RM, 67, 1, Jan, 1915, pp. 19-41
Ao rebentar o agosto ultimo o conflito europeu envolvendo nas suas malhas as maiores potencias mal pensávamos que Portugal, país pequeno, de quasi nulos recursos militares, colocado no extremo ocidente da Europa, afastado portanto do teatro de operações, havia também de sofrer tão amargamento, como acaba de sofrer, as consequências das ambições do povo germanico, que firmando no seu valor militar pretende impôr ao mundo civilizado a sua supremacia.
Mal pensavamos, diziamos nós, mas é que, como todos os outros, não havíamos refletido um momento sequer sobre a nossa situação perante o conflito armado, não como potencia de valor, mas como potencia colonial.
Esqueceramo-nos, como todos os outros, que tínhamos por vizinhos no sul da nossa provincia de Angola, essa Alemanha, ambiciosa, sem preconceitos, despresadora do direito das gentes, é certo, mas mostrando em todos os seus actos e vitalidade dum povo a grandiosidade dum Nação.
Póde-se sentir por ela horror, desprezo mesmo, mas o que se não póde negar é que existe ali um povo, muito cônscio do que quer e deseja, e marchando, sem se desviar, do objectivo que pretendia atingir, com uma dedicação, e patriotismo dignas, senão de elogio – porque os processos empregados são desleaes, – mas de admiração, pelo menos.
E foi por esse esquecimento por parte de todos que se creou ao país esta triste situação – afastado da guerra na Europa, mas em guerra na Africa!
Poder-se-ía ter evitado esta situação?
A meu ver, não.
Não apreciando agora neste lugar, porque outro é nosso intento, essa louca campanha feita a favor da participação de Portugal na guerra da Europa, quando quem a alimentava mui bem sabia os nulos recursos militares que dispúnhamos e que seria, a levar deante tal intento, não só caminharmos para um suicídio inglorio mas talvez desfazer os creditos de que gosamos na Historia, chegamos no entanto á conclusão, de que exactamente por esse motivo se encontra na guerra, quem tanto fez por ai para a guerra.
Era isto que se devia ter visto e não se viu.!
No meu humilde modo de vêr, porém, julgo que se essa campanha muito há contribuído para a má vontade da Alemanha contra nós, não devemos considera-la como o casus belli o factor primordial da sua ação. Não.
E´ certo que Portugal pondo-se incondicionalmente ao lado da sua aliada secular – a Inglaterra, – e dando desse procedimento tão solene demonstração enviou, por assim dizer, o seu cartel de desafio á Alemanha, porquanto ainda se não descobriu o meio de estar bem com uma Nação contra o qual nos coligamos com outra, mas ainda que o não houvéssemos feito o resultado seria o mesmo.
Se não vejamos.
Ninguem acredita que o mobil da actual guerra europêa fosse o assassínio em Saravejo dos archiduques de Austria. e, pelo contrario, todos creem que esse assassínio, senão atê preparado, foi, pelo menos, o pretexto futil de ha muito esperado para fazer arrebentar o conflito, pois que era necessário agarrar a ocasião pelos cabelos.
Para atingir o seu objetivo tinha a Alemanha tudo preparado, não esquecendo, com uma ordem e precisão admiraveis, o mais insignificante detalhe, tudo prevendo, tudo marcando como se a Europa fosse um largo taboleiro de xadrez, e ela jogasse uma partida contra todos os outros parceiros.
Ora nessa sua previdência não se podia ela ter esquecido de que possuia colonias.
E não se esqueceu.
É assim que, para impedir a invasão de sua colonia da Daraland, no sudoeste africano, pelas tropas inglesas da União Sul Africana, ela alimentou e preparou ali uma revolta dos boers, aproveitando-se para tal fim dos desejos da independencia absoluta que muitos ainda nutrem, saqueosos de se libertarem da influencia da Inglaterra; é assim que – e agora entramos nós na combinação – a Alemanha, prevendo a hipotese- já dada – de se ver privada de enviar recursos áquela sua colonia, procurou os meios de poder ir ao nosso território buscar aquilo de que necessitasse, já por meios pacificos, empregando para isso a astucia dos seus concidadãos residentes na Huila, e até das autoridades consulares, já usando de meios violentos, se tanto preciso fosse.
Portanto quer-me parecer que, quer nós quizessemos quer não, seriamos pela força das circunstancias levados á actual situação, porquanto, ao passo que – como de costume – deixamos correr tudo ao desbarato, e confiadamente permitíamos que uma missão de engenheiros alemães fosse enviada a Angola para estudar o prolongamento do nosso caminho de ferro até á fronteira, a Alemanha dava a essa missão outro objectivo muito diferente, para cujo êxito o primeiro era apenas aparência enganadora para os cegos como nós, incumbindo-a, ou de promover uma revolta boer no Planalto contra nós, ou de procurar reconhecer em todos os seus detalhes os recursos de que dispunhamos!
E essa missão partiu para Angola pouco tempo antes de se romperem as hostilidades, á qual foram agregados dois ilustres oficiais do nosso exercito.
Qual a missão do comandante Roçadas?
Rebentara a guerra. Uma torrente de fogo preparava-se para destruir uma civilização levando aos países em luta todo um cortejo de horrores: a fome, o luto, e a miseria.
Estava-se a 2 de agosto de 1914 e poucos dias depois o governo portuguez tomava a resolução de enviar ás colonias portuguêsas de Angola e Moçambique dois destacamentos de tropas expedicionarias confiando respectivamente os seus comandos a dois ornamentos do nosso exercito, os tenentes coronéis Alves Roçadas e Massano de Amorim.
Qual a missão destas forças. Ainda ninguém o sabe porque pessoa alguma o disse.
