Nº 2548 - Nº Temático - Maio de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A invasão da Africa Oriental Alemã pelos portugueses - O esforço da expedição de 1916
General
José César Ferreira Gil

RM, 71, 6/7, Jun/Jul, 1919, pp. 331-352

No actual momento histórico em que se extinguem os derradeiros écos da temerosa e cruenta guerra que, durante mais de quatro anos, paralisou a vida mundial, e em que as Nações aliadas, que tomaram parte nessa luta, a mais terrível e sanguinária de que resam as crónicas guerreiras, estudam as laboriosas negociações de paz, procurando cada uma delas fazer valer e sublinhar os seus serviços e pugnar pelos seus sagrados direitos, não devemos nós os portugueses deixar no olvido a grandeza e elevação do nosso esforço para nela participarmos também, honrando os compromissos tomados e as velhas alianças.

Não devemos igualmente permitir que seja esquecido mas antes exltado e agradecido, o heroísmo dos nossos soldados que, nos campos de batalha da Europa e de Africa, souberam, como sempre, honra e pátria e exalçar os brios do exército e do povo luso.

É por isso que, tendo-me cabido a honra de ser nomeado para comandar a expedição a Moçambique de 1916, que operou na colónia alemã da Africa Oriental, vou esboçar apenas nas suas linhas gerais o proceder da gente que tive sob o meu comando, para que o país saiba quão digna de louvor e reconhecimento foi a sua acção.

Na exposição singela e rápida dos principais feitos de armas ocorridas na desoladora região do Rovuma, no desenvolvimento dessa campanha tão apaixonadamente discutida e apreciada, outro intento não tenho que não seja o de mostrar também – no cumprimento dum dever sagrado – como foi importante, valioso e digno de consideração, o auxílio que, no limite das nossas forças, dos nossos apoucados recursos, prestamos aos aliados nessa homérica contenda.

Ao assumir tao grave responsabilidade, não desconhecia que a luta em que íamos empenhar-nos era bem mais difícil e perigosa do que aquelas que anteriormente se haviam efectuado, com êxito glorioso e brilhante, no Continente Negro.

Não nos defrontaríamos com pretos sem organização e sem preparação militar, pelo contrário, teríamos de medir-nos com um inimigo numeroso, audaz, valente e maravilhosamente educado e aprestado para a guerra, e ainda com o traiçoeiro, envenenador e mortífero clima africano.

Não importava.

Punha a maís ardente fé no triunfo da nossa causa, contando para isso com o saber profissional, valor e patriotismo dos chefes e dos quadros, e com a lendária resistência, inexcedível valentia e admirável e estóica sobriedade dos soldados. Contava, e devia contar, com as virtudes guerreiras ingénitas na lusa gente, nunca até hoje desmentidas e nunca até hoje ultrapassadas.

Elas supririam até certo ponto os predicados militares e uma cuidada instrução que, por ventura, faltassem às tropas que iam entrar em operações.

A composição e efectivo do corpo expedicionário, em harmonia com a missão que lhe era atribuída, bem como a escolha do mais conveniente objectivo a alcançar e o plano de campanha a seguir, operando de acordo com os ingleses e belgas, os quais já havia tempo tinham invadido a vasta colónia alemã, foram previamente combinados entre o governo da republica e o general Sr. Garcia Rosado, um dos nossos mais distintos profissionais, que primeiro foi convidado para chefe da expedição.

Como objectivo para a coluna portuguesa adoptará o ministro das colonias os portos do litoral da possessão alemã para o norte do Rovuma – afóra Kionga do sul, que já tinha sido ocupada por um destacamento da expedição de 1915 – isto é Mikindane, Lindi, Quilôa, (Kisivane) e Quilôa (Kiwingi), até ao delta do Rufigi, apartir donde se procederia conforme as circunstancias: ou avançando para oeste, sobre Liwale, importante posto militar; ou sobre Mahenge.

Fôra jogado preferível e escolhido este objectivo depois de uma troca de telegramas com o Governador Geral de Moçambique que, por seu lado, se tiver em comunicação e trocara impressões com o alto comando inglês.

A principal missão da pequena hoste portuguesa, cooperando com os aliados, consistia em atrair para si parte das forças adversas conduzindo-as ainda a maior dispersão do que a que naturalmente seria determinada pelas 5 colunas inglesas e belgas que, por pontos diferentes, investiram com aquela colonia, e por isso o que importava principalmente era acelerar de preferência a data em que ela invadisse o território alemão, do que aproxima-la da direcção a seguir por qualquer da referidas colunas, sem probabilidade de fazer sentir a sua acção em tempo útil.

Infelizmente tudo se havia de conjurar para que essa data se retardasse mercê de circunstâncias várias, avultando como principal a falta de transportes marítimos. Surgiram ainda dificuldades e deficiências de tal natureza, tão insuperáveis, que a maior energia, dedicação e patriotismo não conseguiram dominar e vencer.

E depois para firmarmos os nossos créditos de potência colonial de primeira grandeza, para exaltarmos o valor do nosso exército, para garantirmos a posse da Província de Moçambique, cobiçada por tantos, muito nos conviria conquistar parte da zona litoral do Rovuma ao Rufigi. Nesse sentido deviam orientar-se os nossos esforços da expedição, dentro dos limites do possível, e não nos escasseando os meios de o podermos fazer, se não com gloria pelo menos com honra.

Nela tremulára ovante, em tempos idos, á épica bandeira de Portugal desde a data gloriosa em que as caravelas do Gama solcarão aqueles mares em demanda da India das lendas e das especiarias, até que, séculos depois, fomos complidos pela invasão das tribos tão aguerridas como selváticas, vindas do centro do Continente Negro, a abandonar aquelas paragens.

