A minha intervenção prende-se com uma abordagem, a partir duma perspetiva histórica longínqua, do binómio que foi proposto pela organização para titular este painel – Estado e Sociedade Civil. Aquilo que vão ouvir é, assim, um conjunto de considerações que centralmente procuram introduzir a dimensão cronológica num tópico que é normalmente abandonado por essa dimensão.
Um abandono que se prende, diria, com uma série de pressupostos que os historiadores não podem dar necessariamente como adquiridos, e que atravessam amiúde o discurso das ciências políticas. Penso, em primeiro lugar, na assunção da naturalidade do binómio Estado e Sociedade Civil, como se tratasse de uma contraposição orgânica às sociedades humanas. Em segundo lugar, e como decorrente dessa naturalidade, a atemporalidade, porque aquilo que é natural e orgânico não tem história e, portanto, em certo sentido, existe desde sempre e continuará sempre a existir. E em terceiro lugar, uma outra decorrente, e que tem a ver com a universalidade: se o binómio é natural e existe desde sempre, então ele será necessariamente universal e será aplicável a todas as sociedades, ou será – enquanto projeto político – desejavelmente aplicável a todas as sociedades.
A posição que aqui exponho é diferente e conecta o aparecimento do binómio com processos históricos precisos, portanto com cronologias precisas, e, ao mesmo tempo, posiciona geograficamente esse aparecimento, distinguindo entre áreas geográficas, entre sociedades, na forma como esse binómio se vai construindo. Eu diria, por exemplo, desde logo, que me parece adquirido de que, do outro lado do Mediterrâneo, nas sociedades que se islamizaram, esse binómio nunca chegou efetivamente a manifestar-se pela simples razão de que o Estado e a Sociedade Civil nunca foram concebidos como coisas individuais, como coisas separadas. De resto, o processo de construção de sociedades islâmicas assenta, precisamente, e pelo contrário, no conceito de Umma, que reúne num todo indissociável as duas dimensões que aqui procuramos representar através desta antinomia. O problema reside na impossibilidade de conceção de um Estado diferenciado da sociedade que o suporta, impossibilidade por sua vez decorrente da centralidade originária do sistema religioso enquanto cimento social e fundamento carismático do poder político.
Desta indissociabilidade, e da incapacidade para a conceber, sobretudo do lado das sociedades ocidentais, decorre, a meu ver, uma parte muito significativa das incompreensões do ponto de vista político e do ponto de vista da arquitetura dos poderes e do pensamento político que percorrem o diálogo entre o sul e o norte do Mediterrâneo. Decorre ainda a rejeição por essas sociedades islamizadas de um modelo ocidental que assenta na construção do laicismo, não antes, na dimensão da praxis política, do século XIX, momento em que se concretiza a oposição entre essas duas dimensões, através de uma autonomização estrita do domínio do político.
De um ponto de vista ocidental, que é aquele que nos interessa mais diretamente aqui, eu diria que o ponto fulcral, e não é seguramente por vício do ponto de observação, o de um medievalista, a Idade Média é precisamente o momento para se assistir aos inícios da criação do binómio; inícios hesitantes, que se prendem em grande medida com a recriação, a partir de alguns elementos que já iremos considerar, dos modelos imperiais clássicos, agora em novas dimensões que correspondem à formação dos reinos proto nacionais que são, basicamente, a matriz das identidades políticas ocidentais e, portanto, a matriz da construção europeia contemporânea. Sem esses reinos e sem os laços que os unem – os laços identitários que os unem podem ser globalmente definidos pelo conceito de Europa latina, por oposição ao mundo grego oriental – não temos seguramente construção europeia. O mesmo é dizer que as matrizes da construção europeia remontam ao período medieval. Essa recriação, e esse é ponto fulcral da minha argumentação, assenta em processos múltiplos que são essa recriação dos modelos políticos clássicos. Nessa medida, creio que poderemos distinguir entre processos de natureza doutrinária e processos de natureza política.
Em relação aos processos de natureza doutrinária, ou às vias doutrinárias, todos os teóricos, todos os historiadores de direito e os teóricos da política sabem que o ponto fulcral é, a partir do séc. XII, quer por via do papado quer por via dos esforços codificadores de alguns dos reinos proto nacionais, a recuperação do direito romano; essa recuperação é muito lenta, no início, no que diz respeito às monarquias, é mais rápida no papado através do desdobramento da constituição do direito canónico, mas, no séc. XIII, no momento em que começam a aparecer codificações nacionais, por exemplo, na Península Ibérica, as Partidas de Afonso X, é já visível que se começam a impor alguns dos princípios que presidem à substantivação do Estado. Uso da palavra consciente de que muitos historiadores recusam a utilização da palavra “Estado” para o período anterior ao séc. XVI e alguns mais radicais mesmo para o período anterior ao séc. XIX, mas mantendo esse conceito no sentido de construção de poderes centrais legitimados por mecanismos de ação, por mecanismos doutrinários. Diria que o centro do ponto de vista do direito romano tem que ver com a imposição da territorialidade das leis, isto é, com a sobreposição aos direitos locais, parcialmente costumeiros, de um direito do rei. Isto é muito importante no sentido, evidentemente, da legitimação doutrinária, de uma oposição entre a monarquia, ou o reino, e os interesses locais, os interesses das comunidades. A oposição entre estas duas margens é, eventualmente, a oposição mais fértil no sentido da criação futura de uma oposição entre Estado e Sociedade Civil. Essa seria a primeira das vias.
