À memória do coronel Nuno Lousada
Durante muitos anos, os trabalhos lectivos do Curso de Estado-Maior do Exército Português concluíam-se com um período de visitas ou trabalhos de campo para, em condições geográficas reais, os oficiais-alunos darem continuidade e aplicação às matérias aprendidas, em termos de táctica e estratégia do emprego de forças na guerra terrestre convencional.
Entre 1936 e 1939, a evolução da guerra civil em Espanha terá constituído, para os oficiais portugueses do estado-maior, uma oportunidade única de observar “ao vivo” as operações militares terrestres que aí se desenrolavam e as inovações que se praticavam no domínio da aviação de bombardeamento e apoio táctico às tropas no terreno, bem como no emprego de veículos blindados e em outros domínios, mormente por parte dos militares alemães, italianos e russos que aconselhavam ou integravam os partidos em conflito.
Assim aconteceu no final do ano lectivo de 1937, com os oito alunos do segundo ano[1] que, acompanhados por cinco dos seus professores[2], visitaram regiões de Espanha que se encontravam sob o controlo dos exércitos do general Franco, que se haviam levantado contra o governo da República, em Julho anterior. A visita ocorreu entre os dias 15 e 27 de Maio e, obviamente, foi combinada por arranjos diplomáticos junto do governo nacionalista, em Burgos[3] e também, decerto, com a Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha (MMPOE), criada em Março desse mesmo ano[4] e que era, então, dirigida pelo general Raul Esteves[5]. O documento que aqui nos serve de suporte, e principal fonte de informação, é um relatório dactilografado e com abundantes fotografias publicado em Caxias, na ECO, data de Abril de 1938[6], e que só por um acaso não se terá perdido definitivamente nas atribulações frequentes da gestão dos arquivos administrativos[7]. A sua autoria é colectiva[8], do grupo de oficiais-alunos acima referido, mas é de crer que o seu conteúdo tivesse sido avalizado, antes da publicação, pelos professores que acompanharam aquela viagem.
O documento em questão tem por título «Relatório da Missão do Curso do Estado Maior à Espanha Nacionalista de 15 a 27 de Maio de 1937», soma um total de 159 páginas e compõe-se das seguintes secções: «Introdução» (uma página); «Assuntos a tratar» (matérias de estudo em várias cadeiras a serem observadas no terreno – uma página); «I Parte: Documentário Fotográfico, acompanhado de breves comentários às fotografias apresentadas» (noventa e sete páginas); «II Parte: Itinerários – Notas soltas e registadas durante a viagem» (cinquenta e uma páginas); e «Conclusões» (oito páginas).
Antes, porém, de acompanharmos as deambulações e apreciações feitas pelos oficiais portugueses sobre a situação vivida no campo nacionalista nessa Primavera de 1937, é conveniente traçar uma sintética visão panorâmica desses primeiros nove meses de guerra, tanto das rápidas manobras iniciais até ao estabelecimento de frentes de combate relativamente consolidadas (algumas das quais se manterão num statu quo até ao fim do conflito), como dos principais acontecimentos políticos que iam pontuando a actualidade, ditados ou geridos pelos poderes políticos de um e outro lados.
O alzamiento dos generais e das suas tropas, em 18 de Julho de 1936, foi pensado para ser um efectivo golpe-de-estado, instaurando um período ditatorial (semelhante ao processo português de 1926), com apoio das direitas políticas (fascistas, conservadoras, monárquicas afonsistas e carlistas, e até republicanas), mas sem um programa de governo ideologicamente bem definido. Porém, não foi improvisado e, do ponto de vista das relações internacionais, terá contado com os apoios (inclusive militares, como veio a ser efectivado) que os governos da Alemanha e da Itália provavelmente lhes dispensariam[10]. Para além do importante lugar próprio da Espanha no xadrez europeu, este facto significou, desde logo, que a mudança política espanhola ia ter uma imediata repercussão no quadro das difíceis coabitações entre uma Inglaterra e uma França onde se hesitava entre o “pacifismo” e o rearmamento, um “eixo” Berlim-Roma cada vez mais ousado e impante no seu expansionismo, e uma União Soviética estalinista, desconfiada e prudente sobre como lidar, simultaneamente, com o “nacional-socialismo” e com as “potências imperialistas”, mas possuindo a incomparável vantagem de dispor de aliados fiéis no próprio interior destes seus adversários, que eram os partidos comunistas e outras “organizações de massas” por eles infiltradas ou “manipuladas” (sindicatos, organizações juvenis, de mulheres, intelectuais, etc.). Como o “golpe” dos generais foi um semi-fracasso[11], o território se dividiu e uma guerra convencional se instalou, durante quase três anos, esta internacionalização do conflito ainda mais se acentuou e influenciou à distância, mas decisivamente, o destino deste confronto. A declaração de “não intervenção”[12] resultou apenas num adiar da eclosão da guerra na Europa por três anos, mas acabou por ser mais conveniente para o Partido dos nacionalistas do que para o da República.
A resposta dos sindicatos e das esquerdas ao golpe militar abriu, em Barcelona, Madrid e outras cidades e lugares, uma situação nova de “vazio de poder” e de expectativa revolucionária de transformação social. A confusão, a desarticulação das instituições, as informações falsas e contraditórias, a excitação e efervescência da rua tomaram o proscénio da vida colectiva, um pouco como aconteceu em Portugal nos tempos que se seguiram ao 5 de Outubro de 1910 e ao 25 de Abril de 1974, quando os regimes instaurados caíram sem resistência sob os golpes assestados por aqueles mesmos que haviam jurado defendê-los; com a enorme diferença de que em Espanha existiram mortos e feridos aos milhares e que a contenda principal não ficou logo decidida, antes se entrando naquilo que se percebia claramente ser agora uma guerra fratricida, com duas forças antagónicas, dois territórios e duas populações a controlar.
As tropas revoltadas nacionalistas ficaram, desde logo, senhoras do território de Marrocos e dos arquipélagos das Baleares e das Canárias, da Galiza, Leão, Navarra, parte de Aragão e Castela-a-Velha (até Cáceres, já na Extremadura), a norte; e de Sevilha e parte da Andaluzia, a sul. Sob o controlo das autoridades republicanas permaneceram as duas principais cidades, Madrid e Barcelona, com a grande mancha central onde se compreendia a Catalunha e parte de Aragão, o Levante, Castela-a-Nova, Extremadura (até à fronteira portuguesa), Mancha e parte da Andaluzia, e ainda a zona (industrial) das Astúrias e Pais Vasco, isolada a norte. Isto quer dizer que os revoltosos tomaram conta das periferias geográficas e foram obrigados a iniciar um movimento progressivo de convergência para o centro.
Do ponto de vista militar, os nacionalistas ficaram contando com um exército no norte, sob o comando do general Mola, as forças que o general Queipo de Llano[13] revoltou em Sevilha e outras terras andaluzas, de valor muito relativo, e sobretudo os 30 mil homens do Exército de África (à base de “moros” – em unidades chamadas de regulares – e legionários[14]), que acorreu de Marrocos à península, de longe o mais preparado, experiente e combativo, à frente dos quais se encontravam oficiais duros como Millán-Astray, Yagüe, Varela ou o general Franco. Dispuseram também os nacionalistas da adesão da grande maioria do corpo de oficiais e de um apoio aéreo (de transporte, bombardeamento e caça), armamento e outros fornecimentos, conselheiros, etc., por parte dos governos amigos alemão e italiano, tendo este último chegado a enviar fortes unidades de infantaria e carros de combate[15].
O governo republicano ficou quase sem tropas regulares e teve que aceitar umas improvisadas e mal enquadradas milícias operárias e populares, corajosas e vencedoras na oposição urbana aos sublevados e nos combates de rua, mas incapazes de sustentar uma guerra convencional no terreno, com trincheiras, movimentos ofensivos, artilharia, “tanks” e luta aérea, desenvolvendo um (politicamente) difícil processo de formação progressiva de um exército regular (o que se chamou “militarização”), para o que contou com alguns fornecimentos adquiridos na vizinha França e no México e, sobretudo, com o apoio da URSS.
Por seu lado, a situação político-militar – conceito absolutamente adequado e indispensável para compreender toda esta trama, sobretudo no campo republicano – evoluiu do modo que, sumariamente, passamos a descrever.
O Exército de África, tropas da Andaluzia e unidades policiais, reforçadas por milícias falangistas e de requetés[16], agiram com grande mobilidade para garantir aos sublevados o controlo de situações instáveis (como Huelva, Cádis, Algeciras, Granada, Córdova ou Ronda) e progrediram rapidamente para norte ocupando Mérida e Badajoz, em meados de Agosto, Talavera-de-la-
-Reina, a 3 de Setembro, e avançado para o objectivo principal de Madrid.
