Do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), aprovado recentemente, retira-se do seu articulado a intenção de levantar uma unidade militar de ajuda de emergência, com a ressalva cautelar de não poder haver lugar ao aumento de efectivos das Forças Armadas (FA).
Na realidade, trata-se de um desígnio perfeitamente adequado às missões das FA, no sentido do apoio às populações, em situações de calamidade e catástrofe, através de um levantamento de capacidades que, de forma autónoma, possam utilizar os seus meios orgânicos passíveis de utilização dual.
Embora podendo questionar-se o timing desta intenção, uma vez que, eventualmente, por desconhecimento ou distração do legislador, as capacidades inerentes aquele desígnio já estavam levantadas, organizadas e testadas pelo Exército, desde 2011, releva-se o facto da matéria ter sido inscrita no diploma em questão.
Na realidade, em 2011, perante um quadro de graves calamidades naturais que assolaram várias regiões do globo, impunha-se uma reflexão atempada sobre a optimização dos recursos disponíveis para fazer face, no país, a situações daquela natureza, por parte das entidades responsáveis.
Não estando Portugal isento da ocorrência de catástrofes e calamidades naturais, que representassem graves riscos para a sobrevivência e qualidade de vida da sua população, o Exército Português, tendo em consideração as suas capacidades, entendeu que a sua acção, neste domínio, poderia ir mais além do que a colaboração residual com o Serviço Nacional de Protecção Civil (SNPC), como vinha acontecendo.
Acentuava-se, assim, o reconhecimento de que alguns meios do Exército reuniam condições para poderem ser mais rentabilizados no âmbito do chamado duplo uso, com a particularidade de alguns deles apresentarem capacidades únicas, no panorama nacional, que importaria não desperdiçar.
Nesse sentido, de acordo com orientações do Comando do Exército, teve lugar um conjunto de estudos e trabalhos, no Comando da Logística, com o objectivo de levantar, organizar e implementar uma nova capacidade, que, agregando pessoal, meios e equipamentos, pudesse garantir uma resposta autónoma e credível, por parte do ramo, face a cenários de emergência e catástrofe, que pudessem ocorrer no território nacional (TN).
Tendo, já, em consideração, na altura, as sérias limitações ao nível dos efectivos existentes, a par das pesadas restrições de ordem orçamental que se faziam sentir, foi levantado um modelo de estrutura que, organizacionalmente, pudesse responder aquele desafio, sem comprometimento da missão principal das Unidades e Órgãos a empenhar.
Desta forma, foi levantada a, denominada, Unidade Logística de Emergência (ULE), tendo por base os meios disponíveis, com características de utilização dual, na premissa da impossibilidade de aumento de efectivos, e na indisponibilidade de dispor de outros meios e equipamentos, que não fossem aqueles, que, à época, eram os orgânicos do Exército.
O desafio centrava-se, assim, na organização e preparação de pessoal e meios com vista à estruturação e empenhamento de uma nova capacidade do Exército, com base nas Unidades e Órgãos do Comando da Logística, onde residia a quase totalidade dos equipamentos e meios a utilizar, bem como dos efectivos indispensáveis à respectiva operação e emprego.
Deste modo, e de acordo com o despacho do General Chefe do Estado-Maior do Exército (Gen CEME), de 3 de Junho de 2011, a ULE foi levantada, tendo em consideração os seguintes pressupostos:
– O Exército não dispunha, à data, de nenhuma capacidade desta natureza;
– Tratava-se de uma Unidade de escalão companhia, com um grau de prontidão de 4 a 6 horas, que deveria estar à ordem do Gen CEME;
– Considerava-se que seria uma Unidade resultante da agregação de capacidades existentes, guarnecida exclusivamente por pessoal em acumulação de funções, e em ordem de batalha (OB);
– Os meios e equipamentos necessários ao preenchimento do respectivo quadro orgânico de material encontravam-se ao serviço, nomeadamente, nas Unidades e Órgãos do Comando da Logística;
– Após solicitação ao Exército para colaborar nas acções de protecção civil, esta Unidade poderia conduzir a sua acção, caso necessário, sob o comando operacional do Comando das Forças Terrestres (CFT).
Como possibilidades, a ULE, através dos seus meios, podia garantir a montagem de um campo de desalojados com uma capacidade base de alojamento, alimentação, serviços e apoio sanitário para quinhentas pessoas, nas primeiras 24 horas, após activação, e com possibilidades de expansão até mil pessoas a instalar de forma faseada, após aquele período de tempo, em qualquer ponto do TN, da seguinte forma:
Numa primeira fase, 24 horas após activação, garante:
– Capacidade inicial de alojamento, alimentação (ração de reserva) e serviços para quinhentos desalojados, bem como o respectivo transporte;
– Avaliação de infra-estruturas e apoio geográfico na área sinistrada;
– Triagem, reanimação, retenção limitada e evacuação de indisponíveis e doentes críticos.