A «Ordem do Exercito», porém, que punha á disposição do ministério da colonias essas forças expedicionárias declarava que elas tinham por missão guarnecer as fronteiras, sul de Angola e norte de Moçambique. Seria essa a sua única missão?
Talvez não, pelo menos pelo que respeita ao destacamento d’Angola.
Pela brilhante campanha de 1907 dirigida pelo próprio Roçadas nós havíamos conseguido dominar os cuamatas, mas, como sempre, operando por doses, deixaramos por submeter os cuanhamas, não menos inquietadores do que os primeiros, de modo que continuaramos a não ter no território cuanhama nem domínio nem prestigio.
As suas costumadas razzias nas povoações limítrofes, o nulo respeito que nutriam pelas nossas autoridades havia-os levado a atacar, poucos mezes antes, uma força nossa de comando de um 1º sargento, desbaratanda-a apreendendo-lhe uma peça Ehrardth.
Receou-se, pois, que os cuanhamas levados por influencias estranhas aproveitassem a ocasião para se sublevar, e, assim, por ser azado o momento, nós enviávamos a Angola um corpo expedicionário para regular de vez a situação no sul da provincia.
Ter-se-hia pensado no perigo alemão?
Não decerto; ninguém pensou em tal, e Roçadas partindo para Angola a 11 de setembro levando uma força insignificante sob o seu comando – 61 oficiais, e 1.500 praças – constituida apenas por um batalhão de infantaria, uma bateria de artilharia, um esquadrão de cavalaria, e uma bateria de metralhadoras, mal imaginava que iria encontrar no Sul de Angola uma situação difícil a resolver, para a qual se não havia nem o haviam preparado.
Nessa ocasião poucos eram, segundo parece, os conhecimentos que se possuía de que a Alemanha poderia dispôr tropas no sudoeste africano: ou cálculos optimistas em extremo, ou exagerados em pessimismo.
Ao passo que uns afirmavam que na Damaraland se poderia organisar um forte exercito de 9 a 10.000 homens, dispondo de excelentes cavalos, magnifica artilharia, outros limitavam a 4 ou 5 mil os recursos militares de referida colonia.
Quem acertava afinal?
Ninguem o sabe, e estou mesmo em afirmar que ao passo que nós desconheciamos tudo quanto dizia respeito aos nossos incómodos visinhos, eles, pelo contrario, conheciam perfeitamente o que se passava em nossa casa!
Impulsivos em extremo, supozemos ao dar o adeus aos nossos soldados, que eles iriam ali buscar sómente louros, não imaginando sequer numa possivel e provavel derrota!
E a essa hora já a Fatalidade nos espreitava!
Fatalidade, pela grave imprudencia praticada organisando á pressa um corpo expedicionário, sem uma missão definida, sem – e é este um dos maiores erros que se praticaram – o estabelecimento prévio duma linha de etápes, que garantisse ás forças em operações o seu rapido abastecimento.
Fatalidade, porque se não mediram as consequencias da nossa situação perante o conflito europeu, e não se viu de antemão que havia 99 probabilidades contra uma a favor de não virmos ás mãos com os alemães em Africa e que a dar-se tal caso era insuficientissima a força que ali poderiamos opôr aos invasores do nosso territorio.
Fatalidade, porque tudo isto se fez, regateando á defeza de Angola tudo quanto esta carecia, só pensando em enviar uma divisão a França, nós que de exercito apenas possuiamos um simulacro, e que, agora mesmo, temos de cercear a ida de medicos para o ultramar sob pena de ficarmos sem eles na metropole, tão reduzidos são os nossos quadros; em enviar uma divisão auxiliar, nós, que destacámos as baterias de artilharia sem a dotação completa de tiros por não possuirmos munições em numero suficiente; que comprámos á pressa cavalos e muares para com eles dotarmos as unidades expedicionarias; que nos temos visto em apuros e serias dificuldades para organisar os quadros inferiores de sargentos e cabos; que enviamos para uma campanha, artilheiros, que mal sabem servir-se de peças, e soldados com insuficiente instrução de metralhadoras!
Fatalidade, porque organisar, assim expedições, mercê do estado actual do nosso exercito é, não tentar alcançar uma vitória, mas preparar de antemão uma derrota.
Hoje, portanto, que perante as forças alemãs fomos obrigados a retroceder depois de havermos sofrido baixas apreciaveis, ocorre-nos o direito de preguntar:
Qual era a missão que foi confiada ao tenente coronel Roçadas?
Que objectivo houve em vista ao enviar a Angola o primeiro destacamento expedicionário?
E qualquer que seja a resposta, quasi podemos afirmar que dela resultará a convicção de que em tão meticulosa questão apenas houve, imprevidencia!
No entanto não se pode admitir que num ministerio de que fazia parte Freire de Andrade, colonial prestigioso e militar distinto, que sabe por experiencia propria o que seja uma campanha colonial, se podesse ignorar ou esquecer o muito que haveria a fazer para dotar o corpo expedicionario de Roçadas para o desempenho dessa missão dificil, com todos os elementos de defesa.
O que se teria dado, pois?
Num interessante artigo, pelo sr. Freire de Andrade publicado já depois de haver deixado a pasta dos estrangeiros, na Revista Colonial, ocupando-se da campanha de Angola, diz aquele ilustre oficial:
«A Africa Ocidental alemã, tem uma população de perto de 12:000 europeus e uma força armada de perto de 3:000 homens, incluindo a policia. Como uma grande parte dos colonos são antigos soldados, agora mobilisados, é de bom aviso contar que aquela colonia poderá dispôr de uma força de 9:000 homens, bem armados, dispondo de artilharia e metralhadoras, força esta que terá de fazer face aos ingleses do Cabo, e, no caso de nos tornarmos beligerantes, ás nossas proprias tropas. Devemos contar que uma parte das tropas alemãs sejam montadas porquanto, segundo as estatísticas de 1913, alem de 13:000 cavalos, a colonia dispunha de 12:000 mulas e de 790 camêlos.