Por seu lado, a partir de região de Pamplona, o general Mola enviou colunas militares e de requetés carlistas para a zona costeira basca de S. Sebastián-Irun, para sul em direcção à capital, e para leste para sustentar Saragoça, periclitante. A primeira, venceu militarmente as milícias bascas e da CNT[17] cortando a passagem para França, em meados de Setembro; a segunda, consolidou a posse da cidade aragonesa e assegurou uma divisão duradora da província face às milícias anarquistas vindas de Barcelona; e a terceira, foi parada pelas forças republicanas mobilizadas em Madrid na Serra de Guadarrama e província de Guadalajara, no Outono-Inverno de 1936-37.
Contudo, desde finais de Agosto de 1936 que se estabelece a ligação entre os dois exércitos rebeldes na Extremadura[18], assegurando o controlo de toda a fronteira com Portugal e uma linha de reabastecimentos importante mediante os bons ofícios e a simpatia de Salazar para com a causa nacionalista. Entretanto, nas Astúrias, o enclave sublevado de Oviedo pôde resistir ao cerco das milícias republicanas e ser salvo por uma coluna nacionalista vinda da Galiza. Em Outubro, a capital espanhola parece estar ao alcance imediato dos exércitos nacionalistas, que se aproximam por oeste até às primeiras urbanizações, pela Casa de Campo e Cidade Universitária: começa então a batalha por Madrid, com emprego de artilharia, bombardeamentos aéreos, tiros de espingarda e metralhadora de trincheira-a-trincheira e casa-a-casa, sendo a cidade defendida por unidades improvisadas de militares republicanos, milicianos e as, doravante, famosas Brigadas Internacionais. Em Dezembro, os chefes nacionalistas viram que não conseguiam desta forma e rapidamente “ir tomar chá à Gran Via”, como tinham anunciado. A frente ficou aí estabilizada até Março de 1939, e as grandes ofensivas militares e as principais batalhas passaram a ocorrer em áreas muito mais afastadas, como numa verdadeira guerra convencional (da época).
Nas circunstâncias de patente carência de uma instância de governo central para fazer face à guerra e reposição da ordem nas zonas republicanas – nas dominadas pelos rebeldes, impunha-se de imediato a autoridade marcial, implacável –, toma posse, a 4 de Setembro, em Madrid, o primeiro governo presidido por Largo Caballero (socialista e antigo líder do “seu” sindicato UGT), com os partidos da Frente Popular, incluindo comunistas, que em breve iriam bajular aquele, apodando-o de “Lénine espanhol”. Sob Caballero, reforça-se a centralização das decisões de guerra, cria-se o Exército Popular da República (integrando as milícias, mais tarde também as Brigadas Internacionais, fundando escolas de oficiais, estabelecendo o sistema “soviético” dos comissários políticos ao lado de cada comandante militar, constituindo no terreno grandes unidades operacionais, etc.), legalizam-se várias “conquistas revolucionárias”, trava-se, enfim, a violência política incontrolada e põe-se em funcionamento um sistema judiciário novo; mas também é ele que avança para a aliança militar privilegiada com a URSS, lhe “entrega o ouro”[19] e decide a retirada do governo de Madrid para Valência, acto que caiu pessimamente no moral dos defensores da capital e na opinião das forças populares. E é precisamente nesta altura (não por acaso, mas por manobra partidária e com enorme reticência dos mesmos) que quatro ministros anarquistas entram num segundo governo presidido por Caballero (que também era ministro da Guerra), a 4 de Novembro de 1936.
No ano de 1937, a dinâmica revolucionária na zona republicana é estancada, em nome da premência de não perder militarmente no terreno perante as tropas franquistas, cada vez mais intensamente apoiadas pela Itália e a Alemanha. Mas, o melhor que o governo republicano obtém desta prioridade é que as frentes militares evoluam apenas lentamente, em operações demoradas e custosas em vidas humanas. A pressão sobre Madrid é aliviada pelo fracasso das ofensivas dos nacionalistas a sul, no Jarama (Fevereiro), e a nordeste, em Guadalajara (Março); em contrapartida, o avanço das forças republicanas para oeste salda-se também por um insucesso na batalha de Brunete (Julho): no total, tudo ficou mais ou menos na mesma, nesta área.
Porém, o mesmo não aconteceu na frente mediterrânica sul, pois a queda de Málaga para os nacionalistas, em Fevereiro, sem grande resistência, assestou um golpe no ânimo dos apoiantes da República. Pior, militarmente, seria o resultado final da ofensiva das tropas franquistas na frente cantábrica. Em Abril começou a ofensiva terrestre, com poderoso bombardeamento aéreo pelos alemães da Legião Condor (Durango, Guernica, etc.) e bloqueio naval. Apesar da resistência tenaz dos defensores e das inúmeras baixas, Bilbau acaba por cair em Junho, Santander em Agosto e Gijón em Outubro: o norte basco-autonomista, mineiro e industrial tinha acabado e o exército republicano perdido mais 100 mil homens (dos quais 30 mil foram reincorporados nas tropas franquistas). Deste modo, no Outono de 1937 a balança começava a pender para o lado de Franco, com forças equilibradas em número de soldados, mas com este último muito mais bem equipado.
Também em Maio de 1937 se verifica uma importante mexida política no campo republicano, resultado dos incidentes armados que ocorreram em Barcelona entre anarquistas e esquerdistas do POUM[20], por um lado, e comunistas por outro. Politicamente, os comunistas saíram desta conjuntura suficientemente fortes para abrirem uma crise governamental, retirando os seus ministros e fazendo cair Largo Caballero, a 15 de Maio. O novo gabinete nomeado pelo presidente Azaña foi chefiado por Juan Negrin[21] – agora sem anarquistas, nem sindicalistas, nem “caballeristas” –, era mais pequeno e homogéneo, apoiado e integrado por republicanos, comunistas e socialistas “prietistas”, que obtiveram para o seu líder Indalécio Prieto o novo ministério unificado da Defesa Nacional, em vez dos anteriormente separados Guerra, e Marinha e Aviação. A internacionalização da guerra irá acentuar-se, menos pela intervenção directa de apoiantes estrangeiros de ambos os lados envolvidos no combate, mas sobretudo pelos fornecimentos e manobras diplomáticas e estratégicas com que os principais países europeus procuravam então lidar com as ameaças latentes que constituíam os regimes políticos autoritários de sinal oposto que eram a Alemanha nazi e a Rússia comunista (Nolte, 2000; Payne, 2006).
No campo nacionalista, a “ordem pública” é imposta nas povoações ocupadas militarmente de uma maneira brutal e premeditada. As ordens dadas aos comandos executores das operações militares incluíam a aplicação de uma “lei marcial” nunca antes experimentada no país, com o julgamento sumaríssimo dos chefes militares que não aderissem ao movimento sedicioso e condenação à morte e imediato fuzilamento dos que resistissem, além de instruções para a eliminação física dos militantes republicanos, socialistas, anarquistas ou comunistas que fossem apanhados de armas na mão, sendo os restantes detidos em campos-de-concentração.
Quanto às evoluções políticas no sector nacionalista, estas são naturalmente de menor monta mas, apesar de tudo, significativas. A 29 de Setembro de 1936, Franco assegura junto dos principais chefes militares revoltosos a liderança oficial do movimento, sendo nomeado Generalíssimo e Chefe do Estado, presidindo à Junta Governativa em Burgos, a qual é reconhecida pela Alemanha e pela Itália a 19 de Novembro[22]. Mas, a coligação de forças políticas no interior do seu movimento é, ainda assim, bastante diversificada surgindo por vezes atritos e conflitos entre elas. É em Abril de 1937 que Franco promulga um “decreto de unificação” instituindo o partido único que iria permanecer por todo o tempo do seu regime: chamou-se Falange Española Tradicionalista y de las Juntas de Ofensiva Nacional-Sindicalistas (FET-JONS, mais comummente, “el Movimiento”) e este longo nome traduzia a vontade de integrar todas as componentes que haviam apoiado o alzamiento, sobretudo os falangistas de José António (o preso político que, entretanto, fora fuzilado pelos republicanos a 20 de Novembro) e os carlistas de Navarra (monárquicos e católicos tradicionalistas), além de outros. Isto passou-se na sequência de incidentes em Salamanca que provocaram mortos e do episódio de uma revolta de Manuel Hedilha pela predominância dos “camisas velhas” da Falange, que levou à sua prisão e condenação à pena capital, embora comutada por el caudillo.
Feita durante treze dias, a viagem cumpriu o «plano de visita elaborado pelo Estado Mayor del Ejercito Nacional» e, segundo as palavras dos autores, foi «uma espécie de ‘rallye automóvel militar’ feito a tão vertiginosa velocidade que é impossível relatá-la com grande cópia de pormenores […]. Basta dizer que muitas e muitas vezes a camioneta ultrapassou a velocidade momentânea de 100 Km/h e que fizemos alguns percursos com média superior a 70 km/h». De facto, na apreciação destes oficiais, «a rede de estradas dos nacionalistas é muito boa; em geral permite grandes velocidades e está em bom estado de conservação[23]. O principal […] meio de transporte utilizado em estrada é o automóvel, com o qual conseguem fazer deslocamentos de tropas muito rapidamente. O material automóvel foi em grande parte fornecido por italianos e alemães».