Numa segunda fase, decorridas as primeiras 24 horas, e até 48 horas após a activação, assegura:
– Capacidade intermédia de alojamento, confecção e distribuição de alimentação quente, bem como serviços de lavandaria e banhos para quinhentos desalojados;
– Fornecimento de energia e iluminação no campo de desalojados;
– Triagem, reanimação, retenção acrescida e evacuação de doentes críticos.
Após as primeiras 72 horas, depois da activação, e numa terceira fase, garante a totalidade das suas restantes capacidades na zona sinistrada, e o reforço do apoio em alojamento, alimentação e serviços até mil desalojados.
Com um total de 180 militares (20 Oficiais, 45 Sargentos e 115 praças), a estrutura da ULE foi desenhada de forma a garantir as funções logísticas de reabastecimento e transportes, manutenção, evacuação e hospitalização, e serviços.
Sendo constituída à custa dos meios e equipamentos das Unidades e Órgãos, na dependência do Comando da Logística, e ainda, pelos módulos de comunicações e de segurança do CFT, a ULE assumia, desta forma, características modulares, com um grau de prontidão adequado à exigência da sua missão.
Figura 1
Neste sentido, a organização modular da ULE apresentava-se da seguinte forma:
Módulo de comando
Garantido pela Unidade de Apoio da Área Militar Amadora Sintra (UnApAMAS), no que diz respeito ao respectivo comando e controlo.
Módulo de reabastecimento
O Depósito Geral de Material do Exército (DGME) e a Manutenção Militar proporcionavam o reabastecimento de artigos das classes I, II, III, VII e IX, bem como o transporte dos artigos das classes I e III.
Figura 2
Módulo de manutenção
Assegurado pelo Regimento de Manutenção, no domínio da manutenção de material e viaturas da ULE.
Figura 3
Módulo de energia
Com o fornecimento de energia, instalação e manutenção da rede eléctrica no campo de desalojados a ser garantido pelo Centro Militar de Eletrónica.
Figura 4
Módulo de serviços
A UnApAMAS detinha, ainda, como responsabilidade acrescida o fornecimento de alojamento, alimentação confeccionada e serviços de banhos, latrinas e lavandaria.
Figura 5
Módulo de apoio sanitário
Ao Hospital de Campanha, Laboratório de Bromatalogia, Laboratório de Defesa Biológica e Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos competiam a triagem e reanimação, evacuação sanitária, retenção limitada para doentes críticos, consultas médicas, apoio psicológico, farmácia, segurança alimentar e epidemiológica, e, ainda, o reabastecimento de artigos classe VIII.
Módulo de avaliação de infra estruturas e apoio geográfico
Este módulo era garantido pela Direção de Infraestruturas do Exército e pelo Instituto geográfico do Exército, executando o reconhecimento e selecção das áreas para instalação do campo de desalojados, bem como o reconhecimento e avaliação da estabilidade do edificado na área sinistrada, a par de uma actualização da informação geográfica da zona sinistrada.
Figura 6
Módulo de transportes
Assentava na participação do Regimento de Transportes com a afectação dos meios indispensáveis ao transporte de desalojados para o respectivo campo, bem como ao transporte de bens e equipamentos de natureza vária.
Figura 7
Deste modo, o modelo da ULE estruturava-se na agregação funcional dos materiais e equipamentos das várias Unidades e Órgãos referenciados, bem como na concentração, à ordem, dos respectivos módulos e parte significativa dos seus meios, numa unidade pré-definida, situação que facilitaria a formação e treino dos efectivos envolvidos.
Atendendo à rapidez e ao elevado grau de preparação exigido, o material e equipamento a utilizar deveriam encontrar-se preparados, contentorizados ou rapidamente contentorizáveis, ou, ainda, paletizados, devendo a capacidade de transporte, em segurança e rapidez, constituir-se como atributo fundamental para o sucesso da manobra.
A ULE foi formalmente apresentada no DGME, em Benavente, por ocasião do dia festivo do Comando da Logística, em 19 de Maio de 2011, apresentando a sua organização e capacidades na presença de várias entidades, destacando-se o, então, Ministro da Defesa Nacional (Dr. Augusto Santos Silva) e o, então, Chefe do Estado-Maior do Exército (General José Luís Pinto Ramalho).
Para enquadrar esta demonstração, foi levantado um cenário de ocorrência de um abalo sísmico na região do Vale do Tejo, afectando a Área Metropolitana de Lisboa, de que teriam resultado centenas de mortos e feridos, bem como milhares de desalojados, para além de extensos danos no edificado e nas infra-estruturas da zona afectada.
Foi, então, solicitado ao Exército o apoio em assistência médico-sanitária, evacuação e hospitalização de feridos, reconhecimento e avaliação de danos em infraestruturas, actualização da informação geoespacial, bem como alojamento, alimentação e serviços para os desalojados, vítimas da catástrofe.