A verdade, porém, que ninguém pode destruir porque não ofusca o sol da história, é que diversos monumentos que por lá se encontram ainda, como em toda a costa africana, até á embocadura do mar vermelho, que atestam as nossas antigas grandezas, no que nenhuma outra nação nos iguala, e demonstram à sociedade a prioridade dos portugueses na descoberta e ocupação da maior parte da costa africana beijada pelas águas do Índico e do Atlântico.

Organizando o corpo expedicionário que tinha a seguinte composição: quartel general, 3 batalhões de artilharia de montanha, 3 batalhões de infantaria, 3 baterias metralhadoras, uma mixta de engenharia e o competente serviço de saúde, administrativo e de transportes, no total de 4642 homens, 945 solipedes e 159 viaturas[1], partiu o seu primeiro troço nos paquetes “Portugal” e “Moçambique” da Empresa Nacional de Navegação, respectivamente nos dias 28 de maio e 3 de junho, em demanda da Baía de Tungue, sendo Palma também previamente escolhida para base marítima das operações.

O embarque das forças nos paquetes Portugal e Moçambique fez-se sem a mais leve nota discordante. Neste ultimo vapôr seguiu o quartel general.

Ninguém faltou à chamada. O aspecto das tropas a sua apresentação marcial e a despreocupação que se lia em todos os rostos, sorridentes e alegres, produziram a mais lisonjeira impressão entre a numerosa assistência que fôra despedir-se dos que partiam em defesa da honra nacional.

Eles, os que embarcavam, sabiam bem que os esperava a imensidade inóspita dos sertões africanos; que seguiam para os bivaques na atmosfera envenenadora dos pântanos para uma rude e aspérrima campanha enfim. Que importava!

Exigia-o a honra da pátria. Era o dever partir e o exército lusitano não sabe e nunca soube furtar-se ao seu dever. Se lho impõe a disciplina e a honra, exige-lho também o coração.

No dia 3 de julho, fundiava na Baía de Tungue o Portugal e no dia 5 o Moçambique.

No próprio dia da chegada e pouco depois de o Moçambique haver lançado ferro, foi o quartel general informado pelo malogrado tenente coronel Moura Mendes, comandante da expedição de 1915, da pouco animadora situação sanitária em que se encontravam do seu comando. Apesar de permanecerem em porto Amelia desde que chegaram de Metropole a abril de 1915, a marcha sôbre Kionga e o violento e extenuante serviço de vigilância nos postos avançados, nas insalubérrimas margens do Rovuma, aonde eram constantemente inquietados por freqùêntes ataques do inimigo, tinham-nas por tal forma abatido física e moralmente, que urgente se tornava repatriar todo ou a maior parte do destacamento, e o mais breve possível.

Assim opinava o capitão médico Jaime Ribeiro, chefe do serviço de saúde, profissional que bem conhecia, por uma longa pratica, os profundos estragos causados nos europeus pelas doenças próprias pelos países quentes.

O hospital de M`Lamba regurgitava de doentes, cheios também estavam os hospitais improvisados em Kionga e Palma, com a circunstância agravante de nestes últimos, faltarem por completo os mais indispensáveis elementos para serem convenientemente tratados os impaludados e disentéricos.

Alguns homens sofriam até de violentos ataques de loucura.

Uma tão confrangedôra, situação impunha ao comando o dever de mandar substituir, sem delongas, as forças em primeira linha, o que se faz realmente, e mostrava-lhe, como a evidência palpitante, o que esperava a gente que tinha sob o seu mando.

E como o comandante da expedição tinha instruções para incorporar a de 1915 na da sua chefia, via-se, como é óbvio, privado do concurso duma bataria de artilharia, duma de metralhadoras e do batalhão de infantaria 21, com que contava, e ainda de algumas companhias indígenas, as quais pela longa permanência em campanha, estavam impossibilitadas de poderem exercer qualquer esforço útil e proveitoso. Eram as primeiras e sérias contrariedades.

Tive depois ocasião de verificar pessoalmente que não eram carregadas em demasia as côres do lúgubre quadro que aquêle chefe me pintára, e desde então arreigou-se no meuespírito a convicção inabalável de que conservar forças do exército metropolitano, em campanha, nos países tropicais, por mais de seis meses, se humanitariamente é um nefando crime, sob o ponto de vista militar constitui um êrro monstruoso que conduz os chefes às mais difíceis e irredutíveis situações.

Não há que esperar deles trabalho aturado e eficiente. A acção do clima é implacável.

Só poderia então comando contar com o quartel general e com os restos do esquadrão do 3, que ainda permanecia em Porto Amelia, mas desprovido de montadas que só mais tarde foram adquiridas na Africa o Sul, pelo governo da província de Moçambique. Prestou ainda assim valioso concurso no movimento de avanço pela colonia alemã, no serviço privativo da cavalaria, difícil e perigoso de executar no mato.

 

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Enquanto se aguardava a chegada do Zaire, do Machico e do Amarante, que deviam conduzir o restante pessoal, gado e material para completo da expedição; enquanto se esperava ansiosamente a remessa de camions, trabalhava-se sem descanso, febrilmente nas construções precisas e fazia-se surgir uma base marítima num local pantanoso e assoriado.

A engenharia, que começou logo a produzir trabalho valioso, levantou pavilhões para os hospitais e anexos, construiu depósitos para viveres, para material e para fardamento, oficinas, garagens, paióis para munições de guerra, etc.,etc.; tudo o que era indispensável para o resguardo das tropas e para a conservação do material e do gado, porque em Palma nada existia. O seu pessoal inexcedível em dedicação e patriotismo foi auxiliado neste lavor continuo, por empregados e operários civis de Lourenço Marques.