O trajecto foi iniciado por Elvas e Badajoz (com pernoita) registando os portugueses que «logo na fronteira nos chamou a atenção a presença dos observadores ingleses, tomando nota da nossa passagem». Na manhã seguinte puderem ver os aquartelamentos: «Assistimos a uma distribuição de rancho, que nos pareceu ser bastante superior ao dos nossos soldados. […] Militarmente, Badajoz era um centro de recrutamento e de instrução […]. Parece que, só em Badajoz, tinham sido instruídos efectivos correspondentes a 11 Batalhões de Infantaria. […] Também em Badajoz se fazia o engajamento de pessoal para a Legião, especialmente de portugueses».
O primeiro itinerário foi cumprido no dia 16 de Maio, inteiramente em território espanhol, desde aquela cidade fronteiriça até Trujillo passando por Talavera-la-Real, Mérida, Santa Amália e Miajadas. Neste troço, os visitantes observaram alguns pontos guarnecidas da «frente de Mérida», nomeadamente na Serra de Yelves. Vale a pena citar aqui o relatório: «Neste sector têm os ‘rojos’ uma testa de ponte na margem direita do Guadiana, em frente a Medellin e englobando uma colinas fronteiras a Yelves. Esta posição também fazia parte da testa de ponte e fora conquistada pouco tempo antes na nossa visita. Por esse ou por outros motivos, a organização do terreno era bastante rudimentar. Verdade seja que a calma no sector era absoluta, que os governamentais não desperdiçavam ali a sua artilharia e que as suas organizações na posição perdida nem sequer existiam. Já as tinham porém nas colinas fronteiras, onde se viam umas curiosas trincheiras de comunicação (?) em linha recta e descendo o monte, pela sua linha de maior declive, perfeitamente enfiada do sítio onde nos encontrávamos. As próprias trincheiras de combate eram também facilmente visíveis e houve quem visse nelas alguns ‘rojos’. E se do lado de lá estivessem olhando para o nosso lado, certamente não lhes passaria despercebido o compacto grupo de cerca de 30 homens que, à frente dos parapeitos e de binóculo em punho, admiravam a paisagem. Mas nem isso foi motivo para alterar as relações de cortesia estabelecidas entre os adversários. Pouco tempo antes, tinham sido feitos pelos ‘vermelhos’ alguns prisioneiros; apressaram-se a comunicar ao comando nacionalista que não seriam fuzilados. Igual resolução tomaram os nacionalistas relativamente a outros prisioneiros ‘vermelhos’ que fizeram pouco depois. Talvez fosse essa a origem das tréguas tacitamente estabelecidas».
Nas observações feitas em Santa Amália, registam que «as trincheiras só eram ocupadas de noite pela infantaria, que não quis porém ter a maçada de as fazer. Pelo que nos disseram, é este um facto corrente nesta guerra: é a engenharia quem faz toda a organização; a infantaria combate e descansa»[24]. Por vezes, o texto desliza para referências triviais, mas que não deixam de traduzir o ambiente vivido, por exemplo, nessa posição: «Quando subimos ao monte vimos uns soldados com redes, que pareciam de camuflagem; é possível que pertencessem aos camiões dos obuses, mas a aplicação que lhes estavam a dar os soldados era muito diferente: iam caçar codornizes junto ao bebedouro». Mais adiante, na transposição da ponte sobre o Tejo em Almaraz notam que esta «foi muito mal defendida pelas milícias ‘rojas’, que nem sequer a tentaram destruir […]. É curioso notar que nunca a aviação fez sobre ela, ou sobre qualquer outro ponto vital de comunicações nacionalistas, qualquer tentativa de destruição». Finalmente, em notas conclusivas, os autores referem ainda que «a Cavalaria é muito utilizada para vigilância dos grandes cursos de água, como o Tejo e o Guadiana [e] bastante utilizada em operações activas de campanha».
Trujillo-Toledo foi o itinerário seguinte. A primeira destas cidades funcionava como «um local de instrução. Nele se encontravam, por então, alguns batalhões de infantaria em ablativos de marcha para a frente. Pelo que respeita à ordem de batalha, Trujillo oferece ainda o interesse de se achar na rectaguarda da zona onde se dá a junção do Exército do Sul (general Queipo de Llano) com o Corpo de Exército do Centro (general Saliquet). No trajecto para Toledo utilizou-se a estrada de Madrid até Maqueda, isto é, a mesma que foi seguida pelas colunas de Yagüe, de Varela e de Castejón na marcha fulminante de Badajoz sobre Madrid em Setembro e Outubro de 1936».
Em Toledo encontraram «o aspecto confrangedor de quarteirões inteiros de edifícios incendiados, de montões de ruinas e de destroços de toda a ordem a demonstrar a violência da tempestade que por ali passara. E que a luta continua a desenrolar-se muito perto de nós patenteiam-no o movimento intenso de tropas que entram e saem e as longas filas de camiões militares que se notam debaixo das árvores de uma extensa alameda. Efectivamente, o terreno da luta é ali já, do outro lado do Tejo, sobre uma exígua testa-de-ponte cuja profundidade mal põe a cidade e a Fábrica de Armas ao abrigo dos tiros da artilharia ligeira inimiga. Foi para lá que nos dirigimos […]. Uma vez aí, do alto dum observatório, foram-nos apontados os oito pontos de apoio que formavam a ossatura da testa-de-ponte de Toledo. Tinham a guarnecê-los um BI[25] e uma Bandeira do Tércio, com um ‘tabor de regulares’[26] de Marrocos em reserva. Em Toledo, na cidade, acha-se ainda na situação de reserva, uma outra Bandeira do Tércio. Em contraste com o que notáramos na frente de Mérida, na véspera, onde não se ouvira um tiro, aqui sentia-se nitidamente o tiroteio nutrido, cortado a miúde por rajadas de metralhadora, com que se hostilizavam as ‘avanzadillas’ dos dois partidos em presença. Nesta região encontrámos um grupo de baterias de obuses de 10,5 cm Vickers fabricados em Sevilha, semelhantes aos nossos de 10,4 cm. […] Não vimos em Espanha nenhuma bateria puxada por gado. Este só aparecia no material de montanha. Este grupo tinha vindo do Jarama e chegou a deslocar-se, na estrada, a 60 Km à hora. […] Junto deste grupo estava uma bateria de montanha, numa posição completamente oculta por ramagens. Informaram-nos que era material de 6,5 cm italiano, muito moderno e de marca Breda (?).[…] Mais tarde, na Biscaia. Vimos obuses de 10,5 montanha e, de longe, uma bateria anti-aérea de 8,8 cm, alemã, que estava a fazer tiro horizontal. E foi o que conseguimos ver de artilharia».
Da inspecção acompanhada às ruinas do Alcázar, dizem os portugueses: «Compreende-se assim que todos nós tivéssemos trazido desta visita a mais indelével impressão de todas quantas a nossa breve viagem nos permitiu colher e que essa impressão seja mais de ordem sentimental do que intelectual e que por isso tão difícil seja exprimi-la em palavras. Contudo uma conclusão podemos tirar: é que, mais dura e rija que a velha alvenaria de que eram feitas as espessas paredes do Alcázar, que mal resistiram aos meios materiais empregados pelos ‘rojos’, era a têmpera do carácter dos seus defensores […]».
Refere também o relatório que «nestes furiosos combates tomaram parte muitos legionários portugueses; encontrámos bastantes ao sul do Tejo e alguns na cidade; informaram-nos de que havia para cima de 4.000 portugueses alistados na Legião, os quais eram considerados como esplêndida tropa de choque. Parece até que havia certa tendência para os comandos abusarem, empregando-os nos locais mais expostos, o que originava entre eles bastantes baixas. Tentara-se até a criação de pequenas unidades, companhias ou pelotões só de portugueses, mas estes não consentiram com receio de que ainda mais os viessem a empregar só nas acções perigosas».