«Os caminhos de ferro do Oeste alemão, poderão, com relativa facilidade transportar as forças alemãs do norte para o sul e vice-versa, levando-as até pouco mais de 200 quilometros da nossa fronteira, sendo o territorio a atravessar para atigir esta, arido, e com pouca agua.
«Comparando as facilidades de transporte de Angola com as da colonia alemã ver-se-há que elas são a favor desta ultima e com pouco se pode contar com carregadores indigenas para operações de guerra, prudente será enviar desde já para Angola, um numero grande de muares não inferior a 3:000, se quizermos dar mobilidade ás forças que ali temos; como é indispensavel, tanto mais que não será fácil contar com os carros boer, porquanto estes são em numero e os spans de bois de tração não se podem improvisar com rapidês.
«Desde que se rompam as hostilidades entre Portugal e a Alemanha será provável que esta ataque a nossa colonia de Angola?
«E´ possível, mas não é provavel que o faça com energia e vigor, porquanto desejará reservar as suas forças para se opôr ao ataque inglês, quer ele seja dirigido do Cabo, quer ele seja feito com tropas de desembarque que entrem em Swakopmund, quer por Angra Pequena.
«Se, porém, a Alemanha atacar a nossa colonia, tudo deveremos fazer para vingar a injuria e castigar com vigor os que atentarem contra a nossa soberania.
«A nova zona de defesa deverá concentrar-se perto do terminus do caminho de ferro de Mossamedes, a fim de evitar uma extensa linha de serviços da rétaguarda, que será difícil de manter.
«Em vez de espalhar as nossas forças de modo a procurar ocorrer á defesa duma fronteira de mais de mil quilómetros, deveremos concentra-las e deixar que os obstáculos naturais desordenem e cancem os invasores.
«Deveremos tomar como exemplo, a campanha da Russia e pelos mesmos motivos seguir a mesma tática!!»
Assim põe o ex-ministro dos estrangeiros por uma forma bem clara e positiva a questão d`Angola.
Pois bem.
Sabia-se que os alemães poderiam dispôr de forças bem montadas, e nós só enviámos com Roçadas um esquadrão de cavalaria, e compráva-se á pressa gado para a reconstituição dos esquadrões de dragões, um dos quais fôra suprimido pouco tempo antes, por desnecessário, pelo atual governador geral Norton de Matos.
Sabia-se que os alemães disporiam de boa artilharia, e nós mandávamos apenas com Roçadas, uma simples bateria de montanha.
Sabia-se que os alemães disporiam de metralhadoras e nós apenas enviávamos a Angola uma bateria.
Sabia-se que as unidades de Angola tinham os seus quadros de oficiais reduzidos e nós não satisfaziamos as requisições dali vindas, senão por dóses homoepaticas, porque o ministerio da guerra não nol`as podia fornecer, sob pena de desfalcar os efectivos da lendária divisão auxiliar.
Sabia-se que nas unidades de Angola havia falta de sargentos e cabos e pelos mesmos motivos não os podíamos mandar.
Sabia-se que as forças enviadas a colonia devia ter outra missão que defender a fronteira sul, de mais de mil quilometros, e no entanto foi esta missão oficial que se deu ao destacamento de Roçadas!
Portanto, somos forçados a concluir, que não foi a ignorancia que levou a praticar erros cujos consequências desastrosas principiámos já a sofrer, mas que simplesmente se ha procedido com uma boa fé que não daria motivo a censuras, se camaradas nossos não houvessem perdido a vida no solo africano, uns em luta com tropas alemãs, outros por elas massacrados.
A explicação de tudo isto, é, porém, facil. Contára-se com a invasão de Damaralandia pelas tropas inglesas e a revolta boer tudo fez fracassar!
Deu-se comnosco o mesmo que se deu com a Alemanha ao contar com a Italia.
Falhou.
As breves considerações que acima fizemos sobre a imprudência que se praticou enviado Roçadas a Angola sem uma missão definida, são apenas o reflexo do nosso estado de alma perante o que temos visto, e o muito temos ouvido sobre a nossa situação naquela Colonia, e que tem a justifica-las de sobejo a narração sucinta que vou fazer no drama que ha pouco se desenrolou nas margens do Cunene.
Não está ainda feita oficial a historia do que se ha passado entre as nossas tropas e as alemãs, mas o que a tal respeito se sabe por via particular com relação ao primeiro incidente da fronteira, – chamemos-lhe assim – dispensa e subestibem o relato oficial.
Após ocupação do Cuamato em 1907 foram estabelecidos na região diferente postos militares, e, posteriormente, montado outros, como sentinela vigilantes da fronteira sul.
Era presentemente o de Naulila o mais próximo da zona neutro que separa as fronteiras luso-germanica, e havia de ser ele que teria a primasia de sofrer o embate da acção brutal dos alemães.
Comandava-o o alferes Sereno, de nome, mas oficial enérgico e valente, pertencente a um dos esquadrões de dragões.
Subordinado com estava ao comando militar do Cuamato, recebia ordem em meiados de outubro para prenderem e desarmar uma força alemã, composta de 2 oficiais, 1 sargento e 12 soldados europeus e 20 indigenas que se achava no nosso território e á distancia de 12 quilometros de posto militar de Naulila.
Cumpriu aquele oficial a ordem recebida e chegou ao contacto com a força alemã em 18 de outubro.
Interrogando o oficial alemão sobre os motivos da sua permanencia com praças armadas em territorio português recebeu como resposta que vinha em perseguição dum desertor e que pretendia alem disso falar com a autoridade do Humbe para obter licença para ir para o Lubango.
O alferes Sereno que fez vêr ao oficial alemão, que só o capitão-mór do Cuamato lhe poderia conceder a licença desejada, pelo que o convidou a acompanha-lo junto daquela autoridade.
