforço absolutamente obrigatório para que se possa aspirar a maior estabilidade e segurança na região, como é do absoluto interesse da Europa.
A palavra é pois Segurança por Cooperação e mediante o estabelecimento de Parcerias Estratégicas. De modo concreto e não retórico ou platónico.
Naturalmente, sem que isso elimine a observância dos saudáveis princípios do empowerment, isto é, da tendencial apropriação por cada um dos seus próprios problemas e também da subsidiariedade, ou seja, de que as coisas devem ser resolvidas ao mais baixo escalão possível.
Noto, porém, que, quando cada um trata bem e de modo legítimo aquilo que lhe respeita, está também a cooperar muito construtivamente, no sentido em que, com isso, contribui para uma ordem melhor.
Mas, todos os Atores, agindo de modo isolado ou atuando em parceria, carecem de garantir a adequada adaptação dos seus objetivos e práticas às circunstâncias do presente. O que só pode ser feito se esse presente e as suas expectáveis evoluções forem bem conhecidas.
Só assim será viável ajustar, com propósito, figurinos que pareciam intemporais aos novos e exigentes requisitos.
No caso da Segurança, requisitos de cooperação, parceria e multidimensionalidade estratégica.
Sem querer referir-me expressamente ao nosso país, recordo uns versos de Ruy Belo:
“Gostaria de ouvir as horas no relógio da Matriz,
mas esse é o passado.
E poderia ser duro edificar sobre ele o Portugal do futuro”.
Muito obrigado.
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* Intervenção no âmbito do ciclo de conferências do Green Fest, no Centro de Congressos do Estoril, em 3 de outubro de 2013.
Nasceu em Lisboa, em 7 de fevereiro de 1946, ingressou na Academia Militar em 14 de outubro de 1963 e passou à situação de Reforma em 7 de fevereiro de 2011, perfazendo mais de 47 anos de serviço efetivo nas Forças Armadas.
Foi promovido ao posto de General em 6 de Agosto de 2003, quando assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército, que exerceu até 5 de Dezembro de 2006, data em que assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, responsabilidade que deteve até à passagem à Reforma.
Presentemente, é Professor Catedrático Convidado no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, sendo investigador em ambas as instituições.