O dia seguinte foi passado percorrendo diversos pontos da «frente de Madrid», estabilizada e relativamente calma por esses dias. Passaram em Yuncos, onde estava então o quartel-general de Yagüe, aproximaram-se de Madrid pelo sul (avistando edifícios conspícuos como o de La Telefonica) até Pinto e desceram perto do rio Jarama, onde os oficiais portugueses puderam observar os aspectos tácticos da batalha aí ocorrida em Fevereiro, com uma passagem em força dos nacionalistas para a outra margem do rio (incluindo o uso de forças a cavalo), operação baseada num adequada concentração de tropas e de fogo, e na surpresa, mas que não logrou ir mais além. Refere aqui o relatório que a testa-de-ponte conquistada pelos nacionalistas era servida por três pontes sobre o rio, as quais «eram todas mais ou menos batidas por metralhadoras inimigas, e não sabemos se também por artilharia. Por esse motivo não nos levaram à margem esquerda do rio». Depois visitaram o quartel-general de Asensio [Cabanillas], comandante de 2ª Divisão, em Casa Gosques, prosseguiram virando para oeste por Getafe e Leganés, e aeródromo de Quatro Vientos, que os republicanos haviam abandonado e dinamitado há alguns meses e servia agora a aviação dos franquistas. Na passagem por Cerro de los Angeles, onde pouco tempo antes tinha havido combates de carros, com avanços e recuos, registam os visitantes que «no momento da nossa visita a calma era porém absoluta; nem a imprudente passagem do nosso comboio automóvel, formado por dois auto ligeiros e uma camioneta, esta com a bandeira portuguesa desfraldada, por uma estrada à frente da primeira linha, nem as ainda mais imprudentes rajadas disparadas por alguns de nós, a convite dos oficiais espanhóis, a fim de experimentarmos algumas das metralhadoras por nós pouco conhecidas, conseguiram provocar a reacção do inimigo». Já ao entardecer passaram por Brunete, Navas del Rey e foram dormir tarde a Ávila, que estava de «luzes apagadas».
Vale a pena recordar que este assédio a Madrid, por sul e oeste, estava então relativamente estabilizado. Escrevem os autores que: «Ocupando esta enorme frente de Madrid um corpo de exército reforçado, composto de três divisões[27], esperávamos encontrar as estradas pejadas por enormes colunas de camiões ou, pelo menos, que a nossa circulação fosse retardada por ultrapassagens ou cruzamentos com os transportes necessários à vida dessas divisões. Tal não sucedeu porém […]. Explica-se o facto pela cessação de todo ou quase todo o tráfego civil, que irradiava de Madrid, pela pequenez dos efectivos empenhados, pela calma que reinava na frente e pela abundância de comunicações e o provável aproveitamento do caminho-de-ferro até muito perto da frente».
A sedimentação de posições nesta frente de Madrid seguiu-se, porém, à marcha forçada da coluna do tenente-coronel Yagüe, desde Sevilha até Mérida, com a operação lateral sobre Badajoz, a consolidação de uma frente em D. Benito, sobre o Guadiana, para travar reforços republicanos que pudessem vir de Ciudad Real, e, depois, tomando o caminho mais rápido em direcção à capital. Um livro recente do historiador Francisco Espinosa (2007) analisa em detalhe este itinerário, concentrando-se sobretudo nas atrocidades praticadas pelos militares nas povoações que iam sendo ocupadas, nos acontecimentos da tomada de Badajoz, a 14 de Agosto e dias seguintes, e na desmontagem dos mitos criados pela propaganda acerca de tal “cavalgada” vertiginosa. Porém, no plano da estratégia militar, foi esta ofensiva que permitiu levar o Exército de África, em pouco mais de um mês, às portas de Madrid. Mas, aqui surge a intromissão da intuição política de Franco sobre as considerações militares: a 20 de Setembro, chegado a Maqueda, depois de vencer forte resistência dos republicanos em Talavera de la Reina, Yagüe é destituído por Franco do comando de “coluna de Madrid” por discordar da decisão por este então tomada, enquanto Chefe do Exército de Marrocos e do Sul de Espanha, de que se dirigisse para Toledo pondo fim ao cerco do Alcazar, em vez de marchar directamente para a capital, que ainda não tinha a suas defesas preparadas. Esta opção, segundo alguns, mudou o curso da sublevação militar e instalou uma situação de guerra convencional prolongada, mas permitiu a Franco uma operação de propaganda emocional de grande efeito ao glorificar a resistência de Moscardó e dos sitiados na velha fortaleza-escola (Cardona, 2006).
Em Outubro, já o Exército Popular da República, em breve ajudado pelas Brigadas Internacionais e pelo material de artilharia e aviação soviéticos, foi capaz de opor barreiras intransponíveis ao ataque em força à cidade pelas tropas nacionalistas. Os combates de Novembro, travados na zona compreendida entre as estradas da Extremadura e da Corunha, acercando-se por oeste desde Carabanchel até à Casa de Campo e à Cidade Universitária foram muito duros, mas o avanço dos nacionalistas foi travado pelas milícias republicanas. A batalha do Jarama, a sudoeste da cidade, em Fevereiro de 1937, graças à surpresa e ao apoio aéreo alemão, permitiu aos nacionalistas do comando do general Varela galgar esse curso de água e alargar um pouco para nascente o seu cerco, mas não lhes consentiu que cortassem a estrada para Valência (onde entretanto se tinha refugiado o governo da República), que seria o objectivo estratégico da acção. E em Março fere-se a batalha de Guadalajara, a nordeste, na estrada para Saragoça, que se salda por um insucesso dos nacionalistas, sobretudo dos contingentes italianos aí empenhados. Esta era a situação militar na frente de Madrid quando os oficiais portugueses a visitaram, poucos dias antes da acção ofensiva dos republicanos sobre Segóvia[28], que se gorou, e da grande ofensiva das suas tropas em Julho para tentar romper o cerco a oeste, que terminou com uma pesada derrota dos governamentais em Brunete. Tudo somado, o insucesso dos exércitos franquistas para tomar Madrid traduziu-se não propriamente numa vitória militar da República – salvo no plano da percepção psicológica das populações e dos combatentes –, mas antes na eternização de uma guerra-de-trincheiras com escasso empenhamento de qualquer das partes para romper o statu quo que se manteve até ao fim do conflito, como foi reconhecido por vários dos mais importantes protagonistas (Rojo, 2010).
Depois destas primeiras observações no terreno, os oficiais portugueses tomaram anotações sobre o vestuário das tropas franquistas: «É dos mais variados modelos, desde o simples “macaco” de cotim português até aos aberrantes uniformes dos oficiais das tropas de África com os seus “búlgaros” verdes ou vermelhos (…) há de tudo. O que mais se vê são uniformes impro-
visados com os calções à Chantilly (com bota ou polaina) e umas blusas de coiro ou tecido grosso, geralmente fechados com fecho éclair, a que o espanhóis chamam “caçadoras”. Isto prova que o fardamento adoptado pelos espanhóis, tal como o português, não se adapta às condições de vida duma campanha».
O quarto itinerário levou a missão portuguesa a Segóvia e a visitar as posições da frente norte de Madrid, organizadas na serra de Guadarrama, seguindo depois para o setentrião para ir dormir a Valladolid. No sector da Granja, «os ‘rojos’ ocupavam as alturas, a bastante distância das posições ocupadas pelos nacionalistas; os magníficos jardins do palácio real, um pouco semelhante ao nosso de Queluz, mas mais sumptuoso, já constituíam terra-de-ninguém, que se prolongava por um vale de coberto de densa vegetação. Esta terra-de-ninguém era percorrida por patrulhas dum e do outro partido; não constava que alguma vez se tivessem encontrado! Os nacionalistas traziam normalmente como despojo jornais e panfletos ‘rojos’ deixados pelas patrulhas inimigas; como compensação abandonavam nos mesmos locais jornais e panfletos nacionalistas. Constituía-se assim uma espécie de caixa de correio, utilíssima para a propaganda num ou noutro sentido, e conseguia-se que os reconhecimentos se fizessem sem perda de vidas nem incómodos escusados. […] Algum tempo depois da nossa visita, foi este sector da frente do Guadarrama objecto de um ataque em forma dirigido contra Segóvia […]. Foi o sector de La Granja o único onde vimos os nacionalistas utilizarem a organização do terreno como os livros mandam […]. A posição estava organizada em profundidade; visitámos minuciosamente um ponto de apoio da posição de postos avançados – ‘avanzadilla’ – em plena execução: construíam-se trincheiras, redes de fio de ferro, abrigos-à-prova, etc. Estes abrigos à prova eram calculados para resistir a bombas de avião de 50 kg […] à rectaguarda do ponto de apoio, a cavalo sobre uma estrada secundária que transpõe o Guadarrama, a qual era obstruída por um muro de pedra solta, em chicana, primeiro obstáculo contra carros que quisessem forçar a posição […] É digno de nota o cuidado que tinham com a camuflagem […] Tanto o Centro de Transmissões como o Posto de Comando estavam instalados em abrigos-à-prova de 15,5 cm».