No dia seguinte marchou o alferes Sereno para Naulila acompanhado pelo comandante alemão, 2 oficiais, 1 soldado europeu e 3 indigenas.
Mandou, ao chegar áquele ponto, apear, desaparelhar e dar ração ao gado e em seguida fazer o almoço a fim de receber condignamente os oficiais alemães e findo êle seguir para o Cuamato.
Emquanto, porém, eram executadas as suas ordens, um 1º cabo vinha avisar o alferes Sereno de que as praças alemãs estavam aparelhando á pressa.
Em face da informação dada o oficial português disse ao comandante alemão que não mandasse aparelhar pois que depois do almoço é que deviam seguir para o Cuamato.
O oficial alemão fez-se no entanto desentendido, dirigiu-se-com os seus para as montadas, e, sem fazer caso das observações do aferes Sereno, saltaram para os cavalos dispostos a partir.
Ao vêr-se assim ludibriado e reconhecendo que outro era o intuito da força alemã, que não o invocado por eles, o alferes Sereno lançou as mãos ás rédeas da montada do comandante da força intimando-o a não partir, pois que tinha de o apresentar na capitanía-mór do Cuamato.
O oficial alemão não se intimidou.
Julgando, talvez, forte desconsideração para o seu orgulho germanico, o acto do alferes Sereno, lançou rapidamente mão da sua carabina e apontou-a ao peito daquele oficial que ali representava a soberania de Portugal.
A scena passou-se rapidamente.
Avisado, a tempo, por um 1º cabo do movimento do oficial alemão o alferes deu ordem de fogo.
O comandante e os oficiais alemães foram mortos, o soldado europeu ficou prisioneiro, evadindo-se os soldados indigenas!
Era este o prologo do drama que se ia desenrolar; e das tensões pacificas dos alemães são testemunho eloquente a recusa dos oficiais alemães em irem á presença do capitão-mór do Cuamato e na sua retaguarda se encontrarem mais força, que retrocederam.
O seu objectivo era levarem os generos de 11 carros boers que o próprio alferes Sereno aprisionou durante o serviço de vigilancia de fronteira em que andou durante 27 dias.
Os géneros destinavam-se á Damaraland e eram enviados pelo consul alemão no Lubango G. Schõss!
A simples narração dos factos passados justifica bem o que atraz dissémos: a necessidade de obter recursos no nosso territorio havia obrigar os alemães a adquiri-los já pela astucia, pela força.
Encheu-nos de legitimo orgulho o desforço tomado pelo alferes Sereno ao vêr-se assim desrespeitado.
Parece, porém, que o seu acto não caíu no agrado, porque o governador geral de Angola exonerava pouco depois de comandante militar do Cuamato e do posto de Naulila os oficiais que exerciam essa funções.
Como receberam os alemães o desforço dos nossos soldados?
A breve trecho eles o iam demostrar patenteando que, quer em africa, quer na europa, os seus processos de fazer a guerra são sempre revoltantes não tendo a enobrece-los nenhum acto de grandesa moral, que compense os horrores que a guerra causa.
Colocados no extremo sudoeste do distrito de Huilla haviam sido estabelecidos, durante a acção governativa de João de Almeida, que áquele distrito dedicou as suas grandes faculdades de trabalhador incansável, os postos militares do Cuangar, Bungà, Sambio, Dirico e Mucusso, fazendo os dois primeiros parte da capitania-mór do baixo Cubango.
Ao passo que entre nos tudo esta quasi por fazer, e que mantínhamos aqueles postos militares puramente isolados do centro do distrito sem haver meio de prontamente lhes ser prestado qualquer socorro, a uma distancia de algumas centenas de quilómetros, os alemães, pelo contrario, teem dado na Damaraland um grande desenvolvimento ás vias de comunicação, estando todos os postos militares ligados por linha telegráficas e estradas carreteiras.
Ao passo que entre nos o caminho de ferro de Mossamedes pouco mais adeantado está do que nos dois primeiros anos de construção – e já lá vão oito anos! – os alemães têm também mui desenvolvida a sua rêde ferro-viaria.
Para bem se compreender isto basta dizer que a linha férrea parte do porto de Swakopmund para Atavi, centro de uma importante mineira na colonia do qual partem dois ramais.
Um destes ramais segue aproximadamente para a nossa fronteira na direcção de Naulila e o outro dirige-se para o leste da colonia em direcção ao Cuangar e Dirico.
Este ultimo ramal dista 3 a 4 dias, a cavalo, do Cuangar.
Sofrendo o vexame de Naulila e vendo infrutiferos os seus esforços para se aprovisionarem, conduzindo para o seu território os mantimentos que carreteiros boers, bem pagos, decerto, os levavam, os alemães imaginaram obter esses recursos pelo extremo sudoeste do distrito, onde a vigilancia era frouxa, e diminuto o efectivo das forças que lhes poderiam opôr.
Podiam, no entanto, usando de processos dignos, invadir a nossa provincia de Angola por esse ponto, derrotando, mas em combate leal, as força que ali representavam a soberania de Portugal.
Mas isso, obedecendo ás leis da guerra, poderia causar-lhe ainda perda de vidas, pois eles não ignoravam que a peito descoberto ter-se-iam de haver com Ferreira Durão, oficial valente e duma coragem por mais duma vez posta á prova, que saberia morte com honra no posto que lhe havia sido confiada.
Não que eles desejavam, não lhe fosse a sorte adversa, e por um acaso de guerra não pudessem levar por diante o seu intento.
Foi posto, pois, de lado esse plano executaram outro de mais tenebroso, é certo, mas mais em harmonia com os seus usos e costumes.
