Nas últimas décadas consolidou-se a convicção profunda de que o Estado deve garantir, da forma tão ampla quanto possível, os deveres de proteção social. Para tal, muito tem contribuído o pressuposto ético subjacente ao “contrato social” historicamente interiorizado por todos os cidadãos. Este princípio tem tido particular significado no setor da saúde.
A este facto não será, certamente, alheia a forma muito positiva como o sistema de saúde português evoluiu nos últimos trinta anos respondendo, globalmente, de uma forma adequada às questões do acesso e da qualidade.
É certo que subsistem muitos problemas de organização e de eficiência. A falta de clarificação de regras, no binómio público-privado, é disso um bom exemplo. A crise orçamental teve a vantagem de contribuir para uma nova atitude no setor da saúde, mais baseada na transparência, no rigor e na necessidade imperativa do escrutínio público à utilização dos recursos.
Este contexto, de grande abertura e de espírito de cooperação revelado pelos diferentes atores profissionais, corporativos e institucionais criou condições para a implementação de importantes medidas, de caráter reformista, no sistema de saúde em Portugal. Um bom exemplo tem sido a política do medicamento. Neste setor, as medidas introduzidas conduziram a uma maior aproximação das condições de mercado à realidade económica e social do país contribuindo, decisivamente, para o esforço de contenção da despesa pública, em saúde.
Subsistem, porém, algumas dúvidas. A experiência internacional tem revelado que nem sempre as reformas estruturais mais duradouras dependem apenas de um impulso restritivo. Neste contexto, a título de exemplo, a persistência de milhares de cidadãos sem médico de família ou a aplicação de taxas moderadoras desajustadas, nos cuidados de saúde primários, face à natureza da relação entre a oferta e a procura, podem vir a comprometer a eficácia das medidas no médio prazo.
A crise económica e financeira cujo epicentro, na Europa, teve lugar na Grécia aumentou a incerteza e a volatilidade das economias europeias. Vale a pena recordar que, no final de 2010, a dívida pública atingia na Grécia 142% do PIB enquanto a dívida externa da zona euro era de cerca 86% do PIB (Itália com 119%, Irlanda com 96% e Portugal com 93%).
Em Portugal, a inexistência de um modelo económico sustentado, a rarefação do sistema produtivo e a enorme dependência de largas faixas da população do papel protetor do Estado, no emprego e na segurança social, contribuíram para agravar a expressão social da crise económica e financeira.
O resultado traduziu-se num impressivo avolumar das desigualdades sociais, dos níveis de pobreza e de exclusão social com especial enfoque nos grupos mais vulneráveis da população – crianças, jovens e idosos.
No setor da saúde a pressão sobre a redução dos custos operacionais beneficiou, num primeiro tempo, dos cortes transversais efetuados sobre as remunerações deixando de fora medidas estruturantes como a reorganização da rede, a reforma dos modelos de organização e de gestão, a mobilidade dos profissionais bem como as questões relativas à combinação público-privado, nomeadamente, duplo financiamento e duplas coberturas, regime de convenções, clarificação das regras e relações entre os diferentes setores.
Registou-se um abrandamento significativo da reforma dos cuidados de saúde primários, nomeadamente, no alargamento da cobertura e na constituição de novas unidades de saúde familiar. Ao mesmo tempo registou-se uma estagnação no desenvolvimento da rede de cuidados continuados integrados agravando a resposta às necessidades de reabilitação de curta e de média duração.
É reconhecido que os contextos de crise agravam, de forma muito clara, a amplitude dos efeitos combinados entre a restrição da despesa pública em saúde e a significativa diminuição do rendimento das famílias.
A imprudente ausência de medidas de controlo e de monitorização dos impactos da crise e das restrições a ela associadas, no domínio da saúde, representa um elemento fortemente perturbador na medição dos efeitos e na minoração das consequências sobre as pessoas.