Em seguida, os oficiais portugueses visitaram a posição do Alto de Leon, a 1.500 metros de altitude. Observam então que, estrategicamente, «a posse das alturas da Serra de Guadarrama deu aos nacionalistas, desde o início da revolução, o domínio do planalto de Castela-a-Velha. Como uma ofensiva sobre Madrid, partindo destas posições, seria bastante difícil de realizar em virtude do acidentado do terreno e das poucas forças disponíveis, os nacionalistas resolveram, nesta frente, conservar as suas posições. E como eram alvo de frequentes e furiosos ataques dos milicianos de Madrid, organizaram-nas defensivamente, com trincheiras, redes de arame, abrigos e defesas anti-carro». Assim, ao contrário de que poderia parecer, a posse da maior parte da cordilheira do Guadarrama não era tanto para ameaçar a capital (embora a sua presença constituísse um sinal psicológico a não desprezar), mas mais para garantir a segurança e liberdade de espaço de rectaguarda às forças nacionalistas do Norte que tinham a suas bases principais em Salamanca-Valladolid-Burgos-Vitória. Visitando com detalhe a posição do Alto do Leon, notam os visitantes que «os carros de munições estavam muito afastados, para tentar iludir o inimigo sobre a posição da divisão. As posições de infantaria ficavam na vertente virada a Madrid a uns dois ou três quilómetros além da crista, as restantes peças, todas de 7,5 cm, de modelo idêntico ao nosso 1904, e bem assim os observatórios, estavam instalados em abrigos-à-prova de 15 cm, em parte abertos na rocha e na restante construídos com cimento». Também dizem os autores que «foi unicamente neste sector que vimos em uso o capacete de ferro de tipo espanhol».
A 20 de Maio, os oficiais portugueses saem cedo de Valladolid com destino a Vitória, passando rapidamente por Burgos e indo visitar a frente de Álava. No caminho, os portugueses passaram pelo desfiladeiro de Pancorbo e chamam a atenção para esta «passagem natural, através dos Montes Obarenas, de Castela-a-Velha para o vale do Ebro e as Vascongadas. É um ponto sensível das comunicações nacionalistas pois através dele passam a estrada e o caminho-de-ferro directos Burgos-Vitória. Não estava ocupado nem parecia estar defendido contra ataques aéreos».
Vitória será o seu local de pernoita nesse e nos três dias seguintes, em que aproximam por vários pontos a frente da ofensiva que o Exército do Norte chefiado pelo general Mola (que viria a morrer num acidente aéreo a 3 de Junho) estava desenvolvendo contra a zona republicana basca-asturiana e mais directamente sobre o “anel de ferro” de Bilbau. Mas, pela escolha dos itinerários e pelos relatos feitos, percebe-se que nesta zona os portugueses circularam com mais restrições e distantes das áreas de combate, provavelmente tanto por razões de segurança dos próprios como por motivos de sigilo militar sobre as operações em curso.
No próprio dia da chegada a Vitória, e depois de uma rápida visita ao quartel-general, «esplendidamente instalado num riquíssimo palacete», percorreram sob chuva as povoações de Ulibarri-Gamboa (observando do alto de uma ponte sobre o rio Zadorra os locais do início da ofensiva ocorrida nessa frente algum tempo antes), Escoriaza e Arechevaleta, além de outras. Aqui, como nos dias seguintes, a paisagem é sempre de montanha, estradas alcatroadas em bom estado com muitas pontes e alguns túneis com barragens (‘cortaduras’) militares frequentes, sinais de destruição na beira das vias e prisioneiros vistos a realizar trabalhos braçais. Havia amiúde cruzamento com tropas estacionadas ou em deslocamento, baterias de artilharia instaladas no terreno e grande movimento de aviões nos céus.
O dia 21 de Maio foi passado no flanco direito da ofensiva nacionalista sobre Bilbau, com especial atenção a alguns aspectos técnicos evidenciados pelos combates que se estavam a travar, desde o início da ofensiva, a 31 de Março. Foi o caso junto à povoação de Villareal de Álava, que as forças republicanas-bascas tinham tentado conquistar por várias vezes, chegando a mantê-la cercada durante quinze dias, em finais do ano anterior. Escrevem os autores no relatório que «esta pequena povoação fica situada a cerca de 15 km ao norte de Vitória e nela se cruzam três estradas: a directa Vitória-Bilbau; a que em Durango vai entroncar na estrada San Sebastián-Bilbau; e uma estrada secundária que em Mondragón alcança o vale do Deva. A sua posse tinha pois uma importância primordial para os nacionalistas. Os vascos tentaram várias vezes apoderar-se dela e quase alcançaram o seu objectivo. […] Liberta a povoação do cerco, os governamentais, na previsão de uma ofensiva nacionalista, organizaram uma posição de resistência com a linha de postos avançados próximos de Villareal e a linha principal de resistência passando nas encostas de Murubain. Visitámos as trincheiras desta linha, de que a fotografia nº 63 mostra um trecho. Estavam muito bem construídas e possuíam bons campos de tiro. A sua característica mais curiosa era a de terem travezes individuais. Foi nestas trincheiras que por alguns de nós foram encontrados distintivos (entre eles a estrela soviética) e cadernetas de filiação nos partidos extremistas. Estas trincheiras flanqueavam um muro anti-carro construído na estrada, do qual falaremos mais adiante. Foram abandonadas sem combate por terem sido torneadas pela manobra envolvente efectuada pelos nacionalistas a nordeste de Villareal». Depois desta paragem, os visitantes detiveram-se em outros lugares para observar as defesas anti-carro construídas nas estradas e a noroeste de Ochandiano para examinar posições da artilharia de montanha (puxadas por animais), ali muito empregue pelo exército franquista. No resto do dia circularam para norte até ao mar (por Zumaya e Zarauz), passando por San Sebastián sem paragem e regressando por Tolosa ao seu aboletamento em Vitória.
No terceiro dia, na Biscaia, os portugueses passaram por Mondragón, Vergara, Elgueta («bastante destruída») e descrevem os autores: «14h38-Paramos à vista de Durango. Muitas crateras ao lado da estrada. Ao norte de Durango uma bateria de 8,8 cm anti-aérea fazendo fogo para terra. Para a esquerda ouvem-se tiros de metralhadora. 14h52-Atravessamos Durango; a povoação está bastante destruída, parece que pela artilharia[29]. Ponte a reconstruir em cimento, servindo de cofragem a ponte improvisada. 14h58-Yurreta. Passam por cima de nós as granadas da artilharia nacionalista, que está em posição para a nossa direita. 15h05-Deixamos à esquerda a estrada para Bilbau. Tomamos pela estrada chamada ‘Balcón de Viscaya’. Passamos por uma coluna automóvel de munições dissimulada sob as árvores. Vêem-se italianos e alemães. […] 15h25-Paramos na estrada. Ao longe vê-se Galdácano ardendo. Um pouco à direita do fogo, o monte Ganecogorto. Estamos a 15 km de Bilbau em linha recta. À nossa frente está o Monte Vizcargui. Ouvem-se tiros de artilharia. […] 16h10-Paramos para ver Guernica destruída. Letreiros italianos nas ruinas. 16h30-Visita ao carvalho sagrado. 16h52-Saída. Camiões com mulas».
Sobre as destruições aqui ocorridas, o relatório dedica-lhes um espaço próprio: «Os governamentais empregaram em larga escala as destruições[30]. Mas, como vimos, as destruições de vias de comunicação não eram bastante completas para impedirem a progressão quase imediata dos nacionalistas. Pelo contrário, as destruições das povoações chegaram a ser quase completas sem que, com elas, obtivessem quaisquer vantagens de ordem militar. Visitámos com demora Guernica e Eibar. Das destruições efectuadas na primeira dão ideia as fotografias nºs 80 a 89. Apenas uma escassa meia dúzia de casas escapou. Escapou também o santuário das liberdades vascas, que contém o célebre carvalho. A asserção da sua destruição por bombardeamentos aéreos[31] cai pela base, porque não se encontra nas ruas, todas em bom estado, um único empate de bombas de avião. Apenas a igreja (fotografia nº 81) parece ter sido atingida por bombas. Nem mesmo é fácil, com bombas de avião, conseguir uma destruição tão uniforme e completa como a que se vê, por exemplo, nas fotografias nºs 86 e 89. Em Eibar não conseguimos tirar fotografias por ser já muito tarde; o seu aspecto é porém talvez mais confrangedor que o de Guernica, pelo contraste que oferecem as edificações situadas junto ao rio, quase todas destinadas a instalações industriais – fábricas de armas, em especial – com alguns bairros intactos. A destruição foi aqui minuciosamente planeada e executada. Das fábricas não devem ter ficado mais do que montes de tijolo, ferros torcidos e algumas máquinas inutilizadas. Esta destruição, se já foi feita com finalidade militar, conseguiu plenamente o seu objectivo. A de Guernica não conseguiu mais do que promover violentas discussões sobre quem a teria reduzido a ruinas, discussão que teria sido imediatamente esclarecida pela visita de pessoas com a necessária imparcialidade e que não poderiam deixar de concluir: a destruição de Guernica foi efectuada sem qualquer finalidade militar e os meios empregados foram a dinamite e o incêndio».