Surpreender de noite a pequena guarnição do forte, sufoca-la, matando primeiro os oficiais, para que ao seu infame acto não podesse corresponder a menor reacção, foi o grande plano estratégico que os mestres da arte da guerra resolveram pôr em pratica nas margens do Cubango!
E se bem o pensaram melhor o executaram.
O assalto ao posto militar do Cuangar, cuja guarnição se sabia haver reduzida, e á qual socorro algum poderia se prestado, pela forma barbara como foi praticado, parece mais um ataque por surpresa levado a cabo por tribos selváticas, que uma acção de pequena guerra dirigida por oficiais europeus.
Parece que os oficiais alemães despeitados por não poderem levar a melhor em Naulila e não haverem conseguido internar na Damaraland os mantimentos dos carros boers aprisionados pelas autoridades portuguesas quizeram, como revanche, e com uma atrocidade sem nome, vingar-se do que não fôra mais do que o exercício dum direito da nossa parte.
Eis como os factos se passaram.
Os alemães aproximando-se da nossa fronteira mantiveram-se porem, a uma distancia tal que permitisse ás autoridades portuguesas continuar no desconhecimento da visinhança de forças alemãs, mas que podessem também ser facilmente transposta, apenas em algumas horas de marcha, para cair de súbito sobre a pobre guarnição adormecida.
E foi o que se deu.
Estava-se a 31 de outubro.
Oficiais e praças descançavam, mal imaginando no seu isolamento, afastado de todo o convívio, que aves de rapina aguardavam o momento propicio para saltar sobre eles, não lhes dando tempo sequer para se defenderem com armas na mão.
Talvez mesmo que, apesar de decorridos já três meses que na europa se achava travada a guerra, eles desconhecessem ainda esse facto, e que pessoa alguma se houvesse lembrado de participar a essas vedetas da soberania portuguêsa no sertão, que deviam redobrar de vigilancia e de cautela.
Talvez!
O que é positivo, é que no posto militar do Cuangar não havia mais do que a vigilancia ordinaria insuficiente para um ataque por surpresa, e demais a mais ataque em que foram convenientes, – se não tomarem parte eles próprios – indígenas das margens do Cubango.
A guarnição dormia, mas o seu despertar iria ser terrivel!
De repente, no silencio da noite – eram 3 horas da madrugada – a guarnição foi sobresaltada pelos tiros disparados pelas sentinelas, que ecoando no espaço, eram como que o grito de álerta dado por quem, firme no seu posto lhe respondia a um ataque imprevisto e inesperado.
As praças levantam-se como desvairadas e, supondo que eram vitimas de algum ataque traiçoeiro do gentio correm a armarem-se.
Era já tarde!
No forte de Cuangar tremulava já a bandeira alemã, e assestadas contra a guarnição, metralhando-a, as peças e metralhadoras do próprio forte!
Se haveria passado?
Não há meio de o saber com precisão, porque dos graduados foram mortos o tenente Ferreira Durão, o 1º sargento Angelo de Almeida Xavier e desapareceu o tenente Henrique José Sousa Machado.
Teriam os dois primeiros sido assassinados no seu próprio leito, ou tendo tentado organizar a defesa do forte, foram metralhados? Ignora-se.
A rapidez do ataque, o facto dos alemães se terem apoderado das peças e das metralhadoras do proprio forte, leva a crêr, que eles tinham prefeito conhecimento do que se passava a dentro da fortalêsa e que com a conivência dos indígenas da região puderam praticar um acto infame que não os enchendo de legitimo orgulho enxovalhou pelo contrario a farda de quem dirigiu semelhante ataque.
Só os indígenas selvagens poderiam proceder por esta fórma!
O que ocorreu depois?
Facil é calcula-lo.
Aqueles que puderam escapar á carnificina, impotentes para se defenderem, procuraram na fuga o único recurso que lhe restava, e, semi-nús, arrastando-se pelo mato, vivendo de frutos selvagens, assim se mantiveram durante alguns dias, até alcançarem o posto mais próximo onde apavorados levaram a noticia do massacre.
Senhores do forte do Cuangar ter-se hão os alemães ali estabelecidos fazendo base de aprovisionamentos para a sua colonia, ou, praticado o acto revoltante de massacrarem uma pequena guarnição, teriam recolhido ao seu quartel general levando atraz como trofeu, á guisa de gentio, a cabeça de algum soldado português?
Não sabemos, porque de tais detalhes não têm os governos dado conhecimento ao público e as informações particulares são a tal respeito mui deficientes e até contraditórias. Poder-se hia e dever-se hia ter evitado o desastre do Cuangar?
Certamente que sim. Se, apos, o rompimento das hostilidades na Europa, alguém tivesse pensado na situação em que nos poderíamos vir a encontrar, atenta a visinhança da colonia alemã no sul da nossa provincia de Angola, e se, quem tinha dever de o fazer, houve-se refletido sobre o perigo em que se encontravam todos esses postos militares fronteiriços, abandonados a si próprios, quasi que sem elementos de defeza para uma luta seria, uma resolução teria sido tomada – abandonar esses postos, concentra-los á retaguarda em pontos, onde mais facilmente lhes podesse ser prestado auxilio.
Nada disso se fez, e a imprevidência deu como resultado perdemos a vida de camaradas nossos, e termos recebido um grande enxovalho.
Estava, porém, escrito que o outro revez e de maior importância nos estava ainda reservado sofrer.
Logo depois do incidente de Naulila, em que desempenhou um papel preponderante o alferes de cavalaria Sereno, marcharam para o sul forças do destacamento expedicionario de Roçadas, constituidas principalmente pelas companhias de infantaria 14, a bateria de matralhadoras, e da guarnição da provincia, artilharia, esquadrões de dragões e companhia indígena, landins, cujo valor e coragem são por de mais conhecidos.
