Em primeiro lugar, naturalmente, permitir-me-ão que agradeça este honroso convite para pronunciar aqui uma pequena intervenção, o que devo, penso, em primeiro lugar, ao Senhor General Pinto Ramalho, diretor da Revista Militar. Permitam-me também que cumprimente os meus colegas de mesa, o Senhor Almirante Vieira Matias, o Senhor Professor Costa Pinto e o Senhor Dr. Alberto Campos Fernandes.
E, se me permitirem também, faço logo notar a composição deste painel, verdadeiramente para abordar na globalidade as funções fundamentais do Estado. Não quero ser injusto para um dos meus colegas de painel, mas talvez o Professor Costa Pinto seja a pessoa que está melhor colocada, pela formação; mas já está entalado entre duas abordagens específicas: a minha própria, dado que me tenho dedicado à questão da segurança social, e, calculo, a do meu colega de painel, Dr. Campos Fernandes que irá, naturalmente, olhar com mais detalhe o que é um grande campo da sua especialidade, as políticas de saúde.
Isto já dá um sinal de como nos colocamos na nossa época, nesta matéria. Um colóquio sobre as Funções Fundamentais do Estado, há cem anos, não teria seguramente esta composição; penso que até, de nós todos, sobraria, certamente, o Senhor Almirante, naturalmente, numa das funções fundamentais originais do Estado, e, com um bocadinho de sorte, o Professor Costa Pinto, enfim, para ter ali uma abordagem mais global vinda da Universidade. Mas, enfim, não sei se mesmo ele não seria um bocadinho condicionado, mas nós dois, creio que não tínhamos lugar.
Bom, então, permitam-me que entre propriamente nas considerações sobre este aspeto. Eu propus-me comentar apenas as funções sociais do Estado numa perspetiva genérica mas, naturalmente que pensando os aspetos da segurança social em que estou mais a vontade.
Eu gostava de vos chamar a atenção, nesta matéria, para o seguinte: em primeiro lugar, sabemos que há uma justificação histórica para que as funções socias do Estado estejam tão desenvolvidas quanto estão hoje; a justificação é, basicamente, histórica e não vou entrar nela. Mas qual é a justificação intelectual que podemos arranjar para o Estado se ter ocupado, como se ocupou, no último século, fundamentalmente de forma tão extensa, tão intensa, de aspetos da vida social dos países pobres?
Há muitas maneiras de o justificar, mas eu, pessoalmente, sou parcial, digamos assim. Há uma que é, quando nós nos imaginamos sobre o, chamado véu de ignorância (e aqueles que conhecem a filosofia politica já sabem onde vou chegar), isto é, quando nós abstraímos o nosso conhecimento concreto sobre o mundo em que vivemos, sobre a nossa própria condição pessoal, humana, se somos homens ou mulheres, novos ou velhos, portugueses ou de outra nacionalidade qualquer, ou estrangeiros de alguma maneira, etc.. Quando raciocinamos sobre isso é relativamente simples chegar a um racional de uma intervenção social do Estado.
Há muitas críticas desta perspetiva, como aqueles que conhecem o assunto sabem, mas, de qualquer forma, é uma possível abordagem porquê? Porque, se eu, não sei se sou novo ou velho, acho, ou posso achar, racionalmente, que a melhor solução para organizar a sociedade em que vivo e, portanto, justifico assim a escolha de certas intervenções sociais do Estado, é uma que ampare, por exemplo, os idosos, ainda que eu possa ser novo, e já não vou ao limite de imaginar a organização da sociedade com escravos e senhores, porque aí, claramente, eu não sei se sou escravo ou senhor; seria um desastre racional eu jogar na existência de escravatura, mas, não indo tão longe, de qualquer forma, esta incerteza radical levada ao limite; mas, mesmo não indo por esse caminho, a incerteza que nós próprios temos na situação em que vivemos, e quem somos, não tendo problemas de identidade, esta incerteza relativamente, pelo menos, ao futuro próximo que nos leva a encontrar uma justificação racional de existência de funções do Estado deste tipo social, isto é, de reequilíbrio e, com algum aspeto, de redistribuição.