Para conjurar as inúmeras contrariedades e vencer todas as deficiências determinadas pela força das circunstâncias provenientes do estado de guerra e da enorme distância à Metrópole, das quais portanto ninguém era responsável, durante esses intermináveis meses de preparação, todos a porfia, chefes e soldados, empregavam o melhor da sua energia e atividade para que tudo se apresta-se afim de, sem demora, se iniciarem as operações. Só por isso bem merecem da Pátria esses valentes que ali se sacrificaram quási todos a saúde e um grande número a própria vida.

O extenuante serviço de desembarque arrastava-se com grande morosidade, por falta de material adequado e pela má disposição do local em que se efetuava, apesar do inexcedível zelo e dedicação do inteligente esforço e atividade, com que o dirigia o capitão tenente da armada, Sr. João Belo. Comandante da Chaimite, que dele estava encarregado.

Logo que as circunstáncias o permitiram, foram evacuados os doentes da expedição anterior, em numero de 900, aproximadamente, entre oficiais e praças, sendo a maior parte dele repatriados, muito desses infelizes não voltaram mais a pisar o sólo querido da pátria, tiveram como rude cemitério, as areias do deserto africano ou o fundo do mar. o que restava dela não merecia confiança pela sua minguada resistência física.

Urgia, pois, reconstituir o destacamento de 1915, para que foram requisitados telegraficamente, os competentes reforços.

E, porque era a minha convicção que as forças chegadas então da Metrópole estariam completamente esgotadas, pela influencia do clima e pela agruras duma companhia violenta e prolongado quando começassem as grandes chuvas, declarei para o ministério das colonias, que julgavam necessária a chegada ao teatro da guerra, em princípios de novembro, duma nova expedição, para substituir ou reforçar a do meu comando, que então estaria exausta.

Tudo dependia de, para esse tempo, estar ou não terminada a guerra.

Não se pode dizer, com verdade, que o quartel-general não previa e prevenia, com bastante antecedência, todas as hipóteses.

O estado-maior e os oficiais em geral, ao mesmo tempo que procuravam sugestionar a gente que tinham sob as suas ordens para vencer, com a coragem e resignação própria de portugueses, a ação danificadora do clima, para arcar, em aspérrima luta, com uma natureza tão opulenta e exuberante de vida, como profundamente devastadora e cruel, não se esqueciam um momento da preparação para a guerra.

Todas as unidades e formações consumiam algumas horas na instrução tactica e do serviço de campanha e na teoria e prática de tiro.

Visto que teríamos que medirmos, disse já, com o inimigo tão inexorável perverso, como exímio na arte de combater, visto que não batalharíamos com pretos selvagens ignorantes, urgia que nos preparássemos o melhor e mais rapidamente possível. Mesmo porque, se excepcionais eram os predicados do adversário, maior seria a nossa glória submetendo-o.

Depois do quartel general haver procedido ao reconhecimento de Rovuma, para uma passagem à viva fôrça bem como ás posições e postos estabelecidos no território de Kionga, diferentes medidas eram tomadas sucessivamente que constituíam os preliminares, os primeiros preparativos para as operações activas:

Um pelotão de sapadores mineiros foram encarregados de abrir uma estrada directa de Palma a Nomôto a qual facilitava consideravelmente as comunicações deste posto com a base, e a concentração das forças nas proximidades do Rovuma, quando se toma-se a ofensiva; uma brigada telegráfica estabeleceu comunicação directa entre Palma e N`hica; procedia-se ao reconhecimento do terreno ao norte de Palma até ao Rovuma e dêsde N`hica até à foz deste rio e ao estudo dos recursos da região a atravessar; e efectuava-se o levantamento itinerário das estradas e caminhos que nela se encontravam.

Era tambêm ordenado ao comandante da companhia mixta de engenharia para proceder à escolha do local mais recomendado para o lançamento de uma ponte sobre o Rovuma, destinada a dar passagem a viaturas automóveis e a tropas de todas as armadas.

Entretanto os alemães não estavam inactivos além Rovuma. Sempre que podiam, atacavam por surpresa fazendo uma guerra sem tréguas e de extermínio.

Na noite de 31 de julho tentávam êles surpreender o posto de Nangadi; sendo descobertos, ouve ligeira escaramuça. Retiraram. No dia 1 de agosto atacaram em fôrça o reduto que defendia o posto, depois préviamente terem cortado a linha telegráfica para isolárem o mesmo reduto. Do nosso lado, ficou ferido um tenente e 3 soldados indígenas. O inimigo teve 1 oficial e 5 soldados mortos, 10 soldados gravemente feridos e 1 desaparecido.

A pólvora com fumo, empregada por parte das nossas forças coloniais, não permitiu que se visse o atacante e se pudessem conhecer os seus progressos no ataque.

As tropas portuguesas, por seu lado, não perdiam o ensejo de incomodar o adversário.

Em 8 de agosto, o tenente de infantaria Pais Gomes, o 2º sargento Manuel Ferreira e 20 praças da 21ª companhia indígena expedicionária, de guarnição em Maziua, atravessaram o Rovuma e atacaram por surpresa o posto alemão, fazendo 1 prisioneiro e apreendendo armamento, munições e o arquivo. Foram louvados.

Mereceram tambêm louvor o 2º sargento Quitério da 21ª companhia indígena expedicionária, e 40 praças que comandava, pela enérgica resistência que fizeram a um ataque do inimigo ao posto de Unde, durante 4 horas; e o 2º cabo Camossi, do corpo de polícia dos territórios do Nyassa, porque na mesma ocasião, com 15 soldados, atravessou o rio perseguindo os alemães em retirada, causando-lhe baixas.

