Nº 2553 - Outubro de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A irresistibilidade política do uso de Drones
Brigadeiro-general
João Paulo Nunes Vicente

 

Nenhum outro sistema de armas transformou de forma mais significativa a capacidade americana de combate nas últimas décadas do que a introdução operacional dos drones. Isto é, a capacidade de manter aeronaves sobre um determinado objetivo durante mais de 24 horas, executando atividades de vigilância, mas transportando mais de uma tonelada de armamento de precisão, pronto a ser largado sobre alvos de oportunidade. Ao abrigo deste novo modelo operacional, os drones proliferam no espaço de batalha, numa miríade de atividades essenciais, aliviando o homem de missões monótonas ou demasiado perigosas, sem qualquer risco para o piloto, que permanece a milhares de quilómetros de distância num cubículo refrigerado, visionando a Guerra num monitor de alta definição.

Nesta comunicação pretendemos encontrar algumas pistas que revelem possíveis alterações na natureza do debate político em virtude do emprego generalizado dos drones. Isto é, aquilatar de que forma é que os drones afetam a cultura estratégica dos Estados em recorrer à força coerciva para alcançar objetivos políticos e em particular a sedução política, quase irresistível, de empregar o Poder Aéreo como resposta militar primordial. Neste âmbito, procuramos também indagar se a Guerra Aérea Remota contribui para reforçar a capacidade de dissuasão e compulsão de futuros adversários, ou se, em contrapartida, baixa a fasquia para o uso da força, tornando a conflitualidade hostil mais frequente. Importa também questionar se, ao remover os custos humanos para o ofensor, o emprego recorrente de drones armados se torna uma expressão suficiente da vontade política de fazer a Guerra.

Iremos centrar a discussão tendo como argumento que os drones oferecem a possibilidade de empregar capacidades militares num conflito, sem necessidade de construir um amplo consenso político e público, tornando o processo de decisão política mais facilitado e impulsivo no sentido de usar a força, dificultando, por outro lado, o planeamento e execução da estratégia militar.

À medida que aumenta a imprescindibilidade operacional, somos confrontados com uma proliferação tridimensional da Guerra Aérea Remota. Ou seja, na diversidade de formas e tamanhos, no alargamento do espetro de missões e de base de utilizadores, e nos níveis crescentes de autonomia a par com a perspetiva de armamentização. É exatamente a irresistibilidade do carácter cirúrgico, não apocalíptico, a custos reduzidos, que torna irreversível a sua proliferação, e que tem efeitos desestabilizadores para as Relações Internacionais.

 

Figura 1 – Proliferação Tridimensional da Guerra Aérea Remota

 

Considerando a Guerra como a continuação de relações políticas, com uma mistura de outros meios, pretendemos demonstrar que a preeminência da Guerra Aérea Remota poderá contribuir para alterar a cultura estratégica dos Estados em recorrer à força coerciva, para alcançar objetivos políticos.

Na realidade, a irresistibilidade política, fruto da redução de custos associados ao uso da força, é expressa, por um lado, no aumento da intensidade, ao nível da discriminação individual dos alvos, por outro lado, na maior frequência dos ataques e, por fim, numa maior amplitude geográfica do emprego seletivo de força letal. Contudo, esta irresistibilidade política provoca efeitos boomerang que, ao democratizarem e civilinizarem ainda mais a Guerra, ameaçam transformar a forma como Estados, organizações não estatais, e o próprio indivíduo, encaram a conflitualidade, alterando o seu limiar, a sua frequência, os seus atores e os seus efeitos, fazendo aumentar a hostilidade e perigosidade do ambiente futuro, por natureza complexo e adverso.

Vejamos, então, qual o impacto da Guerra Aérea Remota no processo de decisão política.

Nos momentos que precedem a decisão política de fazer a Guerra, deparamo-nos com dois fatores motivacionais essenciais: os interesses em jogo e o custo do esforço despendido, expresso em “sangue” e “tesouro”.

Também não podemos esquecer que a opinião pública é, nos Estados democráticos, uma força condicionante, e reguladora, das ambições políticas do regime. Contudo, a tolerância às baixas em combate torna-se um indicador primordial do risco que a sociedade está disposta a assumir. Esta aversão ao risco é reforçada pela emergência da Guerra Aérea Remota, porventura até um ponto extremo, em que o combate direto entre homens esteja banido.

Quando, outrora, a Guerra estava reservada para a consecução dos interesses vitais dos Estados, ao diminuir os constrangimentos políticos, militares e humanos, a Guerra Aérea Remota promove o alargamento dos interesses dos Estados democráticos, favorecendo a opção de resposta militar para concretizar interesses periféricos. Desta forma, e no que diz respeito aos custos da ação política, constatamos que esta modalidade pode tornar o processo de decisão política mais facilitado, uma vez que é possível empregar capacidades militares num conflito sem necessidade de construir um amplo consenso político e escrutínio público.