A demonstração dinâmica visou demonstrar as actividades que se desenrolariam no âmbito de uma situação daquela natureza, fazendo uso das capacidades, meios e equipamentos duais do Exército, disponíveis para o efeito, envolvendo noventa e dois efectivos, trinta e duas viaturas, empilhadores, grupos geradores, atrelados de cozinha, de banhos, de lavandaria, tendas de alojamento, contentores hospitalares e demais material complementar, num somatório de várias toneladas.
Conjugando os diversos módulos constituintes da ULE, então, foi levantado um “campo de desalojados”, com capacidade para alojar e prestar os respectivos serviços de apoio a quinhentas pessoas, com as seguintes áreas:
Área de apoio sanitário
Local onde se instalaram as componentes do hospital de campanha, farmácia e equipa de emergência biológica, preparados para prestar cuidados de saúde de emergência, cirurgia de estabilização, cuidados continuados, tratamentos comuns, prevenção e controlo de doenças infeciosas, epidemias e outras doenças.
Figura 8
Área de alojamento e serviços, constituída por:
– COMANDO E ADMINISTRAÇÃO, tendo como objectivo o registo de desalojados e a administração e controlo de todas as actividades logísticas a desenvolver; a avaliação de danos em infra-estruturas, e o levantamento e a produção de informação geográfica conveniente;
– ZONAS COMUNITÁRIAS DE ALOJAMENTO E SERVIÇOS, agrupados em três blocos (cento e vinte e oito pessoas cada), constituídos, cada um, por dezasseis tendas de campanha climatizadas, duas áreas de instalações sanitárias e duches, bem como lavandaria e depósitos de água, com capacidade para apoiar até trezentas e oitenta e quatro pessoas, com capacidade de expansão;
– ÁREA DE APOIO, guarnecida com tendas de campanha de cinco arcos para serviços de refeitório, bem como cozinhas de campanha, contentores frigoríficos de conservação de víveres, depósito de água e estação de tratamento e purificação de águas para armazenagem, confecção e distribuição de alimentação:
– SERVIÇOS DE APOIO, responsáveis pela recolha, transporte, armazenagem de géneros e combustíveis; reabastecimento de materiais e equipamentos, com vista à distribuição de utensílios e artigos de higiene pessoal, vestuário e agasalhos; evacuação e transporte de indisponíveis e material diverso; fornecimento de energia eléctrica, e manutenção e reparação de material e equipamento orgânico.
A ULE materializava, desta forma, publicamente, uma resposta autónoma do Exército para intervir em situações de emergência e catástrofe, traduzida num modelo integrador das capacidades duais do Ramo, em apoio às populações sinistradas, em qualquer ponto do TN.
Neste sentido, devem ser interpretadas as palavras do, à data, Ministro da Defesa Nacional, ao sublinhar a importância do Exército ter ficado melhor preparado para intervir mais activamente na ”…sustentação da protecção civil e na promoção do desenvolvimento e bem estar das populações…”.
Concluindo, o Exército, pela sua organização, conhecimento e experiência, e pelos meios e equipamentos de que dispunha, demostrava que se encontrava especialmente capacitado para prestar o apoio logístico de emergência, tanto na fase de resposta, com na fase inicial da recuperação de um desastre ou catástrofe, com especial destaque para o apoio humanitário, levantando, assim, a sua Unidade Logística de Emergência, com base na capacidade integradora dos meios orgânicos existentes nas suas Unidades, Estabelecimentos e Órgãos.
A ULE assumia-se como uma unidade de composição modular, com organização variável, dependendo da situação e das condições de emprego, em que a respectiva estrutura orgânica de pessoal se encontrava em ordem de batalha, e em que os materiais e equipamentos necessários à sua acção eram orgânicos do Exército, com possibilidades de garantir apoio logístico humanitário até mil pessoas, em qualquer ponto do TN, e com um grau de prontidão de 4 a 6 horas, naturalmente sem contar com o deslocamento para a zona de missão.
As possibilidades da ULE, publicamente apresentadas, foram reconhecidas pelo Ministro da Defesa Nacional, à época, que destacaria a importância e a oportunidade desta nova capacidade do Exército, no quadro do reforço da protecção das populações, em ambiente de emergência e catástrofe.
Poderia, assim, interrogar-se, agora, do intento expresso no recém aprovado CEDN, sobre o levantamento de uma denominada Unidade Militar de Ajuda de Emergência, quando essa capacidade já tinha sido antecipada, no tempo e na iniciativa, pelo Exército, não carecendo, tão pouco, do aviso prévio do actual Ministro da Defesa Nacional sobre a impossibilidade de aumento dos efectivos autorizados.
Desconhecendo a resposta, resta aguardar que o trabalho, entretanto, desenvolvido nesta matéria, no interesse das Forças Armadas e do País, possa servir para garantir o melhor produto possível numa área de intervenção tão importante quanto sensível para a segurança e bem estar das populações, e que não se resuma, simplesmente, a uma nova forma de reengenharia funcional, com o objectivo de ocupar uma qualquer Unidade, vítima de mais uma (?) reorganização do dispositivo territorial do Exército.