No dia 15 de agosto foi atacado um comboio de víveres que ia de Namoto para Nachinamoca. A escolta resistiu, repelindo o adversário, mas fugiram alguns carregadores, abandonando as cargas o que era frequente.

Antes de se efectuar a invasão da colonia alemã, pequenos reencontros se continuaram a dar entre fracções portuguesas e gente alemã, além daquelas a que venho fazer referencia, e nas quais o inimigo foi geralmente batido e louvado o processador dos nossos, em varias ordens de serviço.

 

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Emquanto, numa ansiedade mortal, esperávamos que se preparassem os preparativos para a ofensiva, tudo se ia dispondo também, metódica e persistentemente, para se operar a travessia do Rovuma, 1ª empresa a realizar e de não pequena monta. Era de querer que o inimigo procurasse a evitar, por todas as formas, pondo em prática os meios mais violentos, que transpuséssemos aquela artéria fluvial, ou que, pelo menos tentasse retardar, o mais possível, o nosso intento.

Primeiramente, em agosto, o chefe de estado maior da expedição, tenente coronel do estado maior, Azambuja Martins, e mais oficiais adjuntos, procederam ao reconhecimento do rio, a montante da foz até Nachinamoca, para uma passagem à viva força, explorando os vales ai existentes que pudessem ser aproveitados para a travessia por tropas. E como fosse necessário construir jangadas num dos vales e preparar o acesso a todos eles, por meio de caminhos cobertos e trincheiras, foi esta missão cometida à engenharia, que dela se desempenhou briosamente.

Operando o reconhecimento e escolhidos os locais de passagem, fixou-se uma das madrugadas da segunda quinzena de setembro para a travessia, e isto tendo em consideração a hora a que se produzia a baixa mar.

Encarada fria e serenamente a situação militar e considerando que o malogro da tentativa de passagem, em 27 de maio, e a passividade das nossas tropas depois disso, deviam ter levantado a força moral do adversário; considerando ainda que ele dispunha, segundo as indicações da espionagem e as informações colhidas por via dos aliados, de forças importantes nos distritos de Lindi, Quilôa e Mahenge, tudo aconselhava a que a empresa que íamos tentar, das mais difíceis na guerra, fosse cuidadosamente preparada e levada a efeito com tropas numerosas.

Nesta conformidade, foram tomadas todas as disposições para se atravessar o Rovuma com um destacamento mixto[2], que pudesse resistir a um forte ataque adverso, nas proximidades de N`hica, 40 quilometros a montante de Namôto, na madrugada de 19. O destacamento devia concentrar-se em Naquidanga e depois demandar o seu objectivo: atravessar o rio e seguir para Mikindane, devendo cobrir o flanco esquerdo do grosso das forças, que procurariam alcançar o mesmo objectivo, depois de invadirem a colónia alemã. Simultaneamente deviam executar movimentos ofensivos forças concentradas em Mocimboa do Rovuma e no Unde, das que guarneciam os respectivos sectores, reforçadas com outras que, porventura, podessem ser dispensados. A gente de Mocimboa procuraria atingir Newala e, sendo possível, Massassi, e a do Unde seguiria na direcção de Sassavára e Songêa.

A coluna do Lago, do comando do major Campos, ordenou-se que marchasse com a possível celeridade na direcção do Lago Nyassa, que invadisse a colónia alemã e procurasse também alcançar Songêa.

Esta coluna ainda chegou a partir de Porto Amelia, mas, em consequência do seu pequeno efectivo e por se aproximar a época das chuvas, teve que retrogradar.

Como só no dia 6 de setembro havia chegado a Palma o paquete “Beira” conduzindo alguma infantaria, a companhia de transportes – que devia ter sido a primeira gente a partir a fim de organizar o importante serviço da sua especialidade – o estado maior dum grupo de artilharia, e muito e vário material de toda a espécie, indispensável às diferentes unidades e formações; e como só no dia 12 se ultimasse o desembarque, feito febrilmente, tendo até tomado parte nêle soldados do exército metropolitano, só no dia 14 foi possível ordenar a marcha para Namôto, das primeiras fracções do grosso das forças que ali teriam de passar o Rovuma.

Já em dez se tinham deslocados algumas unidades do destacamento que devia operar a montante de N´hica e que, como sabemos, se devia concentrar previamente em Naquidanga.

O movimento de concentração continuou nos dias imediatos.

O quartel general seguiu para Namôto em 16.

Tudo assim estava disposto, quando, no dia 13 se recebia, ainda em Palma, um radiograma do almirante inglês comunicando que em Mikindane, que fôra ocupada por forças indianas, ali desembarcadas, já tremulava a bandeira britânica. O inimigo evacuára a cidade dias antes.

Uma tal comunicação que vinha inutilizar todos os esforços empregados, esforços épicos, de cuja grandeza só pode fazer ideia quem os presenciou, para atravessarmos o Rovuma e seguirmos em demanda do nosso objectivo, deixou o comando deveras embaraçado.

O alto comando inglês, mandando ocupar Mikindane e deixando outros portos mais ao norte em poder do adversário impedia que os portugueses avançassem pelo litoral. Opunha-nos uma barreira invencível.

No quartel general houve a impressão, fundamentada, de que se os alemães abandonaram aquele pôrto é porque tinham firme certeza de que nós, com forças relativamente importantes, iriamos ataca-los além Rovuma e bate-los. Imaginou-se também que eles haviam retirado para o sul a fim de se oporem com todos os meios de que dispunham à travessia dos portugueses. Tudo o fazia acreditar.

Tínhamos já, pois, prestado, só com a nossa atitude ofensiva, um serviço dos aliados.

