Estamos a viver o tempo dos vários problemas que a classe política colocava no longo prazo. É agora o longo prazo da crise do endividamento público, da despesa social, das restrições ao crescimento, das reformas necessárias...
A Reforma do Estado – não confundir com reforma da administração pública – ganhou atualidade e foros de cidadania. É o debate ideológico por excelência, para o qual os partidos não estão preparados. Nem para pensar o problema e encontrar soluções, nem para levar a cabo as transformações que forem entendidas como necessárias. Vive-se um deserto de ideias na classe política que é consequência, no longo prazo mais uma vez, das regras que ditaram a evolução da nossa vida democrática.
Para que não haja dúvidas, se dúvidas houvesse, os partidos políticos são os pilares da democracia: não há democracia sem partidos. Estes são condição necessária, embora insuficiente, porque a vida democrática não se esgota na vida partidária. Mas, para que a vida democrática passe a decorrer normalmente, há que alterar as regras da democracia em que vivemos.
O divórcio entre a sociedade e a classe política está amplamente documentado nos trabalhos da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES) e do Instituto de Ciências Sociais (ICS), entre outros. Além disso, a noção de que o Povo pensa, e que todos testemunhamos, que «são todos iguais...» é real e palpável.
Assim, a Reforma do Estado exige também, possivelmente como condição prévia, a reforma do sistema político atual. Para tal há que diagnosticar os problemas, para depois pensarmos o que se deve alterar.
O problema do sistema político-partidário atual tem origem em três fatores; por um lado, há a consciência real de que o sistema é um oligopólio partidário que foi determinado e protegido historicamente; por outro, e relacionado com este, há demasiadas barreiras à entrada para que novos partidos possam surgir como verdadeiras alternativas. Por último, há a convicção fundada de que interesses particulares, quando não mesmo corrupção, dominam a vida partidária com prejuízos evidentes para o Estado e o bem comum.
Daqui decorre a consequência inevitável de que os partidos são incapazes de atrair novos valores (e quem está dentro, possivelmente, nem está interessado, na mediada em que estará mais preocupado em usufruir do seu naco de poder oligopolista). As regras reforçam estes comportamentos; há que alterar as regras pois os partidos, como instituições instaladas, não se autorreformam. Tem de haver pressão exterior para que tal aconteça. São bem conhecidas as circunstâncias e as razões em que tais regras foram desenhadas a seguir à Revolução democrática: partidos políticos frágeis; partidos com implantação incipiente; temor do papel de figuras carismáticas com relevância local... Todas estas circunstâncias levaram à lei atual que estabeleceu e sustentou o oligopólio dos atuais partidos.
Deste diagnóstico do problema também decorre que as regras têm de ser alteradas com o objetivo de pôr em causa o oligopólio estabelecido e a necessidade de abertura a outras pessoas e, eventualmente, a novos partidos.
Não há uma solução, mas várias medidas que se complementam e permitirão forçar os partidos a alterarem comportamentos e a atraírem novos membros selecionados entre os melhores. E, assim, melhorarem a gestão da coisa pública e passarem a ser vistos de outro modo pela população.
Lei Eleitoral
A primeira, embora longe de ser única, é a alteração das regras eleitorais. Os sistemas eleitorais são das instituições democráticas mais estáveis. Como se refere em Pippa Norris, talvez com uma exceção em França, nunca houve, desde o pós-guerra, nenhuma reforma significativa no modelo do sistema eleitoral nos países democráticos[1]. No caso português tal é absolutamente necessário para uma reforma do sistema político. O que propõe não difere radicalmente do que já foi proposto no trabalho de André Freire et al[1].
Para se escolher uma pessoa para atuar em nosso nome, seja na política seja em qualquer organização, são precisos três grandes requisitos[1]: i) ter preferências semelhantes às nossas; ii) ser honesto; e iii) ser tecnicamente preparado para a função. Para garantir que tal pessoa tem um comportamento adequado podemos ter mecanismos ex ante e ex post. Neste caso, estão o controlo e a sanção. O mecanismo ex ante está no processo de seleção. Por exemplo, uma empresa para evitar que um empregado roube, tem sempre mecanismos de controlo e de sanção – o despedimento e os tribunais – que são controlos ex post. Como estes muitas vezes não são suficientes, qualquer empresa começa por um processo de seleção – mecanismo ex ante – para escolher a pessoa em concreto em que se delega o poder de atuar dentro da empresa.
