Nº 2547 - Abril de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Hospital das Forças Armadas (uma capacidade ameaçada)
Tenente-general
Joaquim Formeiro Monteiro

Após o términus das campanhas em África, com a correspondente retracção dos sistemas de forças existentes nos diversos Teatros de Operações, deu-se origem a um processo de reestruturação das Forças Armadas (FA), que incluiu, naturalmente, o Serviço de Saúde Militar (SSM). Assim, a reestruturação da saúde militar, hoje, assume-se como um desiderato, que desde há muito tem estado presente nas preocupações das estruturas superiores das FA.

Foi nesse sentido que, na segunda metade da década de setenta, se constituiu a Comissão para a Integração dos Serviços de Saúde das Forças Armadas (CPISFA), de que resultou a criação da Escola do Serviço de Saúde Militar (ESSM), em 1979, e mais tarde se assistiu à integração de alguns serviços hospitalares, designados como Serviços de Utilização Comum (SUC), como foram os casos da Unidade de Hemodiálise do Serviço de Nefrologia do Hospital Militar Principal (HMP), do Serviço de Medicina Nuclear do Hospital da Força Aérea (HFA) e do Serviço de Infecciologia do Hospital Militar de Belém (HMB), entre outros.

Posteriormente, diversas iniciativas foram sendo tomadas, como foi o caso dos projectos de construção de raiz de um hospital militar na Rua de Artilharia 1, ou na proximidade do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, em Lisboa, ou, ainda, mais recentemente, o projecto da construção adicional de um edifício na área da Casa de Saúde Militar, na Estrela, no sentido de aumentar, expressivamente, a capacidade de internamento hospitalar instalada.

Goradas todas estas iniciativas, e por orientação do Ministro da Defesa Nacional (MDN) do XVII Governo Constitucional, constituiu-se um grupo de trabalho (GT) presidido pela Dr.ª Ana Jorge, posteriormente ministra da saúde daquele governo, com elementos dos três ramos das FA, e com um representante do Ministério da Saúde (MS), dele resultando um relatório sobre a reorganização dos SSM, em que se destacava a proposta de levantamento de um hospital de agudos nos terrenos da Base Aérea do Lumiar, da Força Aérea, e de um de hospital de retaguarda, no HMB, do Exército.

Igualmente, na vigência do referido governo, e no quadro das orientações definidas pelo Programa para a Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), com vista à reorganização da Saúde Militar, preconizava-se a criação de um órgão na dependência directa do MDN, e de um Hospital das Forças Armadas (HFAR), na dependência do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), organizado em dois polos hospitalares, um em Lisboa e outro no Porto. O órgão a criar seria responsável pela concepção, coordenação e acompanhamento das políticas de saúde a desenvolver no âmbito militar, bem como de articulação com outros organismos congéneres do Estado, no qual deviam estar representados o MDN, as Chefias Militares e entidades relevantes com responsabilidade no âmbito da saúde, a nível nacional.

A nível hospitalar, apontava-se para a manutenção e valorização do Hospital Militar Regional N.º1, a par do redimensionamento da estrutura hospitalar militar existente na área de Lisboa, através da racionalização e concentração das capacidades existentes. Constituía-se como objectivo o estabelecimento do polo hospitalar das FA, em Lisboa, atendendo a um faseamento programado em que, no curto prazo, se procederia à racionalização e concentração de valências médicas, constituindo-se os designados SUC, guarnecidos por pessoal militar e civil dos três ramos das FA e, no médio prazo, se redimensionava a estrutura hospitalar militar, através da respectiva concentração.

Para garantir esse objectivo, haveria que ponderar a manutenção da cultura e das especificidade próprias dos Serviços de Saúde de cada ramo das FA, a par da necessidade de obter a eficácia e a prontidão do Sistema a implementar, tendo em vista evitar rupturas, provavelmente difíceis de superar, no curto prazo. Entretanto, de relevar que o modelo de SSM proposto não dispunha de qualquer organização administrativa e logística própria, quer no âmbito do Ministério da Defesa Nacional quer na orgânica do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), capaz de responder aos problemas de um sistema complexo como é, efectivamente, um SSM. A sua implantação teria, assim, de ser criteriosamente monitorizada, de forma a minimizar os prováveis desfasamentos entre as medidas a implementar e os respectivos resultados, devendo procurar-se, em permanência, a eficácia indispensável na prestação dos respectivos serviços.