O General Smuts, que sempre se manifestára desfavorável à nossa acção na zona do litoral, desejava antes que operássemos no vale do Rovuma, isto é precisamente onde ela seria mais difícil, mais demorada e, sem duvída, mais inutil e perigosa. Aquela região é não só insaluberrima, com fálha de vias de comunicação, sem recursos de qualquer espécie e onde a devastadora tsé-tsé destrói, implacavelmente o gado cavalar e muar.

Instalado o quartel general em Namôto, foram minuciosamente inspecionados os trabalhos efectuados pela engenharia; procedeu-se ao reconhecimento do rio e dos vaus; e fixaram-se, de acordo com o comando respectivo, as posições que a artilharia devia tomar para auxiliar e favorecer o avanço das colunas.

Do nosso lado ignorava-se absolutamente que os alemães tivessem abandonado os postos da margem norte do rio e se tivessem internado.

Ainda no dia 17, pela tarde, foram vistos pelos oficiais do estado maior do quartel general, que acompanhavam o comando no reconhecimento, vedetas inimigas naquela margem.

Contávamos pois, ao contrário do que sucedeu, que o adversário iria oferecer-nos tenaz oposição. Assim era de supor.

Finalmente, depois de tão laboriosa preparação, transpunhamos o Rovuma, junto a Namôto, na madrugada de 19 de setembro, em três colunas de batalhão com metralhadoras[3], sob a protecção da artilharia.

A coluna da direita passou em jangadas, num canal de cento e tantos metros de largura e sete de profundidade, sendo o acesso às jangadas por caminhos cobertos e trincheiras abertas numa vertente escarpada; a do centro, a vau, com água por cima dos joelhos numa extensão de 300m, chegando a atingir os quadris num trajecto dalgumas dezenas de metros; a da esquerda, também a vau, atravessando vários canais com água pela cintura.

A divisão de artilharia, que havia ficado com reserva, passou à margem norte nas jangadas, e foi posta às ordens do comandante da coluna direita. A cavalaria transpôs o rio a vau seguindo em reconhecimento para o norte. Foram logo ocupados os postos de Marunga, Migomba e Fabrica, sendo em todos êles asteada a bandeira portuguesa.

Era deveras emocionante o espetáculo que se divisava do local em que se encontrava o quartel general: As tropas, mal esboçadas nos alvores da madrugada, avançavam para os vaus, caminhavam para o desconhecido, atirando-se à água denodadamente, e, apesar de esperarem ser, a cada momento, alvejadas pelas balas inimigas, progrediam sempre, sem uma hesitação, e com energia e um vigor admiráveis.

Se não houve resistência da parte do adversário, contra a espectativa gral, nem por isso essa acção guerreira deixou de construir um feito importante pela forma audaciosa e firme como foi executada. Tanto assim o pensou o comando que levou as tropas pelo seu honroso proceder.

Quando chegou a Migomba, o general comandante dirigiu aos seus soldados palavras de incitamento. Aos do 23 lembrou que eram os mantenedores das heroicas tradições dos valentes que, em Albuera, fizeram, pelo seu homerico esforço, pender a vitória para o lado dos já então aliados, portugueses e ingleses, desses mesmos que hoje combatiam os alemães. Aos do 24 disse que esperava que nesta campanha fossem sempre tão bravos como aqueles seus camaradas, que muito se distinguiram na heroica defesa da Ponte de Amarante, contra as hostes de Soult.

A coluna de Nakidanga, depois de reconhecer o vau de Mayembe, no dia 16, sem que o inimigo se denunciasse, explorava, no imediato, o de Nhica, havendo tiroteio.

Em 18, atravessou o Rovuma, sem resistência, a uns 6 quilometros a montante do posto de N´hica e 40 da foz daquele rio.

No dia 19, ocupou Mayembe, depois de uma penosa marcha em que demorou 9 horas a percorrer 12 quilometros, atravessando vaus com 1,m20 e 1,m40 de altura de água, e no dia 20 estabelecia-se em Tschidia, sem combate[4]*. O inimigo retirou na direcção de Mahuta. A coluna, seguindo primeiro para Curaza, partia depois para Migomba.

 

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Não afrouxaram os nossos esforços, depois de efectuada a travessia do Rovuma.

Estabeleciam-se vários postos: um em Madimba, na estrada para Mikindane, o qual dias depois era transferido para Karibos, 14 quilometros para o norte; outro em Mnasi, na baía do mesmo nome e ainda um terceiro em Tokôto, na foz do Rovuma.

Reparavam-se as estradas da margem norte e ligavam-se pelo telegrafo e telefone os postos conquistados, montando-se também uma linha para Mikindane.

Era enviado um reconhecimento de oficial a esta cidade para se pôr em ligação com as forças britanicas e notificar ao comandante militar inglês quais as unidades de que dispúnhamos, naquele momento, para uma acção conjunta ao longo da costa.

O nosso desejo era colaborar eficazmente com os aliados.

Impossibilitados de podermos seguir em demanda do objectivo que nos fôra designado, e constando que no quartel general, por informações seguras, que o inimigo retirára para Newala e Massassi, dizendo-se também que os prisioneiros portugueses que estavam em seu poder, desde 27 de maio, tinham seguido de Lindi para a ultima daquelas localidades, deliberou-se, enquanto se aguardavam instruções superiores, enviar um reconhecimento a Newala[5], como preparativo de empresa de maior monta.

Além do dever que assistia ao comando português de perseguir o inimigo, procurando bate-lo, muito desejava ele também poder dar a liberdade aos nossos prisioneiros. Urgia resgatar, fosse como fosse, esses desventurados que havia tanto tempo estavam em poder dum adversário que não primava pela generosidade.

Organizou-se o reconhecimento sob a direcção do sub-chefe do estado maior, hoje major Liberato Pinto, sendo a escolta composta de duas companhias indígenas e uma bateria de metralhadoras.