Nos sistemas eleitorais algo de semelhante se passa. Os mecanismos ex post em política são a monitorização e as eleições. No caso português, de facto, as eleições livres permitem que o mecanismo de reeleição, ou não, de um político funcione bem. Já os mecanismos de monitorização e controlo são mais deficientes. Muitos políticos são investigados, muitos mais aparecem na comunicação social, mas infelizmente poucos casos chegam a termo. O mau funcionamento da justiça deixa muitos «condenados» no tribunal da opinião pública, quantas vezes sem razão. Mas este é outro tipo de problema. De qualquer modo, o sistema eleitoral português pode ser classificado de razoável nos mecanismos ex post de monitorização e, em especial, de sanção eleitoral.
Mas, tal como argumentado acima, não chegam mecanismos ex post, é necessário ter mecanismos ex ante de seleção da pessoa certa. Nesta área o sistema eleitoral falha completamente. A seleção das pessoas faz-se dentro dos partidos com base em critérios que não são os de quem ele vai representar – o Povo –, mas com os critérios de seleção estritamente relevantes para os membros do partido e da sua liderança.
Mais ainda, os mecanismos ex post são mecanismos de incentivos extrínsecos à pessoa – não ser reeleito, por exemplo –, enquanto os mecanismos de seleção ex ante são intrínsecos à pessoa – características pessoais quanto a honestidade, por exemplo. É consabida, não só a necessidade do equilíbrio entre os vários tipos de incentivos, mas também que o excesso de incentivos extrínsecos pode tornar-se negativo. O político apenas é incentivado em ser ou não reeleito, sem mais considerações, o que, com o tempo, atrai o tipo errado de pessoas: menos honestas e apenas viradas para as reeleições e para não serem apanhadas nas malhas da justiça.
Neste sentido, o sistema eleitoral português está grosseiramente errado. É necessário alterar os círculos eleitorais para círculos mais pequenos, digamos três eleitos por círculo, para que a votação não seja no partido como até aqui, mas em pessoas, reforçando o mecanismo ex ante de seleção. É necessário votarmos em pessoas, eventualmente, apoiadas por partidos. A possibilidade de se votar nos candidatos propostos por um partido, mas não em todos eles, obriga a que as pessoas em concreto, candidatas à Assembleia da República, também sejam tidas em consideração pelos eleitores e não apenas o pertencerem a um partido mais à direita ou mais à esquerda. Podemos mesmo, votando em pessoas, escolher a nossa própria lista com elementos de mais de um partido, como acontece na Suíça e até certo ponto na Áustria[1].
Não se defendem os círculos uninominais, eventualmente com duas voltas, que seriam certamente preferíveis à situação atual, apesar de tudo. Mas estes poderiam fazer surgir populismos personificados que seriam difíceis de combater; mais, fragilizaria excessivamente os partidos que corriam o risco de passar a operar como meras federações de «caciques» locais; por último, as leis seriam permanentemente avaliadas com os seus impactos locais, o que condicionaria a realização de alterações com base no interesse nacional.
Ao sistema de «listas abertas» aqui proposto, e sugerido por muitos mas nunca verdadeiramente levado em consideração, deveria somar-se um círculo nacional com os «restos» dos votos que não ganharam representação nos vários círculos de três representantes. Aqui, penso, entrariam listas de pessoas indicadas exclusivamente pelos partidos, podendo por estes ser alteradas a cada momento. Esta possibilidade de alteração permite resolver situações associadas às mudanças das lideranças partidárias, que tipicamente ocorrem após uma derrota eleitoral, e que podem deixar a nova liderança sem representação parlamentar. Deste modo, o Governo e o primeiro-ministro, que respondem e debatem na Assembleia da República, terão de enfrentar a nova liderança da oposição, com claras vantagens para o debate democrático. Tal não aconteceu em muitas situações bem recentes da nossa democracia.