Esta é uma opinião curiosa, decerto influenciada pelos guias espanhóis que acompanhavam a missão portuguesa, mas que levanta dúvidas plausíveis, pelos aspectos de observação técnica evocados. E a relativa independência de julgamento destes “olhos exteriores” beneficia do suporte de várias outras passagens do relatório nem sempre abonatórias para os exércitos de Franco, apesar da simpatia ou identificação que globalmente lhes mereceria a causa nacionalista.
O quarto dia passado na Biscaia foi já meio aliviado, com a parte da tarde livre desse domingo na estação balnear de San Sebastián. Mesmo assim, refere o relatório que pararam ao fim da manhã em Berberana, nas proximidades da Sierra Salvada, onde viram um hospital italiano e «indícios nítidos de ofensiva próxima», e em Osma, onde notam que «deve estar concentrada nesta região pelo menos uma divisão italiana».
Em jeito de balanço relativo às operações ofensivas que o Exército do Norte estava realizando na Biscaia, os autores do relatório escrevem: «O terreno da Biscaia é todo ele muito acidentado, com altitudes que excedem 1.300 m (…). A paisagem é encantadora; as encostas das montanhas são bastante arborizadas, ficando apenas desprovidos de vegetação os cumes rochosos. Os vales, onde se acumulam as aldeias, ligadas por esplêndidas estradas alcatroadas e por caminhos-de-ferro eléctricos ou a vapor, são cultivados com cuidado. A população, onde predomina quase exclusivamente o elemento loiro, apresenta esplêndidos tipos de beleza feminina e é bastante diferente da castelhana. A linguagem habitual é o vasconço. (…) ao longo do Cantábrico, um rosário de pequenas praias deliciosas (…) uma das mais admiráveis paisagens que temos visto, coroada pela inigualável “concha de San Sebastián”. (…) é uma região de grande turismo, não só pelos encantos naturais mas pelas suas curiosidades arquitectónicas (…) curiosíssimas as igrejas (…) também dignos de ver, pela originalidade do jogo, os ‘frontons’ de ‘pelota basca’. Nesta região chove muitíssimo, e os cumes dos montes, onde os governamentais de preferência se entrincheiravam, estão muitas vezes cobertos de nevoeiro que os furta às vistas aéreas. (…) a aspereza do terreno rochoso e humidade do solo obrigaram a fornecer calçado aos soldados marroquinos (…). Nas nossas digressões pela Biscaia vimos muitas organizações construídas pelos nacionalistas vascos e que eles abandonaram quase sem defesa, em virtude de movimentos envolventes. Estavam, quase sempre no alto das encostas e eram perfeitamente visíveis das outras cristas vizinhas e até do fundo dos vales. (…) também vimos numerosos abrigos abertos em galeria de mina no flanco das montanhas; deviam ter sido feitos pelos mineiros asturianos, que colaboravam na defesa das posições. Na sua retirada, procuravam destruir ou obstruir as comunicações, mas os resultados obtidos não eram brilhantes (…)».
Noutro ponto do relatório os autores escrevem: «Não tivemos tempo de visitar ou não foi julgada conveniente a nossa visita a qualquer campo de aviação. Passámos contudo bastante perto dos campos de Vitória e de Burgos e conseguimos tirar algumas fotografias. (…) os numerosos aviões que nestes campos vimos de relance tinham aspecto moderno e eram, ou alemães, ou italianos. Havia monomotores de caça, bimotores e trimotores. Só duma vez vimos em Vitória 27 aviões Junkers, trimotores semelhantes aos nossos JU52. Segundo nos informaram, os aviões eram tripulados por italianos e alemães, havendo já alguns entregues a espanhóis. Na Biscaia o domínio do ar pertencia de uma forma quase absoluta aos nacionalistas. Foi lá que vimos a manobra emocionante duma esquadrilha de caça que se escondia no terreno descendo quase até ao fundo dum vale para, passando depois num colo, ir cair de surpresa sobre o inimigo. E foi unicamente na Biscaia que vimos a aviação em acção. Nas restantes frentes que visitámos nunca vimos um avião no ar […] nenhum avião ‘rojo’, a não ser talvez um que mal se distinguia fugindo de Valladolid […]. Em compensação, são bastante frequentes os bombardeamentos das populações civis das grandes cidades, que causam muitas vezes numerosas vítimas, o que parece provar que a aviação existente não está directamente subordinada ao exército de terra e actua com bastante independência. Efeitos talvez das doutrinas de Douhet, de que aliás só provam a pouca consistência, e de os tripulantes não serem normalmente de nacionalidade espanhola, não se importando portanto com os prejuízos ou mortos causados pelos bombardeamentos».
No dia 24 de Maio, os oficiais portugueses iniciam o regresso de Vitória, por Miranda de Ebro, Burgos (sem paragem), Torquemada, Valladolid (onde soa um alarme de ataque aéreo republicano, levando a população aos abrigos), Tordesilhas e Salamanca. Aqui passaram o dia 25 e parte do dia 26 seguindo-se, no relatório, a referência minutada da viagem de regresso a Portugal com passagem por sucessivas povoações tais como: «19h35-Vilar Formoso. Paragem na Alfândega Portuguesa». A missão foi dormir nessa noite a Viseu e só vinte e quatro horas depois chegou à capital.
Nos seus estacionamentos, nas principais cidades visitadas, os oficiais portugueses puderam observar a qualidade da vida social que continuava a processar-se nesses meios urbanos. «Se exceptuarmos Badajoz, onde se nota nos habitantes uma certa tristeza, que contrasta um pouco com a sua despreocupação e alegria de outrora e onde grande parte da população anda de luto por parentes fuzilados na altura em que esta cidade foi conquistada, a vida nas cidades da retaguarda tem um aspecto normal. Notam-se apenas um grande número de homens fardados entre os quais, nalgumas delas, muitos alemães e italianos, alguns feridos e estropiados, e as precauções tomadas contra bombardeamentos aéreos (…). Quanto à extinção de luzes, fazia-se a horas muito variáveis, desde o cair da noite, em Toledo, até à meia-noite, em Salamanca; em Badajoz chegava mesmo a não se fazer. (…) a alimentação das populações da retaguarda é análoga à do tempo de paz, porque a única crise existente nos géneros alimentícios é a da abundância, em virtude da falta de consumidores, habitando quase todos nas zonas governamentais, sobretudo em Madrid. Nota-se apenas faltas de produtos de importação, como o chá e o café, e de artigos de vestuário, quase todos provenientes de Barcelona. Apesar disso, em Salamanca, única cidade onde tivemos o tempo de descanso necessário para fazermos algumas compras, não era deficiente o abastecimento dos magníficos estabelecimentos, e os preços eram bastante acessíveis, embora os artigos nem sempre fossem da melhor qualidade. Em todas as cidades onde estivemos instalados funcionavam os melhores hotéis e o alojamento, a alimentação e os vinhos eram da melhor qualidade. (…) a fotografia nº 56 dá-nos uma pálida ideia do ‘Picadero’ de Burgos, magnífica alameda marginando o rio Arlanzon, onde era extraordinária a afluência de gente, sobressaindo dezenas de gentilíssimas raparigas, cuja presença quase fazia esquecer os horrores da guerra e era certamente para os combatentes a paisagem mais conveniente para apagar dos seus olhos as visões das tragédias vividas na frente. O moral das populações civis, pelo que pudemos avaliar durante a pequena convivência que com elas tivemos, parecia ser bom».
Esta avaliação baseia-se sobre uma apreciação superficial do observado no espaço público das cidades visitadas. Pelo que se percebe, os portugueses não terão notado indícios de campos-de-concentração nem de prisões e processos judiciais sumaríssimos contra adversários políticos que ocorreram especialmente nos primeiros tempos da guerra, mesmo em cidades que os nacionalistas controlaram absolutamente desde o início, violência terrorista que, aliás, teve correspondência nas zonas republicanas sobre os suspeitos de pertencerem à “quinta coluna” franquista, como investigações históricas recentes têm trazido à luz do dia (Alía Miranda, 2005; Espinosa, 2006; ou Cervera 2006).
Foi logo em Badajoz que a missão portuguesa assistiu num sábado (dia 15) a um destile das organizações de juventude nacionalistas que lhes mereceu relatos e comentários como os seguintes: «Em Badajoz, nas outras cidades que percorremos e, pelo que nos disseram, em toda a Espanha Nacionalista têm os espanhóis organizações da mocidade que, dentro de certos limites, se podem assemelhar à ‘Mocidade Portuguesa’. Estas organizações são orientadas por instrutores alemães das juventudes hitlerianas. Fazem parte delas todos os rapazes e não apenas os das escolas, como entre nós. Há duas organizações: a dos Flechas e a dos Pelaios, que pertencem respectivamente à Falange Espanhola e aos Requetés. (…) este movimento, originado no ardor patriótico e político nacionalista, a que os horrores da guerra civil deram força, deve contribuir grandemente para o engrandecimento e disciplina da Espanha de amanhã. Como cá, os rapazes tomam bastante a sério os seus papéis de pequenos guerreiros. Por conversas tidas com alguns dos rapazitos concluímos que a educação que lhes ministram tem um fundo de imperialismo tal que, a ser continuado por muitos anos, nos poderá mais tarde vir a trazer alguns amargos de boca».