Partiu em 25, chegando a Mayembe em 28; e no dia 30 atingia Miambua. O gado sofreu grandes baixas devido principalmente ao excessivo trabalho, por isso os caminhos estavam intransitaveis.

Os indígenas recebiam os portugueses amigavelmente.

O inimigo retirava sempre, queimando o que não podia transportar.

No dia 14 de outubro, pelas 15 horas, foi atacada a escolta, quando marchava de Mahuta para Nkundi. Travado o combate era o inimigo desalojado das suas posições defensivas.

A nossa gente veio para Ntshishira e Cikumbiriro por se aproximar a noite e haver falta de água. O combate de Mahuta foi relativamente um dos mais mortíferos de toda a campanha[6].

Ao passo que avançavamos na colonia alemã, era invariavelmente seguida com os indígenas uma politica de atração e carinho, baseada na mais declarada protecção. Para os cativar, a centenas dêles, que se achavam na mais compungente miséria porque os alemães lhes subtraiam tudo quanto podia servia para alimentar os seus askaris, foram distribuídos panos e alimentos, pelo que se mostravam reconhecidissimos, submetendo-se, sem a menos relutância, ao domínio português.

Depois de vários telegramas trocados entre o quartel general e o comando em chefe do exercito britanico, fixou-se de comum acôrdo qual devia ser acção da gente lusitana e a sua colaboração com os aliados. Toda essa correspondencia, que os acanhados moldes dum simples artigo nos não permite reproduzir, constitue a prova provada, de que o comando português, sem quebra da mais absoluta independencia, procurou sempre e dentro dos limites do possivel, proceder de acôrdo com o general que comandava as hostes inglesas e usou tambem com ele da mais pura lealdade.

Apesar de se reconhecer a dificuldade do empreendimento, acordou-se, por ultimo, em que os portugueses avançariam na direcção de Liwale pela linha do Rovuma[7], precurando alcançar, no mais breve tempo, Massassi e Lukuledi, ocupando também, se possível fosse, Bengala e Tonduruz, e isto com o fim de evitar que fracções alemãs dispersas se podessem fornecer nessa área.

Tendo o reconhecimento que marchava para montante, pela margem norte do Rovuma, encontrado o inimigo em Mahuta, para se proceder em harmonia com os desejos do general Smuts, foi organizada a coluna Massassi, com o fim de continuar as operações ofensivas. Estabeleceu-se logo uma nova linha de comunicações, por Nangadi, desde Palma para a margem norte do Rovuma, abrindo-se estradas para automóveis, porquanto o reabastecimento para os postos da margem sul daquele rio era feito por caminhos de carregadores.

O comando da coluna foi dado ao então major de infantaria 24, José Pires, tendo como chefe de estado maio, o actual Major Mesquita. Era constituída pelas unidades do reconhecimento de Newala e mais 2 companhias indígenas, 1 pelotão de infantaria montada, 1 divisão de artilharia, 1 bateria de metralhadoras e uma secção de ambulancias.

Marcharia pela margem norte do Rovuma para Newala e Massassi, atacando o inimigo onde o encontrasse. Logo que a capacidade do reabastecimento de viveres permitiu aumentar as forças da coluna, foi esta reforçada com 2 companhias de infantaria, 1 divisão de artilharia e 1 pelotão indigena.

Comandava o reforço o major Gama Lobo, levando como adjunto do estado maior o capitão Armando Machado. Novas unidades foram ainda postas à disposição do comandante da coluna, assim como uma secção de T.S.F.

Determinou-se depois que o chefe do Estado Maior, tenente coronel Azambuja Martins marchasse com uma escolta[8] a reconhecer a nova linha de comunicações, procurando atingir Newala e cooperar com a coluna de Massassi.

Entretanto era organizada a ocupação dos territórios recentemente conquistados ficando a acção politica e civil dos indígenas a cargo do comissário de policia.

A par da ocupação militar organizaram-se capitanias mores.

Foi demorada a marcha da coluna de Massassi,pois que, tendo partido nos primeiros dias de outubro, só em 18 seguiu de Ntshira em direcção a Newala, chegando ali em 26. Teve, é certo, que vencer contrariedades e obstáculos de toda a espécie, mas podia muito bem tal demora ter comprometido o bom êxito da empresa, pondo em risco a escolta do reconhecimento que, sem duvida, foi bastante mais enérgico no avanço[9].

O reconhecimento, com a escolta recomposta, partiu de Mocimboa do Rovuma no dia 20; em 21 estabelecia o contacto com o inimigo em Lakalala, forçando-o a retirar; e no dia 22 tomava a Ribeira de Newala, que abastece de água o fortim e a localidade, depois dum violento e demorado combate, obrigando o inimigo a retirar precipitadamente. Apreenderam-se armas e munições.

Tendo-se aguardado a chegada da coluna de Massassi para colaborar no ataque, pelas 18 horas do dia 26, entravam os portugueses em Newala, depois de se ter travado luta em que tomou parte a nossa artilharia bombardeando a fortaleza.

Foi apreendido muito material de guerra e uma peça. A cavalaria num raid audacioso alcançava a vasta região de Lulinde, repelindo o adversário.

Merecido louvôr tiveram muitos dos vencedores de Newala e em especial o tenente coronel Azambuja Martins, pelo acerto e competência com que dirigiu o reconhecimento e depois o ataque geral.

O alto comando inglês reconhecia tacitamente o sucesso da ofensiva dos portugueses que, em pouco tempo e com bem parcos recursos, haviam avançado mais de 200 quilómetros no território inimigo, batendo-o em sucessivos e sempre violentos recontros, pretendendo mandar para junto do nosso quartel general o major Adler, um colonial de mérito, para auxiliar o comando na administração da zona conquistada.