Por outro lado, no âmbito do programa do XVII Governo Constitucional, no que se referia à modernização administrativa e à melhoria da qualidade dos serviços públicos, importava concretizar os modelos organizacionais das estruturas superiores da Defesa Nacional e das Forças Armadas, em concordância, nomeadamente, com a Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), aprovada pela Lei Orgânica n.º 1-A/2009, de 7 de Julho, tendo sido, neste quadro que, com a Lei Orgânica do EMGFA, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 234/2009, de 15 de Setembro, foi dada existência legal ao HFAR.

Deste modo, o XVII Governo Constitucional deu início a um conjunto de trabalhos, tendo em vista a reestruturação dos SSM que, perante a extrema sensibilidade do assunto, acabaram por não ter continuidade na respectiva vigência, levando o próprio MDN, Prof. Doutor Severiano Teixeira, a reconhecer que: “(…) embora seja consensual a necessidade de criação de um hospital único para as Forças Armadas, por racionalização de infra-estruturas e recursos humanos, para garantir uma melhor qualidade de serviços (…) a reforma para o sector da Saúde Militar (…) ficou condicionada pela sensibilidade da questão (...) ficando por concluir este processo, em tempo útil, mas sendo necessário e urgente que se venha a concretizar, em prol do bem comum de todos os militares (…)”.

As acções concretas sobre esta matéria só viriam, entretanto, a ocorrer após a tomada de posse do novo MDN, Prof. Doutor Augusto Santos Silva, que, através de despacho próprio, implementou a constituição de um GT, para o efeito, presidido pelo Director-Geral de Pessoal e Recrutamento (DGPRM) do seu Ministério, e onde tinham lugar os representantes do CEMGFA e dos Chefes dos três ramos das FA, bem como dois representantes do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Aquele GT que, no decurso da sua actividade, desenvolveu várias sessões de trabalho com a colaboração de entidades exteriores, casos do Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH) e da Antares Consulting, apresentou, nas respectivas conclusões, um programa funcional de um HFAR a construir em Lisboa, com um valor estimado da ordem dos 59 milhões de euros, não acrescido de IVA. Este relatório não foi, no entanto, subscrito pelo Exército, por discordância sobre o nível da urgência a implementar, que apresentava uma dimensão assaz redutora face ao serviço instalado no, ainda, HMP, bem como pela ausência de Unidades de Pediatria e de Hemodiálise no modelo proposto.

Entretanto, começaram a ser desenvolvidas acções de concentração das diversas especialidades médicas comuns aos quatro hospitais militares dos três ramos das FA, em Lisboa, de forma faseada, processo que, por ausência de uma direcção política suficientemente firme, se arrastou em demasia, sem a eficácia necessária e com evidentes prejuízos para os utentes do SSM.

Desta forma, aquando da demissão do XVIII Governo Constitucional, a situação dos hospitais militares, em Lisboa, era já notoriamente disfuncional e de certa forma caótica, com uma Unidade Hospitalar na Estrela e outra no Lumiar, com o Hospital de Marinha a funcionar sob a justificação dos Serviços da Câmara Hiperbárica ali instalada e, simultaneamente, deslocalizando meios humanos e equipamentos para o Centro de Saúde do Alfeite, e com o HMB já desactivado.

Em 2011, ao tomar posse o XIX Governo Constitucional, a situação era comparável a estar-se no meio de uma ponte frágil, sobre um precipício. Seguir em frente, de preferência de forma bem estruturada, ou retroceder, haveria que tomar uma decisão.

Neste contexto, o MDN decidiu levantar uma equipa técnica para a análise da situação, constituída pelo Professor António Sarmento, seu familiar, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, pelo Coronel médico António Cruz, na situação de reserva, ex-subdirector do Hospital Militar Regional nº1, pelo Capitão médico António Gonçalves, na situação de reforma, por representantes dos Ministérios das Finanças e da Saúde e, ainda, pelo incontornável DGPRM, que já tinha integrado o GT anteriormente referido, ao qual havia presidido.