A discussão sobre a reforma do Estado é indispensável. Esta deverá ser centrada no debate sobre a dimensão estrutural e o peso do Estado deslocando-se da mera retórica orçamental para o plano das políticas globais. É fundamental definir, com rigor, qual a natureza do Estado que queremos perseverar, enquanto sociedade e qual o perímetro de responsabilidades que lhe deverão estar acometidas para o cabal cumprimento das respetivas funções.
Neste enquadramento há que ter em conta que, no setor da saúde, os eixos de reforma não se esgotam exclusivamente na mera apreciação económica dos modelos. As implicações morais, éticas, sociais e humanas das medidas de política de saúde extravasam largamente os domínios da análise puramente tecnocrática.
A opção por um modelo integrado é hoje reconhecida como a melhor forma de garantir os valores do acesso, da equidade e da solidariedade social. Para tal, é indispensável promover políticas ativas de solidariedade intergeracional mutualizando o risco entre ricos e pobres, jovens e idosos e entre saudáveis e doentes atenuando, desse modo, as desigualdades sociais.
A necessidade de investir na modernização do sistema de saúde, e a obrigação de garantir a respetiva sustentabilidade financeira não são, necessariamente, incompatíveis. A defesa de um sistema de saúde, moderno e sustentável, é condição imperativa para consolidar o seu importante papel na coesão social e no desenvolvimento humano.
Um sistema de saúde justo não dispensa a correção dos respetivos desequilíbrios estruturais. Dessa forma será mais fácil prevenir o risco de desinvestimento que, como sabemos, no setor da saúde compromete, inexoravelmente, a qualidade.
Nos próximos anos vamos ter de ser capazes de garantir o acesso a cuidados de saúde de qualidade num quadro extremo de restrição orçamental. Não há memória de desafio tão complexo e tão exigente. Se o fizermos com bom senso, rigor, transparência e sentido de justiça social e de equidade poderemos contribuir para a transformação decisiva do sistema de saúde que há muito tempo esperávamos. Dessa forma estaremos em condições de assegurar que os princípios fundacionais do serviço nacional de saúde – da universalidade e de equidade – se mantêm através de uma reforçada e duradoura garantia da sua sustentabilidade.
É fundamental que o sistema de saúde salvaguarde os seus valores de universalidade e de acesso sem cair na tentação de regredir décadas. O último relatório publicado pela Organização Mundial de Saúde, no final de 2010, é muito claro a esse respeito. Mais do que restringir direitos e coberturas, ou impor mais pagamentos individuais, é fundamental que os decisores políticos avaliem tecnicamente o modelo de financiamento e promovam a sua adaptação à realidade atual.
A conjugação da evolução clínica e tecnológica, com as profundas alterações nos padrões de morbilidade, e de caracterização demográfica impõem celeridade e objetividade quer na reflexão quer na tomada de decisão.
Os próximos anos serão, indiscutivelmente, muito exigentes obrigando a escolhas e opções muito difíceis. Os cidadãos terão um papel cada vez mais exigente, enquanto contribuintes, no acompanhamento da forma como os recursos públicos serão alocados nas diferentes componentes do sistema de saúde.
Por outro lado, será necessário refletir sobre a melhor forma de encontrar o caminho para uma nova geração de políticas públicas capazes de revitalizar os mecanismos virtuosos do modelo social europeu.
A defesa de um sistema de saúde, moderno e sustentável, é condição imperativa para consolidar o seu importante papel na coesão social e no desenvolvimento humano. Este será o maior desafio que se pode colocar a um Estado moderno, eficiente e solidário.
Atualmente, Presidente da Comissão Executiva do SAMS Prestação Integrada de Cuidados de Saúde.
Ministro da Saúde do XXI Governo Constitucional (2015-2018).
Foi Presidente do Conselho de Administração HPP Parcerias Saúde, SA.
Exerceu as funções de Presidente do Conselho de Administração do Hospital de Santa Maria, EPE, do Hospital Pulido Valente, EPE e do Centro Hospitalar Lisboa Norte, EPE.
É Professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL).
Exerce funções de docência universitária nas áreas da Administração e Gestão em Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa colaborando, regularmente, com diver