Assim sucedeu com os belgas, dizia o general em chefe do exército britanico.

 

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Até aqui havia-nos sido propícia a sorte das armas. Levavamos o inimigo de vencida, tendo os soldados de Portugal, dado mostras, nos mais difíceis lances, de suprema tenacidade, abnegação e valor. Não desmentiam as gloriosas tradições da nossa raça, raça de herois.

Encorporada a escolta na coluna de Massassi, e organizada a linha de comunicações pela margem norte do rio, abriam-se estradas desde a Frabrica até Sicumbiriro. Mas como os ingleses, que estavam em Mikindane e já tambem em Lindi, não avançassem para o interior da colónia, ficava esta linha muito exposta, pelo que foi adoptada a de Nangadi, devidida em três troços[10], correspondentes a obstáculos que cortavam o movimento de camions.

A coluna de Massassi, cujos efectivos iam sucessivamente diminuindo por doença, baixando aos hospitais dezenas de praças e oficiais em cada dia, era reconstituída com 2 baterias de artilharia e uma companhia de infantaria.

Já começava a sentir-se a falta de reforços.

Depois de concentrados os abastecimentos indispensáveis em Newala, que passou a constituir uma base secundária, e de reorganizadas as diferentes unidades, o destacamento iniciou o movimento de avanço no dia 8 de novembro, sob a direcção do seu novo comandante, o major de artilharia, Leopoldo da Silva. Encontrando o inimigo no fim da primeira etape, em Kiwambo, bateu-o em porfiado combate e repeliu-o na direcção de N.O., para além de Nangôma, 25 q. de Newala, tendo sofrido perdas importantes.

Foi ferido o comandante da coluna, vindo a falecer em resultado dos ferimentos, e o alferes Leite, seu ajudante. Bem mereceram referencia especial, na ordem de serviço, muitos valentes de Kiwambo.

Causou profundo pesar e geral consternação a perda daquele distinto oficial, um dos mais hábeis profissionais da artilharia lusitana e que honrava o exército pelo seu saber e amor à disciplina. Mostrou também naquele lance fatal que era valente até à temeridade e ousado até à loucura.

Foi mortalmente ferido quando, no mais rijo da luta, procurava dar à sua gente um nobre exemplo de heroico valor.

No mesmo dia em que se feriu o combate de Kiwambo atacaram os alemães o posto militar de Mahuta, deixando no campo 2 europeus e 15 askaris mortos e 5 prisioneiros. Foram sem demora restabelecidas as comunicações.

Era também espingardeado um camion que conduzia doentes, havendo mortos e feridos.

Nomeado comandante da coluna de Massassi o hoje tenente coronel Aristides Cunha, de infantaria 23, conservou-se a mesma em Nangôma até à sua chegada.

Em 18 de novembro comunicava de ali que importantes forças inimigas vindas do Norte se estavam concentrando em Massassi e proximidades, preparando-se para cortar as comunicações com Newala e para atacar a praça, que não dispunha de artilharia. No dia imediato, confirmava aquelas informações e declarava que por julgar deveras critica a situação na Ribeira de Newala retrogradava para reforçar Newal, que deviamos manter a todo custo. Efectivamente os alemães, procedendo a uma concentração de forças, atacavam na madrugada de 22 a Ribeira de Newala, resistindo os nossos energicamente e só abandonando a posição ao terceiro assalto, efectuado por um adversário muito superior em número[11].

Depois, tendo sido anulado o esforço duma coluna de socorro, constituída por gente combalida, por doente, cercavam o fortim que os nossos, por falta de água, abandonaram, na noite de 28, com perdas mínimas, iludindo o cêrco.

Durante dias permaneceu a fraca hoste em Newala, dispondo sómente de meio litro de água por dia e por cabeça, mas resistia com inegualavel valentia aos constantes ataques do adversário que varejava o defensor com o fogo das suas numerosas metralhadoras, e suportava com estóica resignação todas as privações, todos os infortunios.

A coluna, que iniciara a marcha mantendo a mais austera disciplina, internando-se no mato por caminhos desconhecidos fraccionou-se, alguns elementos dispersos desorientaram-se por lhes faltarem os guias e foram ao encontro dos postos avançados alemães – que só então deram pela saída dos nossos – travando-se combate.

Vencendo inumeras dificuldades, guiados pelos oficiais e graduados, transpunham os elementos desconexos da coluna o Rovuma nos dias 29 e 30 e chegavam extenuados, famintos, tendo percorrido uma verdadeira via dolorosa, a Mocimboa e Nangadi.

Paralisada a ofensiva dos portugueses após o bombardeamento de Nangadi, da margem norte do rio, com uma peça de 10,5 centimetros do Koenisberg, o que mostra nitidamente a importancia dos recursos concentrados pelos alemães contra nós, segue-se o movimento retrogado sobre a base e sobre os postos proximos.

Eis o que foi retirada de Newala, que como operação de guerra em nada esmoreceu e maculou os tradicionais brios e o épico valôr da gente portuguesa, mas que até deu causa à pratica de inumeros actos heroicos, da nossa parte.

Bem injusta, apaixonada e levianamente, para o pundonor do exército e da Nação, foi julgada esta fase da campanha. E todavia esse passageiro infortúnio não atormentou por tal forma a alma dos nossos soldados que se extinguissem nela as sublimes virtudes patrióticas e de valentia que deram aos antigos guerreiros lusitanos a grandesa de semi deuses e dao aos modernos a bravura dos herois.

Nos meados de dezembro, começou a época das chuvas na zona de operações sendo tao torrenciais que as águas do Rovuma rápidamente se avolumaram de modo a constituírem um obstáculo insuperável. Esta circunstância permitiu que apesar do esgotamento geral da nossa gente, fossem reocupados os postos da margem sul do rio, transitoriamente abandonados.