A segunda via tem que ver com a primeira, mas aparentemente contradi-la. Tem a ver com a criação e universalização da doutrina corporativa da sociedade. Doutrina primeiro ensaiada na França do norte, no séc. XI, e é tão antiga quanto isso, mas que através dos seus processos lentos de construção vai chegar, a partir do séc. XIV, a dominar a forma que as sociedades ocidentais se auto representam até a um período tão tardio quanto as revoluções liberais. De certa forma, as revoluções liberais fazem-se precisamente contra a doutrina corporativa da sociedade que se baseia no conceito dos corpos ou no conceito das ordens, consoante o momento de conceptualização e que permitirá, por exemplo, definir a maior parte dos organismos políticos, aquilo a que nós chamamos “antigo regime”, nomeadamente, por exemplo, a tipologia da representação em Cortes.
Em que é que isto se prende diretamente com o nosso binómio? Penso que o ponto central tem que ver com o facto de a conceção corporativa da sociedade implicar, de facto, uma extensão da metáfora do corpo e se usa para pensar a sociedade, o corpo humano, e é, efetivamente, isso que acontece com a sociedade corporativa, então o que se vinca é a complementaridade e a indissociabilidade das partes e, portanto, não há lugar a antinomias, não há lugar binómios, há lugar a um todo que funciona desejavelmente de forma harmónica e isso, naturalmente, impede tendencialmente, a distinção entre o poder central – a cabeça – e o resto do corpo. O poder central é a cabeça do corpo, portanto faz parte dele, nesse sentido não existe oposição matricial entre o Estado e a Sociedade Civil. Estas duas vias doutrinárias, que são aparentemente mutuamente contraditórias, vão conviver de forma persistente, até ao séc. XVIII, e lançam raízes, mesmo para além das reformas liberais que são feitas durante esse período.
A segunda via de análise, para além da via doutrinária, tem a ver com a via política. O problema central, no que diz respeito à via política é, ou são, os mecanismos de criação que se iniciou globalmente no séc. XII, mas que se aprofundam especialmente a partir da segunda metade do séc. XIII, com os mecanismos de criação de centros políticos, no sentido estrito de conceito de Estado, com aquilo que é, normalmente, designado como Estado. Esses mecanismos de criação de centros políticos são, inicialmente, muito concorrenciais, porque há vários protagonistas que procuram ocupar esse centro. Uma das questões centrais na Europa, diria até ao séc. XVIII, e que só é resolvida, primeiro pela política napoleónica e depois pelo Risorgimento, em Itália, é justamente o conflito entre o poder do rei, ou do imperador, e o poder do Papa, o poder religioso, na tensão que se gera em torno de quem ocupa o centro. Portanto, há, em primeiro lugar, centros políticos concorrentes e depois há, simultaneamente, um processo muito gradual e, ao mesmo tempo, em alguns países muito sistemático, de conquista do poder central face aos poderes periféricos, isto é, tudo somado, àquilo que são os poderes comunitários que caracterizavam a Europa alto-medieval. A oposição entre esse poder central e esses poderes periféricos vai ditar, com variações muito importantes, consoante as regiões, as premissas daquilo que será a criação de uma oposição entre Estado e Sociedade Civil.
Terminaria com uma precisão de natureza geográfica. Efetivamente, esse conflito, essa tensão, têm resultados diferentes consoante as regiões. Em algumas delas os poderes comunitários mantêm-se robustos durante mais tempo. Um dos casos típicos será o do Império, que corresponde às zonas que conhecemos atualmente como Alemanha e ao norte de Itália; esses poderes da comunidade, locais, vão persistir, e a isso não será alheio, seguramente, o peso que, aquilo que concebemos como Sociedade Civil, tem nessas regiões. Noutras regiões, onde o poder central consegue uma afirmação quase universal na relação com estas comunidades, a Sociedade Civil tenderá a afirmar-se e, sobretudo, tenderá a expressar interesses locais, interesses particulares, sem nunca se constituir como uma estrutura organizada.
Um dos pressupostos da Sociedade Civil é justamente o seu caráter informal. Nesse sentido, parece-me estar perante origens históricas para um cenário, para uma geografia muito diferente de aplicabilidade nas várias áreas europeias do conceito Estado e Sociedade Civil.
Muito Obrigado!
* Intervenção transcrita a partir de gravação com revisão do Autor. O texto manteve-se, limitando-se apenas as marcas mais pronunciadas de oralidade.