Os encontros de confraternização com oficiais do exército de Franco, que pontuavam quotidianamente a visita, são descritos como servidos de copiosas ‘copas’ mostrando que estes portugueses eram decerto recebidos como amigos, com o calor e o espalhafato que os espanhóis sabem pôr nestas ocasiões. O bom acolhimento que receberam em toda a parte é sublinhado no relatório: «Nem sequer nos faltaram, em Trujillo, as palmas, os vivas e os hinos à saída da camioneta e um baile no casino, oferecido pelas mais encantadoras ‘señoritas’ da cidade, e em Valladolid uma recepção no Ayuntamiento’. Não esquecemos também o magnífico passeio a San Sebastián e o não menos magnífico almoço no Hotel Maria Cristina (…)».
Na última noite de permanência em Vitória, com jantar no Hotel Fronton, o relatório assinala, sem mais: «Fomos recebidos pelo general Mola». E no final da viagem refere-se «o jantar no Grande Hotel de Salamanca oferecido pelo Estado Maior do Generalíssimo e o almoço oferecido pelo embaixador alemão, General von Faupel, na sua ‘finca’ próximo de Salamanca. Lembremos por fim que fomos recebidos (…) pelo Generalíssimo Franco em recepção oficial, onde se fizeram afirmações protocolares de agradecimento e de solidariedade entre os dois países, sem esquecer o respeito pela independência de cada um».
Sobre o teor da reunião havida no Quartel-General de Franco, no dia 25 de Maio, em Salamanca (ou mesmo nos QG de frente com os generais Asencio e Mola), o relatório é absolutamente omisso. Mas é plausível pensar que se tratava de briefings mais ou menos detalhados e prolongados sobre a situação estratégica da guerra em curso, feitos sob compromisso de reserva quanto à sua divulgação. Em todo o caso, os autores referem que «convém frisar também a confiança em nós depositada, pois chegaram a ser-nos explicadas operações ainda não executadas».
Como é habitual nestes escritos militares, o relatório encerra-se com um conjunto de asserções muito sintéticas que resumem o essencial da visita. E incluem as seguintes observações críticas quanto aos aspectos propriamente militares das operações em curso, vistas pela banda dos nacionalistas:
«1º – Superioridade manifesta do lado onde estão bem organizados os Comandos e os Estados Maiores.
2º – Insuficiência de meios materiais, em especial de artilharia, para vencer resistências organizadas.
3º – Utilização da aviação principalmente no combate e muito pouco no bombardeamento eficaz das retaguardas.
4º – Concentração dos meios materiais numa pequena frente de ataque, ficando as restantes quase desprovidas, em especial de artilharia.
5º – Ineficácia das destruições mal executadas.
6º – Emprego intensivo dos transportes automóveis.
7º – Mau emprego da organização do terreno, pago muitas vezes por grandes sacrifícios em homens e em material para conseguir recompor as frentes mal organizadas».
Esta visita dos oficiais-alunos do curso do estado-maior da, então, Escola Central de Oficiais, de Caxias, terá sido organizada a pedido dos responsáveis desta escola, decerto com a concordância do Major-General do Exército[32] e do Subsecretário de Estado da Guerra[33], com conhecimento da Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha[34] e sob a organização e os interesses do Estado-Maior do Exército de Franco. Este facto terá sido o condicionador maior das possibilidades de observação da guerra postas ao alcance dos visitantes[35]. Em todo o caso, e pese embora a simpatia patente e manifestada por esta Parte do conflito – mais a identidade de casta experimentada com a oficialidade profissional dos militares nacionalistas que os recebiam –, os juízos avaliativos deixados neste relatório parecem bastante libertos de preconceitos políticos e preocupados sobretudo por considerações de carácter técnico-militar.
Neste último plano, alguns pontos de detalhe merecem, talvez, ser evidenciados. O conflito bélico que estava em curso naqueles teatros de operações continha ainda uma grande dose de processos convencionais de uma “guerra de posições”, com marchas de antecipação, cercos, frentes e batalhas tendo como objecto principal o território, onde a sua geografia física, humana e económica era determinante. Daí talvez a ênfase posta pelos portugueses nas deficiências apontadas quanto à “organização (defensiva) do terreno”.
Por outro lado, na altura da visita ainda não se haviam travado as batalhas mais amplas onde os carros blindados tiveram papel decisivo em espaços de manobra mais alargados, como viria a suceder em Brunete, Teruel ou no Ebro. Até então, a utilização de “tanks”, quer por parte de republicanos quer por parte dos nacionalistas, tinha sido apenas esporádica ou reduzida e, pelo contrário, ainda tropas montadas tinham sido usadas para acções de rompimento em força da frente adversa, como acontecera em Jarama[36].
Em todos os casos, porém, era já patente (repetindo o que sucedera nas guerras das últimas décadas, nomeadamente na Europa, em 1914-18) a importância da artilharia de campanha nestas batalhas, para a qual o relatório assinala as insuficiências quantitativas dos nacionalistas, parcialmente compensadas pela grande mobilidade de deslocação (motorizada) das suas unidades. É devidamente acentuada a vantagem que, para as tropas nacionalistas, constituiu o facto de disporem de oficiais profissionais suficientes para o comando das suas unidades – o que não acontecia nas forças da República –, bem como de oficiais devidamente preparados para “funções de estado-maior” que assegurassem o planeamento das operações e a estratégia geral em que se inseriam.
Percebida já como factor essencial para o desenlace vitorioso destes confrontos é a arma da aviação, porém não talvez, ainda, em toda a extensão das suas possibilidades de condicionamento do estado anímico das populações civis e dos combatentes, sobretudo pelo grau de destruição atingido pelas suas capacidades de bombardeamento. Talvez radique aí a subavaliação que o relatório acusa relativamente à destruição aérea já causada pelos nacionalistas em Madrid e no país basco, de resto com efeitos provavelmente opostos no ânimo das respectivas populações para prosseguir a luta, campo onde também influem factores como o seu nível de conhecimentos, a informação de que desfrutam e a propaganda a que são sujeitas.
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* Artigo elaborado no âmbito do projecto de investigação científica intitulado “O Corpo do Estado-Maior do Exército Português (1937-1974): Apogeu e queda”, dirigido pelo Prof. Doutor Luís Nuno Rodrigues.
[1] Eram, então, o capitão de Engª António Matos Maia, tenente de Artª João Castel-Branco, tenente de Cavª João Xavier Banasol, tenente de Artª Jorge Apolinário Leal, tenente de Cavª António Meira e Cruz, tenente de Engª Adelino Alves Veríssimo, tenente de Engª António Martins Leitão e tenente de Artª Daniel Sarsfield Rodrigues. Todos ingressaram no novo Corpo do Estado-Maior, a partir de Janeiro de 1938.
[2] Eram, então, os coronéis João Ferreira Chaves e Álvaro Ferreira de Passos, o tenente-coronel José Barros Rodrigues, o major Luís Sousa Macedo (Mesquitela) e o capitão Aníbal Faro Viana.
[3] Em Setembro de 1936, os generais conspiradores estabeleceram a sede do seu governo na cidade de Burgos (Castela-a-Velha).
[4] A MMPOE estruturava-se em uma Secção de Observação (a quem competia seguir o desenrolar da guerra) e em uma Secção de Assistência (aos combatentes portugueses integrados no exército nacionalista), onde se evidenciava o capitão de Artilharia Jorge Botelho Moniz, grande paladino e propagandista em Portugal da “causa nacionalista” de Sanjurjo, Mola e Franco. Ver o Estatuto Orgânico da MMPOE, publicado no Verão de 1938, pelo Subsecretário de Estado da Guerra Fernando dos Santos Costa, in Burgos Madroñero, p. 93-94.
[5] Oficial de Engenharia com um importante papel político no período da Ditadura Militar e do início do Estado Novo. Nasceu em 1878, ascendeu a general em Junho de 1936 e passou à reserva em 1943. Em Junho de 1938 foi substituído pelo coronel Anacleto Domingues dos Santos, que ficou no cargo até ao fim da guerra. A chefia do estado-maior da MMPOE esteve entregue ao coronel do CEM Álvaro Teles Ferreira de Passos (professor da Escola Central de Oficiais (ECO) e que integrou a missão visitante), desde Março de 1937 até Agosto de 1938, e daí em diante ao tenente-coronel do CEM José Filipe de Barros Rodrigues (que igualmente participou na visita).