O plano, segundo parece era impedir a travessia do rio Cunene ás forças alemãs, que pretendessem atingir o Planalto, objectivo esse que estes não poderiam alcançar sem serias dificuldades a vencer, mas que a prudencia aconselhava a considerar como possivel conhecida a firmesa com que os alemães executam qualquer plano, ainda ou mais audacioso.
Não veio ainda a publico o relato do que se passou por ocasião do 2º ataque a Naulila.
O governo, que a estas horas já deve ter em seu poder informações detalhadas e minuciosas, limitou-se a dar a publico uma nota oficiosa narrando sumariamente o que se tem passado, e indicando as perdas sofridas pela nossas forças.
O que se sabe, porem, e por si só bastante para se avaliar que nesse formidável embate ocorrido em meiados de dezembro nas margens Cunene entre forças portuguêsas e alemães, os nossos soldados se foram repelidos perante a superioridade numérica do inimigo não retrocederam se lhes haver infligido perdas importantes.
Boatos propalados de propósito, malsinando tudo, davam o desastre, não como resultante de uma retirada, mas sim como consequência de uma fuga desordenada, em que a honra do exercito ficara manchada, e em que o «salve-se quem poder» fôra a ordem mais de pronto cumprida pelos bisonhos soldados da expedição.
Não. Bastava o acto heroico praticado pelo esquadrão de dragões da Huila para salvar a honra da força armada.
Teria havido desfalecimentos, hesitações, menos firmesa no sustentar o ataque por parte dos nossos?
Sim, é possível, e até natural que isso se desse, desde que todos sabemos a fórma como entre nós se organisam expedições coloniais, mormente agora, pelo sistema miliciano, em que o aldeão de hoje, arrumando ao canto da choupana a sua enxada ou a ferramenta do oficio, e o soldado de amanhã, chamado ao activo, tendo perdido durante o periodo do licenciamento, os poucos conhecimentos militares que lhe foram ministrados numa instrução intensiva; sabendo-se, que enviamos ás colonias soldados na edade mais impropria para poderem resistir ás fadigas das marchas executadas muitas vezes sobre um sol abrasador, á ação deleteria de vigilias depauperantes, e a todos esses males, que constitui a caracteristica das campanhas coloniaes.
Parece que efectivamente o tenente coronel Roçadas ao dar conhecimento do que se passava se referiu á pouca firmesa dos soldados do 14 e até dos próprios landins, cuja a fama dos soldados insensiveis á fadiga e corajosos é por todos apreciada.
Assim seria com efeito.
Esquecemo-nos, porém, todos de que se a organisação das nossas forças foi deficiente e cheia de defeitos, os alemães, pelo contrario, haviam de ter enviado á invasão do nosso território em Africa topas escolhidas, constituídas por soldados de saber, e não por curiosos; por homens aclimados á vida dura do sertão e não por pobres recrutas a maioria dos quais talvez tivessem visto o mar pela primeira vez quando atravessaram o Atlantico em direção a Africa!
Essa diferença era essencial, e a narração sucinta que vou fazer do combate da Naulila provará o que acima digo: teria havido actos de menos firmeza, vacilações, mas o que não houve foi fuga desordenada, como o principio se propalou.
Estavamos meiados de dezembro.
Forças alemãs, cuja concentração se vinham fazendo havia pouco, atravessaram a fronteira na direcção de Naulila e pretendem atravessar o Cunene. Nós defendíamos essa passagem em dois pontos: em Calveque e em Naulila.
Superiores em numero e possuindo boa cavalaria estavam os alemães em excelentes condições para tomar a ofensiva.
Em compensação, nós de pouca cavalaria dispúnhamos.
Os alemães tomando posições primeiramente proximo de Calveque, afastam-se em seguida em direcção a Naulila, ponto que parece estava de antemão escolhido para ser teatro das suas façanhas.
Em Naulila não tinhamos nós cavalaria, em contrario do que dava em Calveque.
E` contra Naulila o inimigo se lança com ardor, destruindo primeiramente pela artilharia as instalações do posto militar ali montado.
Recebem os nossos o seu embate e ao fogo inimigo respondemos com igual ardor.
A luta desde o principio manifestou-se, porém, desigual.
Perante a impetuosidade do ataque, as nossas forças hesitam e vacilam, mas essa hesitação é por pouco tempo.
Os oficiais impondo-se, conseguem levar os soldados, e tomando a ofensiva, efectuar contra-ataques, mas a superioridade das forças alemãs esmaga-os.
A retirada impõe-se, mas é necessário proceder por forma que ela não represente uma fuga.
E` então que entra na luta o esquadrão de dragões que se encontrava em Calveque, e que sabedor do que se passava, vinha a marchas forçadas, prestar o seu valioso concurso ás forças de Naulila, onde, como dissemos, não havia forças desta arma.
Ao entrar em campo, o comandante da força, – o tenente Aragão, segundo desde logo se presupõz – viu de relance a situação critica em que as forças portuguêsas se encontravam.
Lutáva-se desesperadamente, mas a derrota era já inevitável, porque o inimigo dispondo, como dissémos, de boa cavalaria, tentava envolver-nos, colocando-nos, portanto, entre dois fogos.
E` então que o esquadrão de dragões se lança como um furacão sofre o flanco do adversário, em cujas fileiras, quais cavaleiros da idade média, os nossos soldados abrem sulcos, levando a confusão, embrulhando-os e desnorteando-os.
Luta-se com ardor febril; o inimigo sofre perdas importantes, mas eis que a seu turno lança sobre o heroico esquadrão as suas reservas que causaram aos nossos grande numero de baixas.
O efectivo dos pelotões de dragões é reduzido como por enquanto; uns jazem no campo, outros perdem-se ou ficam prisioneiros, mas os heroicos dragões, cumprindo o seu dever haviam, sacrificando-se, permitindo que as nossas forças se tivessem retirado em ordem, concentrando-se á retaguarda, em pontos estratégico, e onde a defensiva se podia efectuar mais eficazmente!