As conclusões do relatório final da referida equipa técnica foram no sentido de organizar o polo de Lisboa do HFAR, no Lumiar, com uma remodelação dos horários de funcionamento, de forma a permitir o trabalho por turnos, obrigando, no entanto, a ocupar espaços cobertos, sem capacidade para o trabalho regular. Igualmente, dava lugar à constituição de um serviço de urgência, discutindo-se se deveria ser de nível básico ou com outra configuração funcional, contudo, sempre de nível inferior ao existente no ex-HMP. No mesmo relatório era, também, defendido o levantamento de uma área com vista à organização de um Campus de Saúde Militar, no espaço que, do antecedente, vinha sendo ocupado pela Base Aérea do Lumiar.

Para o efeito, foi estimado um valor da ordem de 20 milhões de euros o qual, apesar de muito superior aquele que tinha sido considerado como necessário pelo Exército para as remodelações e adaptações na área da Estrela, com vista à implementação do HFAR (1 milhão de euros), não terá constituído entrave (?) para a decisão ministerial que se seguiu, mesmo depois de se terem concretizado intervenções muito significativas no serviço de urgência do ex-HMP, com o apoio do MDN da altura.

Foi assim que, nos anos de 2012 e 2013, após a nomeação da direcção do HFAR, em 7 de Setembro de 2012, se deu início a uma calendarização forçada e irrealista, com acentuadas deficiências de planeamento da transferência e instalação de serviços para o Hospital da Força Aérea, co-localizado na Base Aérea do Lumiar, com data limite fixada para 31 de Dezembro de 2013. Encerrando primeiro o Hospital de Marinha e mantendo-se, no entanto, em funcionamento a câmara hiperbárica ali residente, com vista a integrar o futuro Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica, a levantar no HFAR, com um custo avaliado em 0,7 milhões de euros, sem IVA, seguiu-se, finalmente, a Unidade Hospitalar da Estrela, no prazo fixado.

Estas acções decorreram com a nítida percepção, por parte dos profissionais de saúde que prestavam serviço nos Hospitais Militares dos ramos, de que o caminho que estava a ser percorrido se apresentava precipitado e confuso, contribuindo, decisivamente, para a respectiva afectação emocional e psicológica, pelos evidentes constrangimentos de ordem pessoal e profissional decorrentes, situação bem plasmada nas múltiplas queixas e reclamações, naquele âmbito, apresentadas. No mesmo sentido, constatou-se uma clara desvantagem para os militares e respectivas famílias pois, numa larga percentagem, idosos e dependentes transitaram de hospitais com uma excelente inserção urbana, em zonas de fácil acesso, para um local periférico e distante do centro da cidade e mal servido pela rede de transportes públicos existente.

Entretanto, a agravar a situação, devido à concentração dos universos de utentes dos três ramos das FA, em paralelo com uma deficiente organização dos serviços, vem-se assistindo, desde o início do processo, a uma manifesta falta de capacidade de resposta do HFAR às necessidades dos utentes, materializada na impossibilidade de marcações de actos médicos de qualquer natureza, por outra via, que não a exclusivamente presencial, ao mesmo tempo que as filas de espera para a marcação de consultas, exames e diagnósticos se prolongam por largos períodos de tempo, perante o desespero e os elevados prejuízos para as condições de saúde de quem procura o apoio médico a que tem direito, em claro desrespeito pelas suas necessidades e expectativas.

Esta realidade só não terá, ainda, atingido níveis de ruptura mais evidentes, porque os utentes, quebrando os seus laços tradicionais com o SSM, vêm, progressivamente, procurando noutras instituições de saúde convencionadas aquilo que não conseguem obter no HFAR, com os consequentes custos acrescidos para a Assistência na Doença aos Militares (ADM), que seria importante quantificar, a não ser que se pretenda escamotear a questão para se poder justificar, exclusivamente, a diminuição progressiva do apoio social prestado pelo IASFA, por via da continuada redução orçamental imposta (?).