[6] Os autores justificam o atraso da publicação «em virtude, não só da dificuldade de coligir elementos dispersos coligidos por várias pessoas durante uma viagem tão rápida, à qual se seguiram as restantes missões do Curso, os exames, as férias e os trabalhos de novo ano lectivo, como também as dificuldades materiais duma execução gráfica, que se procurou fosse razoável».
[7] Com efeito, o exemplar do relatório em questão, porventura o único ainda existente, foi salvo de um processo de destruição rotineira de documentação do Instituto de Altos Estudos Militares pelo coronel João Menino Vargas, a quem agradecemos a cedência de cópia, bem como ao comandante Carlos de Almada Contreiras, que nos alertou e pôs em contacto com aquele oficial. Após pesquisas, verificou-se que no Arquivo Histórico Militar apenas existirá um apenso fotográfico deste relatório, cuja cota é PT/AHM/DIV/1/38/46/1.
[8] Pelo teor do documento, verifica-se que terá havido um intenso e verdadeiro “trabalho de grupo” na sua elaboração.
[9] Alguns dos parágrafos seguintes foram reaproveitados do artigo publicado pelo autor, intitulado “Espanha: veemência e violência”, A Ideia, (65), 2008, p. 20-65, por nos parecerem constituir uma síntese adequada da situação.
[10] Foi notável a rapidez da disponibilização de aviões para a ponte aérea entre Marrocos e Sevilha e a presença de “couraçados de algibeira” no Estreito de Gibraltar protegendo os navios de transporte de tropas dos sublevados mas a decisão de ajuda militar alemã só foi tomada por Hitler a 25 de Julho em Bayreuth. Quanto à Itália de Mussolini, foi importante a intervenção do ex-rei Afonso XIII solicitando a sua ajuda para os revoltosos.
[11] O plano do “pronunciamento” foi elaborado pelo general Mola, estando previsto entregar a chefia do Estado ao general Sanjurjo, o qual morreu no dia 20 de Julho de 1936 num acidente aéreo em Cascais, onde se encontrava exilado. No dia 24 constitui-se em Burgos, assumindo poderes de Estado, uma Junta de Defensa Nacional unicamente composta de militares e onde pontificava Mola.
[12] Pronunciada em Agosto, com um “Comité” internacional, formado por representantes diplomáticos das potências, a funcionar em Londres, a partir de Setembro de 1936, que Portugal integrou com várias reticências.
[13] Era considerado republicano e desempenhava a função de Inspector de Carabineros (da Guardia Civil) quando, no dia 18 de Julho, usurpou o comando da divisão com sede em Sevilha.
[14] A Legião Espanhola, cujo lema era “Viva la Muerte!”, tinha um recrutamento semelhante ao da sua congénere francesa da Argélia, aceitando pessoas de qualquer nacionalidade sem inquirição sobre os seus antecedentes e garantindo a sua protecção perante eventuais ingerências de justiças estrangeiras. Fora fundada em 1920 por Millán-Astray, o autor do grito “Abajo la Inteligencia!”, lançado contra o prestigiado reitor da Universidade de Salamanca Miguel de Unamuno, numa sessão pública em Agosto de 1936.
[15] Ambas as partes acolheram apreciável número de voluntários estrangeiros. Na Legião, terá havido perto de 2.200 portugueses (que tiveram cerca de 350 mortos em combate, mas também um número equivalente de desertores). Do lado republicano, talvez uns 500 anarquistas, comunistas e republicanos tenham estado envolvidos. Mas, em nenhum dos campos houve unidades constituídas apenas por portugueses. A título individual, o maior destaque político deve ter sido obtido por Germinal de Sousa que, durante quase todo o período da guerra, foi o secretário-geral da Federação Anarquista Ibérica.
[16] A Falange Espanhola fora fundada em 1933 por José António Primo de Rivera (integrava as JONS de Ledesma Ramos, uma tendência “proletária”) e, embora de ideologia mais conservadora e católica, era semelhante ao movimento fascista italiano, com uma organização para-militar. Os requetés eram militantes monárquicos tradicionalistas da Navarra (herdeiros do partido Carlista da guerra dinástica do século XIX), igualmente organizados em milícias armadas.
[17] Confederación Nacional del Trabajo, de orientação anarco-sindicalista. A outra grande organização operária era a UGT, Unión General de Trabajadores, de tendência socialista.
[18] Nos primeiros meses, Franco instalou o seu QG (quartel-general) em Cáceres, onde depois se fixou uma brigada, de reserva e em função de articulação entre os exércitos do norte e do sul.
[19] Com o evoluir da situação, foi caindo a cotação internacional do câmbio da Peseta “republicana”, fazendo subir a dívida do material enviado pela URSS, enquanto o inverso se passava com a Peseta “franquista”.
[20] Partido Obrero de Unificación Marxista, próximo das posições do exilado Trotsky, contra Estáline.
[21] Um socialista que foi muito acusado de ceder às pressões do partido comunista e da União Soviética.
[22] Apesar de toda a colaboração prestada ao sector nacionalista (incluindo municiamento e abastecimentos; apoio político e propagandístico; e o reconhecimento de facto de uma representação da Junta de Burgos em Lisboa), a prudência de Salazar evidencia-se pelo facto de Portugal só ter reconhecido oficialmente o governo de Franco a 24 de Junho de 1938, juntamente com o Vaticano. A França e a Inglaterra só o fizeram a 27 de Fevereiro de 1939. E o México acolheu o Governo republicano no exílio, desde 1939 até à entrada da Espanha na ONU em 1955.
[23] O termo de comparação deviam ser as estradas portuguesas.
[24] Lembre-se o pormenor: em oito oficiais-alunos, três eram de Engenharia, três de Artilharia, dois de Cavalaria e nenhum de Infantaria.
[25] Batalhão de Infantaria.
[26] A Bandera equivalia aproximadamente ao batalhão de infantaria das tropas continentais e o Tabor a um pequeno batalhão de 250 homens.
[27] A sequência escalonar destas unidades militares era, aproximadamente, a seguinte: como “pequenas unidades” de infantaria, tínhamos as companhias (com uma centena de soldados) e os batalhões (geralmente com três ou quatro companhias). As brigadas, às vezes também organizadas em colunas, eram compostas de vários batalhões, com efectivos que rondavam os 3 a 5 mil homens. As divisões eram compostas por várias brigadas, podendo atingir os 15 mil homens, ou mais, e dispunham sempre de unidades de artilharia e por vezes também de carros de assalto blindados. Um corpo-de-exército era formado por três ou mais divisões. E um exército integrava vários corpos-de-exército. Estas últimas eram consideradas as “grandes unidades”, sempre comandadas por generais.
[28] Operação planeada pelo general Rojo, que acabara de assumir o cargo de chefe do Estado Mayor Conjunto (EMC), após ter visto recusada pelo governo, presidido por Juan Negrin, uma sua proposta de realizar uma operação de guerra provocatória contra navios de guerra alemães, de modo a antecipar a guerra europeia que muitos previam ser inevitável e que levaria a França e a Inglaterra a entrar no conflito ao lado do governo da República espanhola (Reverte in Rojo, 2010: 54).
[29] As referências são, geralmente, de que fora vítima de intenso bombardeamento aéreo.
[30] Com o objectivo de impedir ou retardar o avanço do inimigo, inutilizando também o que pudesse depois ser-lhe útil.
[31] Segundo todas as fontes, tinha ocorrido a 25 de Abril, isto é, um mês antes da visita.
[32] General Júlio Morais Sarmento.
[33] Capitão do CEM Fernando dos Santos Costa.
[34] Um dos professores que acompanhou a visita, o tenente-coronel do CEM José Filipe de Barros Rodrigues, foi chefe do estado-maior da MMPOE.
[35] No ano seguinte, realiza-se outra visita de alunos do curso de estado-maior, agora na região andaluza da responsabilidade do Exército do Sul, comandado em Sevilha pelo general Queipo de Llano. Mas, o relatório conservado em arquivo é muito menos interessante, apenas sumariamente descritivo da visita (32 páginas), sendo assinado pelo tenente-coronel Barros Rodrigues, chefe do estado-maior da MMPOE, e datado de Burgos, a 4 de Junho de 1938. (“Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha – 2º Relatório da Missão do Curso de Estado Maior a Espanha – 1938”, AHM, 1ª DIV., 38ª Sec., Nº 17, Caixa 45)
[36] São muito interessantes os relatos feitos pelos oficiais de Cavalaria Costa Salema e Ivens Ferraz que participaram em operações deste tipo, no período compreendido entre Maio de 1937 e Maio de 1938, integrados nas forças nacionalistas (Salema, 1991).
Sociólogo. Professor catedrático aposentado e Professor Emérito do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.