São as duas companhias d`infantaria 14 e esquadrão de dragões, que sofreram o maior numero de baixas, e que na totalidade orçam por sessenta entre mortos e feridos.
Perante esses que no campo da batalha pereceram descobrimo-nos respeitosos, pobres camaradas a quem uma luta desigual prestou no cumprimento do seu dever de soldados.
Resta-nos, porém uma consolação na dôr que nos aflige: é que ali, batalhando nas margens do Cunene, bisonhos soldados duma nação pequena, de nulos recursos militares, fizeram frente a soldados de uma nação essencialmente militar, lutando com coragem e bravura e disputando palmo a palmo o terreno invadido.
Honra, pois, a todos esses que se sacrificaram pela Patria, e souberam morrer com brio e gloria!
A linha de etápes – Mal estabelecida creou ás tropas em operações uma critica situação
Vae já longo em demasia este nosso artigo.
Escrito, porém, para camaradas é necessário dizer-lhes tudo para que se saiba toda a verdade nesta questão «Sul de Angola» ressuscita tão abruptamente e que já deu lugar ao cometimento de erros importantes.
Um dos principais, foi, como dissemos, o não se ter estabelecido previamente uma linha de etápes que garantindo ás tropas os necessarios abastecimentos lhes permitisse resistir aos males fisicos que atacam o europeu em Africa e mormente em serviços de campanha.
Tendo de se operar a perto de 500 quilometros do litoral de Mossamedes, existindo um caminho de ferro, cuja a construcção parece que foi malfadada, permitindo o acesso sómente até á base de Chelas, calcula-se e avalia-se bem que cuidadoso e meticuloso não deveria ser o estabelecimento dessa linha, onde em armazéns de antemão construidos se guardassem com religioso cuidado a alimentação dos homens e dos solípedes.
Principiam já a levantar-se na imprensa protestos contra a forma como foi organizada a primeira expedição do comando do tenente-coronel Roçadas, a que já respondeu o então ministro das colonias engenheiro Lisboa de Lima, mostrando que áquele oficial fôra dada a maior iniciativa para o deempenho da sua missão, e que por parte do ministério das colonias peia algumas lhe fôra imposta.
Efectivamente assim é. Dos defeitos que houve na sua organisação ninguém tem culpa, porque a expedição organisou-se com os elementos que o exercito possuia.
Eram bons eram maus?
Não sei. Era os que havia.
A Roçadas marchando para angola jámais de certo passou pela mente a ideia de que chegaria alí ás mãos com os alemães ou, pelo menos, nas condições em que este facto se deu.
Contava-se, como já mostramos, com a invasão de Damaraland pelas forças inglêsas de União e a revolta boer veio, retardando essa acção, tornar possível a invasão dos alemães na nossa provincia de Angola, facto este com que jámais se contou não resta duvida.
Mas do que também não ha duvida, é que Roçadas procurou dotar a sua coluna com todos os elementos que carecia para o bom desempenho da sua missão e ainda para que aos seus subordinados cousa alguma faltasse.
Um mez antes de partir Roçadas telegrafara para Angola pedindo se trabalha-se na constituição de linha de etápes, para que ao chegar ali tudo se encontrasse montado.
Enganou-se, porém.
O que devia ter feito era enviar logo a Angola um oficial de sua confiança e de comprovado merecimento para a execução daquele importante trabalho, preliminar das operações a efectuar.
A fórma como se desempenharam em Angola da ordem de Roçadas todos aqueles a quem incumbia o indeclinavel dever de preparar aos soldados idos da metropele todo o conforto demonstra-o a seguinte carta que recebemos dum camarada nosso, e que patenteia bem como muitas vezes são tratadas entre nós questões de maior importância:
Margem do Cunene, em frente do Forte Roçadas em 27 de novembro 1914.
Meu caro B.
Permite-me que eu venha desabafar um pouco comtigo e dar-te uma pequena ideia da má sorte da expedição ao Sul de Angola, que sob o comando de Roçadas partiu em 11 de setembro.
Todos os jornais apregoaram e festejaram a magnifica organização da colúna expedicionaria, que partia com todos os elementos necessarios e superiores aos de todas as outras em expedições até em todas organisadas.
Pois, nesse caso, vais ficar deveras admirado quando eu te disser que temos passado tormentos horrorosos, e que além de chuva, frio, calôr, vento, sêde, febres e doenças próprias da região temos passado com absoluta falta de comodidades que poderiamos ter, e principalmente que temos tido fome, repara bem, sim Fome, com todas as letras.
A expedição parece realmente que veio provida de generos, com os serviços administrativos, medicos e veterinarios, bem organisados.
Acreditamos que assim fosse.
Mas o que é facto é o seguinte: desde que partimos do Lubango (1 de novembro) a expedição trouxe excelente vinho e nós apenas nos primeiros dias tivemos 2 decilitros para todo o dia, e há mais de 20 dias que não provamos uma gôta; trouxe muito chouriço mas, ... ficou para trás; trouxe grande quantidade de conservas mas... ficou para trás; trouxe bela farinha de trigo mas… temos passado muitos dias sem pão, outros com um pãosinho pequeno, de pessima farinha e ainda peor fabricado; trouxe esplendidas conservas mas… ficaram á retaguarda; trouxe a bela aguardente, mas apenas no foi distribuida, em 4 ou 5 dias, uma horrível aguardente de preto, etc., etc.; trouxe enorme quantidade de medicamentos mas há unidades que nem sequer possuem um frasco de quinino, outras que não encontram nas ambulancias uma pitada de mentol nem um simples rôlo de gaze; trouxe grande quantidade de material de bivaque mas… há unidades que nem sequer tem tendas abrigos e de noite está quasi tudo ás escuras porque petróleo é pouquíssimo; trouxe muita fava, aveia e belas forragens, mas… o gado morre de fome e de surmenage porque apenas come mau capim e pessimo milho, duro e com gorgulho, etc.