Em qualquer caso, um sistema eleitoral em que as pessoas estão identificadas força os partidos a apresentar pessoas impolutas e com reconhecido mérito. Reequilibrar os mecanismos ex ante de seleção com os ex post de não reeleger é crucial. Não são só as políticas que importam, é também a qualidade das pessoas que as vão executar que é importante. Cada vez mais importante.
Candidaturas Não Partidárias
A possibilidade de candidaturas não apoiadas pelos partidos é fácil de introduzir neste sistema de círculos eleitorais e, mais uma vez, força os partidos a terem bons candidatos em termos pessoais, contribuindo para a queda do poder oligopolístico dos atuais partidos.
Mas há também argumentos de princípio: há que respeitar o direito de se ser eleito e não apenas de ser eleitor. Neste momento, os direitos políticos da vastíssima maioria da população estão coartados, por não ter o direito de ser eleito sem passar pelo crivo de um partido. Ou melhor, o direito de ser eleito é-lhe, eventualmente, conferido por um partido e não é um direito político próprio.
Voto em Branco
O voto em branco, que deveria aparecer como opção no boletim de voto, passaria a ser representado por uma cadeira vazia na Assembleia da República. Tal justifica-se por três razões bem diversas. Por um lado, quem decide votar em branco faz uma opção politicamente significativa e é politicamente distinta de uma mera abstenção que nos deve merecer a maior consideração com uma (não) representação.
Por outro lado, e mais uma vez, obriga os partidos a terem pessoas e programas que não só os diferenciem entre si, mas também sejam capazes de serem merecedores da confiança de eleitores que querem votar.
Por último, traz para dentro do sistema eleitores que atualmente se abstêm. Os níveis de abstenção podem levar a problemas de legitimação política, ainda que não formal, de que podem resultar «soluções» menos democráticas.
Os lugares vazios poderiam ser limitados de tal forma que os lugares efetivamente preenchidos sejam iguais ou superiores ao número mínimo aceite na Constituição, ou seja, 180 parlamentares. Deste modo evitar-se-ia (algo pouco provável, mas teoricamente possível) o embaraço de uma maioria de lugares vazios na Assembleia da República.
Financiamento dos Partidos
A garantia de transparência passa pelo rigoroso controlo do financiamento dos partidos. Este financiamento deveria ser exclusivamente público e eventuais exceções passariam a ter um controlo acrescido. Não nos devemos esquecer que o Parlamento serve para representar o Povo e não interesses económico-empresariais.
Este financiamento público deveria englobar não só as campanhas para o Parlamento mas também as campanhas internas dos partidos. O infeliz desenvolvimento de eleição direta dos líderes partidários, hoje, mais ou menos generalizado, desvaloriza o papel dos congressos que passaram a ser única e exclusivamente uma forma de entronização do líder já eleito, sem verdadeira discussão de opções políticas. Se a regulação do funcionamento interno dos partidos é de duvidosa legitimidade, já as regras do financiamento destas campanhas é de manifesto interesse público.
Para tal, o controlo de contas dos partidos, devidamente auditadas por entidades independentes e devidamente qualificadas, é crucial. As contas dos partidos, se estes fossem empresas, não resistiriam a uma fiscalização aligeirada das autoridades tributárias, por exemplo. Para aumentar a transparência das contas partidárias, deveria ainda ser possível um acesso irrestrito e facilitado às contas bancárias dos partidos por qualquer cidadão. O sigilo bancário serve para proteger a intimidade das pessoas, mas tal não se aplica obviamente aos partidos.
Por último, este financiamento público aos partidos deveria permitir o financiamento de novos partidos. Não há soluções fáceis nesta matéria, mas é necessário que a concorrência também se faça com a ameaça de novos agrupamentos partidários. Esta possibilidade aumentaria a pressão do exterior aos partidos existentes para alterarem comportamentos.
As sugestões anteriores garantiriam uma maior transparência no financiamento partidário, maior independência face a interesses particulares e criariam mais entraves à corrupção.