Ora bem, em todo caso, como é que neste momento se coloca no quadro europeu, sobretudo, a discussão sobre as funções sociais do Estado e das políticas que o Estado pode desenvolver a este respeito? Há muitas maneiras também de abordar, mas parece-me que a doutrina europeia dominante, neste momento, privilegia a distinção de três componentes de atuações sociais do Estado, acerca de cujo de equilíbrio se pode ter alguma dúvida.
A primeira é uma que tem vindo a ser chamada, para alguns, de uma forma, a meu ver feliz, que é a intervenção do Estado para fazer o, chamado, investimento social que são os esforços coletivos através do Estado que visam, basicamente, reforçar a dotação de capital humano nas sociedades, e para isso faz sentido que haja políticas ativas, as chamadas politicas ativas de emprego, muitas delas, com certeza, dirigidas aos mais novos, mas também aos mais velhos para procurar valorizar a componente ou o capital humano que reside em cada um deles.
Mas também podemos alargar às políticas de saúde, porque também elas são investimento e, portanto, educação, investimento e formação profissional como políticas ativas que procuram, em vez de dar prestações para substituir rendimentos perdidos, procuram, sobretudo, criar incentivos para uma inserção e para valorização profissional das pessoas de qualquer idade. Globalmente, são estas as atuações que a função social do Estado, na ótica da perspetiva do investimento social deve fazer.
A segunda vertente nesta abordagem é aquela que estamos mais habituados, a de proteção social, e aqui temos basicamente o quê? A cobertura de riscos sociais, em que a avulta neste momento, por razões de conjuntura, a questão da velhice ou risco social, dito da velhice. Se abordarmos com esta visão, investimento social, proteção social e estabilização económica, o que é que nós temos hoje em termos das funções sociais do Estado, no conjunto dos Estados Membros e no conjunto da União Europeia? Bom, desde logo, colocam-se aqui dois grandes problemas, relativamente a estas três vertentes, porque todas elas, e globalmente, as funções sociais do Estado estão entaladas entre, por um lado, as questões da sustentabilidade, garantindo que legamos às gerações futuras algo de razoável em termos de Estado, de Economia e de Sociedade, aquilo que nos pareça razoável de legar, que não os prejudique, portanto, quando podemos ver os interesses dos que ainda não nasceram e ao mesmo tempo as exigências de solidariedade que as nossas sociedades comportam, e que são fundamento mesmo das funções do Estado.
Ora bem, como é que estamos nesta matéria? Se olharmos a Europa no seu conjunto, há riscos de sustentabilidade em toda a parte – são bem conhecidos –, mas eu diria que a Europa do sul, em que nos incluímos, tem a sustentabilidade em fortíssimo risco, toda ela, e tem prevalecido ao longo dos anos, e aqui alguma associação com os riscos de sustentabilidade, tem prevalecido, claramente, a proteção social e a estabilização económica.
A Europa do sul desleixou-se, se assim se pode dizer, de alguma maneira, no investimento social. Se olharmos para os nórdicos, para a Holanda, para a Alemanha, podemos encontrar uma situação inversa nesta ótica que vos proponho – a sustentabilidade não tem risco (bom, é um exagero dizer isto, mas os riscos estão aparentemente controlados) – e prevaleceu historicamente, nos últimos anos, na última década, o investimento social. Sobretudo os nórdicos e a Holanda distinguiram-se recentemente, também, com a abordagem da chamada “flexi-segurança”, ou seja, uma abordagem de políticas públicas com forte incidência nas funções socias do Estado em que não se procurava proteger excessivamente as pessoas no mercado de trabalho, mas tinha-se um sistema forte de proteção social quando elas saíam, mas muito apostado nas tais políticas ativas (articulado com políticas ativas). Portanto, sempre com este investimento social, não paralisar a evolução da economia, não empobrecer as empresas em capital humano, mantendo lá os menos qualificados só por chegarem ao posto de trabalho, por razoes de idade (não, esses são retirados, mas não os deixamos cair e vamos continuar a investir neles para que eles possam regressar ao mercado). O caso dos escandinavos é claro nesta matéria, e a Holanda também muito forte, como disse, e a Alemanha seguramente; a França, eu diria, que tem sustentabilidade em risco intermédio e tem o equilíbrio mais estável entre as três funções, isto é, não optou tanto pelo investimento social, mas não o desguarneceu tanto quanto a Europa do sul e tem uma proteção social mais extensiva, porventura, do que a Alemanha; ou pelo menos, atualmente, a Alemanha conteve um pouco mais a parte da proteção social (essas prestações substitutivas dos rendimentos de trabalho e a intervenção de justiça social; a Alemanha conteve-se mais nos últimos anos, como estava a dizer).