A nossa alimentação (oficiais e praças) tem sido o seguinte: De manhã, café ou chá e pão, quando o há; ao almoço, ou um pedaço de carne, cosida de vespera, fria e um bocado de pão, ou uma sopa de feijão, ervilha ou grão, qual deles mais duro; ao jantar, novamente feijão, grão ou ervilha, que parece pedra e carne cosida.
Ora num clima destes excessivamente insalubre atravessando dezenas e dezenas de quilómetros sem uma gôta de agua, ou que, quando se encontra, é um liquido barrento, sujo, mal cheiroso, e em pequena quantidade; numa região, em que se andam 20, 25, 30 quilometros por dia, em terrenos arenosos, e em que os pés se enterram por completo, com um sol tão ardente que derrete por completo as velas de stearina, qual é o europeu que póde resistir ás febres, ás disenterias, emfim ás doenças proprias do país se não lhes dão comer, nem lhe fornecem medicamentos? Medicamentos!
Imagina, que durante uma marcha de centenas de quilometros, não se encontrou um hospital, uma enfermaria, nem um simples barracão onde os doentes podessem ser tratados, de fórma que ou haviam de ser abandonados, ou tinham de ser conduzidos, como realmente foram, em cima de caixotes e sacos, aos trambolhões dos carros boers!
Que dó tive desses desgraçados!
Ficar por aqui: … Muito mais tinha a dizer, mas isto é o bastante para que o aí se avalie as condições em que estamos, e que não é o triplo de vencimento que compensa a perda da saúde e energia, nem faz calar a revolta e a indignação de que todos, oficiais e praças, estão possuídos, por vêr tanto desleixo e tanta incúria!
De quem é a culpa de tudo isto? De muita gente, mas principalmente e em primeiro lugar, dos governadores de cá, que não fizeram nada, absolutamente nada apesar de para isso terem recebido instruções e ordens de dois meses antes da nossa vivenda. Tiveram descaramento de dizer que estava tudo pronto, tudo arranjado! Vergonhoso!
X.
A carta em acima fica transcripta mostra bem o erro cometido em não se haver montado, como devia ser, a linha de étapes e o serviço de abastecimento.
O que é certo é que metropole está fazendo um esforço colossal para manter em Africa um tão elevado efectivo, e que daqui tem ido para Mossamedes toneladas e toneladas de géneros, não faltando entre os abastecimentos remetidos, vinhos generosos, congnac tabaco, etc. enfim tudo quanto pudesse dar aos nossos oficiais e soldados um certo conforto.
Mas… com um caminho de ferro que parece sistêma Décauville, e com um serviço de abastecimento feito quasi exclusivamente por carros boers, que devido á grande estiagem não puderam o rendimento calculado, não é de admirar que as tropas em operações tivessem sofrido privações.
Hoje a situação deve ter melhorado e tende a melhorar.
A caminho de Angola vão 100 carros alemtejanos exclusivamente destinados ao serviço de abastecimentos, outros 300 se lhe seguirão em breve; nas Canarias vão ser adquiridos 100 camelos, que ainda durante o corrente mês partirão para Mossamedes, e com as unidades embarcadas ultimamente seguem as respectivas viaturas e 40 automoveis tambem estão sendo adquiridos.
Com estes elementos, pois ficam, segundo é de esperar, bem montados os serviços de abastecimento.
O ideal teria sido, porem, ter enviado primeiro a Angola todos esses recursos para o estabelecimento de aqueles serviços e depois enviarmos as tropas mas… a situação impunha uma resolução rapida, e assim fomos amontoando em Mossamedes toneladas e toneladas de viveres, forragens e material de guerra, que com inumeras dificuldades ia sendo transportado para o interior.
Felizmente que presentemente á frente deste importante serviço está um oficial de reconhecida inteligência e actividade o tenente coronel de estado maior Ilidio Nazareth, que tem a seu cargo os abastecimentos até á Chibia.
Num país como o nosso, onde cousa alguma está montada, e onde tudo é deficiente, não é para admirar que deficiencias se notem e apontem na execução da organização dum corpo expedicionário que em Angola vai contar dentro em breve o efectivo aproximado de 10.000 homens e 3.000 solipedes.
Refletindo um pouco ver-se há que esforço enorme se está dispendendo em manter em Africa aquele efectivo que terá de ser alimentado da metropole, bastando dizer que o ministerio das colonias tendo a embarcar 900 solipedes pertencentes ás unidades que foram destinados ao distrito de Benguela, terá de enviar para bordo do barco que conduzir esse gado o exclusivamente para a sua alimentação durante a viagem, 180 toneladas de forragens!
Quer dizer, para alimentar 3.000 solipedes em Africa será necessário enviar da metropole, mensalmente um mínimo de 600.000 kilos de forragens, ou seja quasi que o carregamento dum navio.
Estes números dizem o suficiente para se avaliar as dificuldades que surgirão para o abastecimento das nossas forças e que só poderão ser vencidas, com muito bôa vontade, patriotismo e resignação.
Que os esforços empregados sejam coroados de êxito é o nosso maior desejo, pois entendemos que tudo quanto se faça é pouco para darmos áqueles que se encontram em Africa uma pequena compensação dos sacrifícios, trabalhos e agruras porque estão passando para salvarem a honra do exercito e do País.
E.B.
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Este artigo foi selecionado pelo Coronel Nuno António Bravo Mira Vaz, Vogal Efetivo da Direção da Revista Militar.
Foi publicado originalmente na Revista Militar, 67, 1, Jan, 1915, pp.19-41.