Retribuição da Atividade Política
Um assunto de que ninguém ousa falar em público, mas que todos sem exceção reconhecem, são os níveis ridículos de retribuição dos políticos.
De facto, este assunto, a longo prazo – e hoje já estamos no longo pra-zo –, acarreta certamente dificuldades de recrutamento não só para a atividade política regular, mas também para o simples exercício temporário de determinados cargos. Todos temos conhecimento de pessoas que, quando convidadas para o governo, por exemplo, embora dispostas a aceitar, não o podem fazer por razões financeiras pessoais. Compromissos bancários ou uma prole em idade escolar levam muita gente a não poder servir o País.
Nestas matérias, o princípio deve ser: ninguém deve ir para a política para usufruir remunerações elevadas, mas ninguém deve deixar de servir num cargo público por razões financeiras. Neste sentido, a remuneração poderia, por exemplo, estar indexada ao rendimento passado declarado para efeitos fiscais. Poderia, ou não, haver uma pequena majoração, mas o relevante é o princípio. Desta forma, certamente que os ministros teriam salários diferentes, na medida em que tivessem rendimentos anteriores diferentes, mas ninguém seria prejudicado ou beneficiado por estar a exercer um cargo público.
Na atual situação financeira do País é natural que nenhum político tenha a coragem de alterar a situação vigente. A solução passaria por um acordo alargado, havendo um período dilatado de vacatio legis. A lei, uma vez aprovada, seria aplicada daí a quatro anos, por hipótese. Ninguém poderia ser acusado de estar a aumentar os seus próprios rendimentos. Não o fazer leva a questionar se a atual situação se fica a dever à situação financeira do País, à falta de coragem ou a esta classe política não querer mais concorrência.
A solução proposta é muito económica para o País e a manutenção da atual é pura demagogia. Não permitir, na prática, que os melhores possam ser chamados à causa pública é suicídio democrático.
Da mesma forma, deve haver um período de nojo depois de se sair de um cargo e esse período tem de ser pago. Se queremos agentes políticos a decidirem com isenção, com base no interesse público e sem medo de consequências futuras, temos de remunerar o período de nojo, como aliás é comum em muitas democracias. Muitos se escandalizam quando um ex-ministro, passado algum tempo, aparece numa empresa privada em lugar de destaque, mas o ex-ministro, como qualquer outro cidadão, tem certamente essa necessidade e esse direito. O período de nojo pode ser mais extenso, mas será necessária uma retribuição por não poder trabalhar no setor que melhor conhece, ou seja a área de que deixou de ser ministro.
Transparência Empresarial
Da mesma forma que os partidos devem ser mais transparentes, também as empresas o devem ser nas suas relações com o Estado. Se todas as empresas forem obrigadas a publicitar as suas relações económicas com o Estado, o alastrar da corrupção ou negócios de favor é dificultado.
As empresas facilmente podem publicitar contratos, isenções fiscais, apoios europeus ou do Estado, etc.. O simples facto de o dar a conhecer facilita o escrutínio e evita alguma corrupção.
Refira-se que as empresas de comunicação, ao ficarem sujeitas a este escrutínio geral, relatariam também os contratos que têm com o Estado ou com empresas do Estado. Aqui, não só se evitavam alguns dos fenómenos atrás descritos, mas principalmente tornaria a comunicação social mais transparente. A comunicação social não é a culpada da situação do País, mas, com honrosas exceções, não está certamente inocente.
A resposta não é fácil, mas só pode ser uma: a opinião pública e a publicada. Mais uma vez, o sistema tal qual existe não se autorreforma. É necessária uma forte opinião pública. Podem dizer que é pouco, mas as alternativas são, ou o putchismo ou desistir de viver numa democracia melhor.
Natural de Luanda.
Formação:
– Agregado pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado pela Columbia University, New York.
– 1992 – Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Economia – Agregação em Economia Internacional.
– 1985 – Columbia University – Department of Economics – Doutoramento (Ph.D.) em Economia.
– 1983 – Columbia Un