Claramente que este impacto negativo nos cuidados de saúde prestados, bem como no número de doentes assistidos e na respectiva casuística, condição esta indispensável ao HFAR para permitir gerar as necessárias sinergias, no sentido de poder garantir serviços idóneos em termos assistenciais e formativos, veio acrescer reconhecidos prejuízos à qualidade do apoio que o Hospital presta, bem como à sua credibilidade junto do potencial universo que deveria apoiar.

Por outro lado, o denominado Serviço de Urgência do HFAR, funcionando num regime de atendimento de nível inferior ao anteriormente existente no ex-HMP, serve, não raras vezes, apenas como simples local de triagem e de reenvio para as urgências dos hospitais civis, provocando justificadas críticas, bem como situações graves para os doentes que a demandam.

A Direcção do Hospital, confrontada com esta realidade, a par de outras situações igualmente gravosas, nomeadamente a manifesta falta de camas hospitalares existente, vem tentando fazer passar, publicamente, uma realidade distinta, afirmando recentemente que “(…) o Hospital das Forças Armadas está em pleno funcionamento e tem os recursos de internamento suficientes para receber os militares e os membros da família militar (…)”, afirmação, que, infelizmente, se tem vindo a verificar não corresponder exactamente à realidade dos factos.

A actual falta de resposta funcional do HFAR assume uma dimensão de tal forma crítica que o actual MDN, o mesmo que impôs o processo de reorganização do sistema hospitalar militar, subscrevendo a sua organização e funcionamento com os resultados que estão à vista de todos, foi obrigado a dar cobertura à transferência dos utentes das áreas de hemodiálise e de psiquiatria para o Hospital da Cruz Vermelha e para a Clínica de São José, respectivamente, ao mesmo tempo que, em casos de falta de vagas para internamento no HFAR, situação, aliás, recorrente, se assiste ao reenvio de doentes para aquele Hospital.

Como nota final, conclui-se que a falta de eficiência e de sensibilidade demonstrada em todo este processo, só se justificará pelo facto do actual MDN se ter rodeado, neste âmbito, de entidades detentoras de conhecimento manifestamente insuficiente sobre a especificidade dum serviço de saúde militar, e sobre as necessidades concretas dos militares e respectivas famílias, neste domínio, prejudicando seriamente uma reestruturação que, sendo indispensável, acaba por levantar fortes dúvidas e legítimas suspeitas quanto à evolução pretendida para a Saúde Militar, a médio prazo.

Como resultado, os militares contam hoje com um hospital que resultou dum processo caracterizado por um planeamento mal formulado, baseado em hipóteses pouco fiáveis, mal conduzido e pior implementado, que conduziu à perda irreversível de valências clínicas de reconhecido mérito e de uma experiência forjada por décadas de organização, trabalho e dedicação de várias gerações de profissionais da saúde militar.

A ausência de uma capacidade de resposta eficaz e credível, acentuada pela falta progressiva de meios humanos, materiais e financeiros, a par de conceitos organizacionais de eficiência duvidosa, permite, com legitimidade, interrogar se a situação criada não estará programada para justificar, quando politicamente oportuno, a redução do HFAR a um mero centro clínico, com o encerramento de serviços hospitalares estruturantes, e tendo como fim último a sua integração nos hospitais públicos do SNS (?).

Perante uma ameaça desta natureza, deveriam os Chefes Militares estar atentos, não permitindo, de forma alguma, que a actual situação da saúde militar se continue a degradar de forma continuada, exigindo à tutela política as condições indispensáveis para o levantamento de um modelo hospitalar que possa responder com eficiência e prontidão às necessidades específicas dos militares, nos campos da saúde operacional e assistencial, e onde as suas famílias possam ter o lugar que lhes é devido, de acordo com os direitos que estão regulados nas leis da República, e claramente explicitados na Lei da Condição Militar.

 

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O autor escreveu este trabalho em consonância com o anterior acordo ortográfico, não autorizando a respectiva transição para o novo acordo.

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2014-08-08
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by CMG Armando Dias Correia