Contando que se evolaria breve a nuvem negra que nos apagára momentaneamente a chama fascinadora da vitória, aguardavam-se os reforços para, em tempo oportuno se empreender um retorno ofensivo.

São pois dignos de louvor e agradecimento a energia e valor dos chefes e a bravura dos subordinados em tão emocionante campanha. Lutando nas condições mais defavoraveis sob a acção do clima dos trópicos, que não só conduz à incapacidade física, como também à mais terrivel e intensa depressão moral e inutiliza as maiores e mais provadas energias, conseguiram êles levar na ponta das suas baionetas o mais perigoso dos inimigos, só cedendo terreno perante uma superioridade esmagadora e quando já esgotados.

E depois não devemos esquecer que as marchas realizadas, dias e dias, atravez do matagais africanos, em que a visão se limita a alguns metros apenas em que o perigo sempre se oculta próximo, sem nunca se tornar visível, constitue uma tão dura prova que excede os maiores sofrimentos humanos.

Toda a minha admiração pois por esses bravos que, se não alcançaram um triunfo retumbante, pelo seu inegualavel esfôrço, patriotismo, resignação e valôr, bem merecem o reconhecimento da Patria que nunca negou aos seus filhos o devido galardão.

 

Maio de 1919.

 

General FERREIRA GIL.

 


[1]  As unidades que a constituíam eram: Infantaria – Os terceiros batalhões dos regimentos 23, 24 e 28. Metralhadoras – As primeiras baterias do 4º e 5º grupos e 2ª do 8º grupo. Artilharia – As 1ª, 2ª e 4ª baterias do regimento de artilharia de montanha. Da companhia mixta de engenharia faziam parte: meia companhia de sapadores mineiros e secções de ponteneiros, de telegrafistas de campanha, de praça e sem fios.

[2]  A coluna de N`hica era assim formada: 1 secção T.S.F., 1 pelotão de infantaria montado, 1divisão de A.M., 1 companhia de infantaria 23, 1ª bateria do 4º G.M. e as 19ª, 21ª e 24ª companhias indígenas. Comandava-a o capitão Gordo do 23, tendo como o chefe do E.M. o capitão do E.M. Liberato Pinto e adjunto o capitão de artilharia Zilhão e o tenente Matias. Estes oficiais ocupam actualmente postos mais elevados.

[3]  As colunas eram assim constituídas: A da direita: por 1 pelotão de S.M., uma divisão de A.M. a 9ª,10ª e 10ª companhias do 24,25ª companhia indígena e a 1ª bateria do 5º G.M. Comandava-a o major José Pires, do 28, tendo como adjunto o capitão do E.M. Mesquita. A do centro: pela 9ª.10ª e 11ª companhias do 23, companhia indígena da G.R.L.M. e por uma bateria de metralhadoras do 7º G. Comandava-a o major Aristides Cunha e adjunto era o capitão do E.M. Brito. A da esquerda: pela 22ª companhia indígena, pela 9ª,10ª e 11ª companhias do 28. Pela escolta do Q.G. e pela 2ª bateria do 8º G.M. Comandava-a o major Gama Lobo, tendo como oficial do E.M. o capitão Machado. A reserva geral: sob as ordens do general comandante, era formada pela 12ª companhia do 24, pela 12ª do 28 e 1ª companhia expedicionária, além da cavalaria e da artilharia. A força presente na madrugada de 19 de setembro contava: 120 oficiais 4.060 praças, representando 2.682 espingardas, 10 metralhadoras e 14 peças de tiro rapido.

[4]  Foram encontradas trincheiras a cavaleiro do rio, fortemente organizadas e, numa altura próxima, em reduto. Era apreendido muito e vário material de guerra. Entre diferentes espingardas Mauser foram encontradas algumas do modelo português. Apreendeu-se uma peça de bordo, sem culatra.

[5]  Newala era um centro de administração e recrutamento e sede duma missão religiosa. Sabia-se que nesta praça, assim a denominavam na região, existiam 18 brancos e 200 askaris, com artilharia e metralhadoras.

[6]  Perdas dos portugueses: mortos – 1 segundo sargento, 1 1º cabo e 30 soldados; feridos – 1 capitão, 1 2º sargento e 12 soldados, alguns gravemente desaparecidos – 1 alferes e algumas praças. As baixas do inimigo foram muito superiores.

[7]  Considerando irrealista a marcha directa do baixo Rovuma sobre Liwale, por falta de caminhos, o comando português propôz que a coluna seguisse ao longo da costa, por Mikindane e Lindi até Quilôa, para onde seria transferida a base marítima, internando-se depois. Assim se procurava voltar ao primeiro objectivo. Não foi aceite alvitre.

[8]  Comandava a escolta o capitão de cavalaria Conceição. Esta era constituída pelo 4º esquadrão de cavalaria 3 e 2 pelotões indígenas, juntando-se-lhe depois a 1ª bateria do 5º G.M.

[9]  Foi notável a marcha efectuada pela 1ª bateria do 5º G.M. de Palma para Pundanhar, percorrendo 60 quilometros em 24horas.

[10]  1º troço – De Palma ao alto da Serra do Nangadi: 120 quilometros,

   2º troço – Desde o sopé da Serra ao vau do Rovuma: 12 quilometros;

   3º troço – De Sicumbririro a Newala: 48 quilometros.

[11]  As forças alemãs que investiram o fortim e ocuparam a Ribeira eram constituídas por 9 companhias, com avultado número de metralhadoras e artilharia. Eram ao que parece, na sua maioria tropas vindas de Liwale e Mahenge. Comandava-as um oficial de elevada patente.

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2014-09-19
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia