Caros amigos, colegas e meus Generais e Almirantes, pedem-me para durante uns minutos, dizer daquelas coisas óbvias, não é verdade, ensinar o Padre-nosso ao vigário, vir aqui falar em Cidadania, Nação e Democracia, é um exercício onde eu não trago absolutamente nada de novo, mas tentar fazer reflexões, carácter no geral, sem tirar muitas consequências práticas porque, infelizmente, Deus, ou o além, não me deram instrumentos para poder determinar com segurança a causa da presente crise, e, muito menos, me deram uma luz para eu poder indicar qual é o caminho. Portanto, estou cheio de dúvidas, sinto-me na encruzilhada e tenho tratado de temas, muito clássicos. Ainda há pouco questionava o Professor António Ventura sobre quem fundou a “Revista Militar”, e, numa breve pesquisa, foi-me dado concluir uma coisa muito simples, muito simbólica. Sim, o primeiro número sai em 1849, sim, foi um grupo de vinte e tal oficiais, orientado por um tal de Fontes Pereira de Melo, que decidiram simbolicamente fundar a revista no dia 1 de Dezembro de 1848, isto é, reafirmaram uma continuidade institucional. E qual era o espírito dos fundadores, da instituição que nos acolhe?
1848, vamos começar por aqui.
Tinha sido pouco tempo antes, o fim de uma guerra civil, de uma das mais dolorosas em Portugal, que tinha tido aquela intervenção final, de 1847, da convenção do Gramido, que foi precedida pela intervenção de uma divisão militar espanhola e de uma esquadra britânica, a dizerem que a realidade era a realidade de um certo protetorado, já então.
1848 já é um ano mais interessante, é um ano de um manifesto comunista, mas também é um ano em que aparece a democracia cristã e que há na história portuguesa um certo milagre. O milagre de termos conseguido ser independentes depois das invasões francesas, neste contexto da Europa do século XIX. E que fomos independentes gerindo dependências. Não nos esqueçamos que o primeiro grande tratado minimamente científico sobre estas matérias, é Almeida Garrett, de 1830, o “Portugal na Balança da Europa”.
Nós, muitas vezes, não reparamos que, neste contexto de confronto entre a Santa Aliança e os que pretendiam a Primavera dos Povos, em nome do princípio das nacionalidades, nos foi possível gerir as dependências, salvaguardando a vontade de sermos independentes. Itália, com toda a sua força, só o vai conseguir em 1860, e a Alemanha, com muito mais força, só em Janeiro de 1871 é que o concretiza. E como é que Portugal o conseguiu?
Acho que, se analisarmos as causas deste processo e inserirmos a própria instituição militar, neste contexto, e verificarmos o que tinha sido uma guerra civil dolorosa, explica o nascimento, a permanência, e alguma vitalidade do pensamento militar enquanto pensamento nacional.
Segundo a ideia que queria transmitir, e não vou falar muito da teoria específica da cidadania, assumida por esta geração que aqui está, que tanto a compreendeu como a praticou, sempre vou rearfirmar que invenção cultural que importa foi a da democracia, enquanto cidadania, que tem quase vinte e cinco séculos, a base de toda esta conceção do mundo e da vida radica precisamente do discurso de Péricles, já lá vão vinte e cinco séculos, convém repararmos que, ao longo de vinte e cinco séculos, o normal das organizações humanas, não obedeceu à ideia da cidadania e da democracia.
Algumas cidades gregas tiveram esta experiência, mas o normal foi a cidadania, enquanto democracia, ter sido usurpada, por coisas bem diversas. Foi usurpada claramente pelo conceito do Império. E o que se passou na Grécia vai repetir-se em Roma, com o fim da república romana, imediatamente substituída pelo conceito do império, que nega a polis, sucedendo a este a teocracia, com a religião a comandar a política, o que não permite cidadania, e a partir do século III depois de Cristo, o feudalismo, com a inevitável destruição da política.
A política é muito simples de explicar, é um indivíduo ser cidadão e poder participar nas decisões desse grupo, poder governar e ser governado, poder eleger os governantes, poder eleger os juízes, era assim que Aristóteles a definia, e não mudou muito.
Com o feudalismo, é evidente que a relação política terminou e regressámos, à Aristóteles, à casa, aquilo que em grego se chamava “Oikos”. E na casa não há uma relação política, na casa há uma relação de dependência entre quem comanda, o oikos despote dos gregos, ou o dominus dos romanos, donde veio o nosso dono.