É claro que tudo isto tem de ser situado no contexto atual europeu, um espaço geopolítico em queda, como os presentes sabem muito melhor do que eu, em que destaco apenas este aspeto de estarmos, já há alguns anos, num ciclo de crescimento da população no conjunto da europa ainda positivo, mas declinante e que foi sustentado nos principais países da Europa só por migrações; o caso típico da Alemanha ainda está estabilizado, mas ainda tem crescido; até 2010, a população, só depois da unificação, primeiro, houve esse impacto, mas só pelas migrações, porque o crescimento natural, portanto, o saldo de nascimento e óbitos é negativo, já há muito tempo.
Portugal está, também, já nessa situação, mas porque é uma situação agravada, porque o nosso declínio está a ser muito rápido nos últimos anos, porque já não temos saldos migratórios positivos, como tivemos até há pouco tempo e, portanto, como se inverteu essa situação o envelhecimento irreversível da nossa população, devido ao modelo civilizacional que também me parece incontornável, por muito que as famílias não mais queiram ter (ou optem por ter muitos filhos e os tenham feito em idades muito jovens), por tudo isso temos este contexto de forte envelhecimento demográfico, de alguma maneira irreversível.
E, quanto a nós, diria só para concluir, pequenos comentários sobre isto, o nosso problema, no meu ponto de vista, e talvez no debate haja oportunidade de voltar a esse assunto, é que, realmente, fizemos uma tentativa tímida, nos últimos anos, de apostar no investimento social em detrimento, de alguma maneira, da proteção social procurando restringir um pouco o esforço da proteção social.
Quando eu digo isto, estou a falar em termos financeiros, e não propriamente da eficácia das políticas, porquê? Porque, por exemplo, a saúde, desafio aqui o meu colega de painel nessa área, parece-me que já se está, há alguns anos, a fazer um grande esforço em contenção financeira, mas sem perda, pelo contrário, tendo registado alguns ganhos de eficácia, portanto, através da racionalização. Portanto, quando eu digo diminuir o esforço, é o esforço financeiro na área da proteção social, procurando conter o desenvolvimento ou a derrapagem excessiva de custos, mas tentando não perder a eficácia, a intervenção e os resultados da intervenção social, quer na área da segurança social quer na área da saúde.
Bom, o nosso problema maior, quanto a mim, situou-se, de facto, na fraca aposta na educação e na formação profissional, por isso o investimento social ressentiu-se muito. Pagamos, ainda, a meu ver, os malefícios ou preço dos malefícios que fizemos ao sistema educativo mais antigo que tínhamos, com a destruturação do ensino técnico (não estou a defender o regresso ao passado, nesses termos, mas a inflexão que se começou a registar no ensino, com o aparecimento das escolas profissionais ao nível de secundário), parece-me que vai nesse sentido, de repor, embora a experiência tenha muitos aspetos negativos; por outro lado, também a aposta que ficou um bocado queimada, por razoes políticas, na validação e na certificação de competências adquiridas on job, com a experiência traumatizante, de alguma maneira, nas novas oportunidades que vai demorar algum tempo a repor, mas ia também neste sentido tentar algum investimento social; realmente parece-me que está perdido.
E acabei por não ter tempo, mas por falha minha de desequilíbrio, de falha na economia na intervenção, para comentar com um bocadinho de mais atenção as questões da segurança social e das pensões. Talvez no debate possamos voltar a isso.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Economista, doutorado pelo Institut d’Etudes Politiques de Paris (1993).
Professor do ISEG-UTL.
Foi Secretário de Estado da Segurança Social (1995-99) e Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Serviços (2001-02).
Tem desenvolvido estudos sobre políticas sociais, tendo publicado diversos livros e artigos sobre o tema.
É actualmente Presidente do Conselho de Administração da Fundação INATEL.