Porque o dono não permitia cidadania na casa, e por isso é que a ciência que trata dos problemas da casa se chama oikos nomos. Na casa há uma relação entre um senhor e um súbdito, não há política. E de facto, durante séculos, a humanidade e a cidadania foram usurpadas, foi maligno. Como depois foi usurpada, por uma coisa a que se chama paternalismo, onde um pater, de onde veio o nosso patrão, também não admitiu a cidadania. Portanto, há uma relação de proteção, de encomendação, e nada disto é política. Por acaso, também não é política a ocupação, quando uma determinada comunidade política é ocupada por outra não há cidadania.
Também não foi política a colonização e também não me parece que a atual relação de protetorado não é totalmente política, porque entre um protetor e um protegido não pode haver a plenitude da relação da cidadania.
Segundo a observação: muito bem que somos todos cidadãos, que vivemos todos em democracia, mas será que a maior parte da humanidade ainda hoje vive em regime de cidadania? Não me parece: a maior parte das civilizações neste momento do planeta não pode ter cidadania, porque não tem o conceito básico, que permite a cidadania, que é o conceito de indivíduo, que é o conceito de indivisus, de indivíduo, de cidadão que participa na decisão. Mas este indivíduo foi uma coisa que levou séculos a criar, desde os estoicos gregos, com o cristianismo, o franciscanismo, o renascentismo, as revoluções atlânticas que partem da revolução inglesa e da revolução norte-americana.
Será que muitas civilizações têm este conceito? Bastava elencar uma série de grupos culturais atuais que são dominantes na humanidade, para chegarmos à conclusão que, muitas vezes, os nomes não correspondem à coisa nomeada. Isto é, nós somos uma minoria e temos de ter cuidado nas análises, temos para aí uma importantíssima Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948, Paris. Sim, documento fundamental, mas convém que a norma vá à frente da realidade.
Apenas me lembro que no fim dessa reunião de Paris um dos subscritores dinamizadores do documento, o grande filósofo Jacques Maritain, disse mais ou menos isto: “Chegámos todos a acordo, mas só não sabemos em quê”. Esta geração da Guerra Fria sabe perfeitamente como muitos nomes estão longe das coisas nomeadas. Aliás, Raymond Aron dizia uma coisa muito simples: quando nós falamos em civilizações democráticas ou de povos livres, nós sabemos o que é que isso quer dizer, porque há inimigos. De repente, finais dos anos 80, passou tudo a ser democrático, passou tudo a dizer a mesma coisa, mas não a praticar a mesma coisa, porque ela só pode ser praticada de uma forma civilizacional, isto é, de uma forma cultural, com instituições.
Eu estou aqui na casa do Curso Superior de Letras, que hoje tem outro nome, mas que é uma civilização, que é um projeto, por acaso um projeto nacional, equivalente ao projeto para que nasceu a instituição militar, mas nós, às vezes, não reparamos quando é que surgiram as coisas.
Vou exagerar e perguntar quando é que surgiu o Estado? Não vou falar antropologia! O Estado, como o conhecemos, apenas nasceu em Portugal em 1832/34, quando o governo da regência dos Açores reparou que 70% daquilo que o povo pagava como impostos não chegava lá acima, ao cofre central. Foi o Mouzinho da Silveira que esquematizou uma forma de o imposto não ficar pelo caminho.
Claro que tínhamos uma função pública militar, mas quem é que a exercia? A nobreza. Claro que tínhamos uma função educativa, ou uma função de proteção sanitária, mas quem é quem é que a exercia? A Igreja! Só com o Mouzinho é que racionalizámos e passámos a levar a norma, esta ideia básica de fazer chegar acima o imposto, para, depois, poder redistribuir os bens públicos.
Quando é surge instituição militar como nós a temos? Na mesma altura. É simples, é quando surgem escolas militares, é quando surge uma racionalidade a partir deste conceito de Estado, e nós, às vezes, embarcamos em muita história, sem vermos a realidade efetiva. A instituição militar em Portugal é uma coisa estruturada por Sá da Bandeira e por toda essa geração liberal e constitucional.
Agora vou tentar avançar para outro lado, e até nem vou ser assim muito crítico. Com efeito, havia uma coisa chamada Polis na Grécia que, em Roma, deu civitas, donde veio cives, o cidadão, de onde também vem civil, diga-se de passagem. Porque civil, na sua origem, é a mesma coisa que político, um tem a ver com civitas e outro tem a ver com polis. Isto que em alemão deu burgo, e o habitante do burgo é o burguês. Curiosamente, o nosso infante D. Pedro, que é o primeiro a escrever em português sobre estas coisas políticas, no Tratado da Virtuosa Benfeitoria, gosta mais de utilizar a palavra comum, com o mesmo significado.
Nós não reparamos, muitas vezes, que a nossa forma de limpar o animalesco é fazermos civilização ou urbanizarmos coisas que são selvagens, polindo, de polis. Porque a cidadania é este esforço de percebermos que o ar da cidade liberta. Vejam a nossa primeira grande constituição política, a que surge a partir das cortes de Coimbra de 1385, contra o feudalismo, contra o senhorio de honra, contra o Pacto de Salvaterra, em nome do senhorio natural, em nome do princípio expresso no discurso João das Regras, o discurso de comunitarização, contra o feudalismo.
1383-1385 foi das primeiras revoluções pós-feudais da Europa. Uma cidadania que foi usurpada naturalmente, por aquilo que se veio a chamar absolutismo. Onde aquilo que o príncipe diz tem valor de lei. Onde o príncipe não está sujeito à própria lei que edita. Porque quem manda diz que o Estado é ele. Contra as cortes de 1385, contra aquilo que Jaime Cortesão chamava os factores democráticos da formação de Portugal.
A nossa geração, fundadora da Revista Militar, teve umas guerras civis para aplicar isto, lutou, criou, instituiu. Uma civilização que produziu a revolução de 1820. Onde se considera a liberdade não é uma inovação, é a restituição ao povo de suas antigas e saudáveis instituições, corrigidas e aplicadas, segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado, é a restituição dos inalienáveis direitos que a natureza nos concedeu como conserva todos os povos e os seus maiores constantemente exercitaram e zelaram e de que somente à um século foram privados ou o sistema do governo.
Ou pelas falsas doutrinas, com que os visa aduladores dos príncipes confundiram as verdadeiras e sãs noções do direito público. Isto é, as cortes da constituição não é coisa nova neste reino, são os nossos direitos e o dos nossos pais.
E, finalmente, a última conquista da geração do século XIX, a nação. Não vou fazer a coisa complicada, citando dezenas de teorias, sobre se é o Estado que faz a nação, ou se é a nação que faz o Estado. Apenas quero dizer uma coisa da escola sistémica, que uma nação é uma comunidade de significações partilhadas, e que o controle de uma nação não se faz do Estado para o povo, de cima para baixo, faz-se por signos.
Uma nação é o Eusébio, Amália e o Figo, é aquilo que nós comungamos como significações, estruturais partilhadas. E nós temos uma que, segundo dizem, vem de 1140, mas a vamos sucessivamente refazendo. Porque se a não tivéssemos reinventado várias vezes, conforme as luzes dos séculos e as circunstâncias dos tempos, já estávamos mortos e em arquivo.
Trata-se, contudo, de uma realidade que não é pacífica, até porque a maior parte da humanidade não tem liberdade nacional, isto é, não tem liberdade de uma nação constituir um Estado. Nós por acaso somos um acaso procurado, uma exceção no contexto da Europa. O que só foi possível, depois de muitos séculos de reinvenção.
Voltando ao século XIX, importa reparar que a comunidade de significações partilhadas assentava, sobretudo, na máquina de formar soldados, no aparelho educativo e no aparelho burocrático. Até estamos aqui, numa Faculdade de Letras, que nasceu, sobretudo, para formar professores, gerando, então, aquela legião da república dos professores que dava ao povo a língua-pátria, que dava uma história que nos reinventava.
É um sonho muito simples, mas é um sonho que precisa de muito trabalho, de muita clarificação, de muitas instituições e de pouca desinstitucionalização, destes corpos que formaram a pátria. Porque a pátria não foi feita de cima para baixo. Não foi nenhum ministro que alguma vez que nos disse o que era pátria, foram as instituições coletivas, sobretudo ao longo do século XIX e do século XX, e espero eu que ao longo do século XXI.
Muito obrigado.
Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra em 1974, obteve o grau de doutor em ciências sociais, na especialidade de ciência política, pela Universidade Técnica de Lisboa em 1990.
Foi assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (1976-1985) e continuou a sua carreira docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, onde é professor catedrático do grupo de ciências jurídico-políticas.
Exerceu também o cargo de professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, entre os anos letivos de 1996-1997 e de 2004-2005.
Foi fundador e membro da primeira direção da Associação Portuguesa de Ciência Política.
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