Para além disso, o uso de drones em combate traduz um aumento do controlo político sobre a oportunidade e ritmo das operações como consequência de menor interferência externa, ao mesmo tempo que instigam uma maior intromissão política na condução da Guerra, desde o nível estratégico ao tático. A tendência de interferência política numa campanha que não implique baixas amigas, onde o custo de uma Guerra é medido apenas em dólares, pode criar maiores dificuldades aos militares para planearem e executarem a estratégia aérea. Contudo, a tentação de micro-gestão da guerra futura poderá ser atenuada se considerarmos que a maior granularidade da informação significará um conhecimento mais preciso e relevante, aumentando dessa forma a compreensão do ambiente operacional.

A liberdade de manobra política é também aumentada, uma vez que estes sistemas oferecem mais alternativas estratégicas e a flexibilidade de empregar o instrumento militar sem o pesado ónus de destacamento de soldados para um território hostil. Ao diminuírem as necessidades de bases avançadas para suportar destacamentos militares, reduzem também o valor estratégico de certas parcerias regionais. Assim, os incentivos estratégicos e morais para tornar esta modalidade cada vez mais precisa e exercida de forma remota, vão aumentando à medida que a opção por guerras de larga escala decresce em número e intensidade. É esta redução de custos da ação política que poderá propiciar ações militares preventivas, em áreas de interesse estratégico.

Figura 2 – Bases de operação de drones

 

Relativamente à eficácia estratégica da Guerra Aérea Remota contra atores não estatais, ela estará dependente, como qualquer outro instrumento militar, da amplitude dos objetivos dos atores. A aventura americana no Iraque e no Afeganistão afastou o apetite de invadir regiões tribais no Paquistão, ou de ocupação de países como a Somália, Iémen ou Líbia. No entanto, a necessidade de substituir a opção convencional por uma solução política e publicamente mais aceitável, catapultou os drones para um patamar de requisito operacional urgente.

Nesta perspetiva, existem poucas opções viáveis para lidar com grupos terroristas refugiados em lugares desgovernados ou com estados patrocinadores destes grupos. A contabilização de insurgentes mortos e o constrangimento psicológico imposto aos seus contatos e movimentos demonstram a eficácia tática de tais ações. Isto porque, a aniquilação sucessiva dos dirigentes terroristas dificulta a ascensão de elementos experientes e, como tal, diminui a ameaça de concretização de ações terroristas de grande escala. Assim, a Al-Qaeda está severamente afetada, após uma década de “execuções seletivas”, na sua esmagadora maioria através de bombardeamento aéreo remoto.

 

Ataques efetuados por Militares

Teatros de Operações ativos (US/UK)

Afeganistão: 1.015, desde 2008

Iraque: 48, desde 2008

Líbia: 145, entre 21ABR-21OUT 2011

 

Ataques efetuados pela CIA

“Execuções Seletivas” (Targeted Killings)

Paquistão: 373, desde 2004

(343, desde JAN 2008 - Obama)

Iémen: 109, desde 2002

Somália: 3-9, desde 2007

Fonte: http://securitydata.newamerica.net/drones/pakistan/analysis (04JUL2014)

Tabela 1 e 2 – Número de ataques de drones efetuados por militares e pela CIA

 

Mortos

Total

Civis

Militantes

Outros

Paquistão

2.097-3.449

258-307

1.640-2.808

199-334

Iémen

781-1.024

81-87

669-887

31-50

Fonte: http://securitydata.newamerica.net/drones/pakistan/analysis (04JUL2014)

Tabela 3 – Número de baixas resultantes de ataques de drones no Paquistão e no Iémen

 

Estas visões otimistas encaram o uso de drones como a forma mais eficaz e precisa de empregar a força militar contra insurgentes. Contudo, a sustentação oficial americana para a condução desta modalidade de operação enferma de alguns paradoxos. Em primeiro lugar, transmite uma interpretação expansiva do enquadramento legal, enquanto, simultaneamente, sustenta critérios limitados. Em segundo lugar, procura justificar legalmente uma modalidade de ação que se desenrola de forma secreta. Finalmente, tenta advogar uma imagem de transparência, ao mesmo tempo que se escusa a fornecer detalhes factuais acerca do processo de decisão e da conduta dos serviços de informações.

Numa perspetiva de síntese estratégica, a modalidade de “execuções seletivas” induz uma panóplia de efeitos “boomerang”, que se traduzem numa maior possibilidade de retaliação terrorista, no recrutamento de novos insurgentes, numa maior complexidade do relacionamento político e estratégico dos Estados Unidos nas áreas geográficas dos ataques, assim como numa maior desestabilização regional em países como o Paquistão ou Iémen. Independentemente de se conseguir estabelecer uma relação direta de causa-efeito, é possível antecipar uma erosão da credibilidade americana na região, que gradualmente se vai expandindo a nível mundial.

O alastramento desta modalidade a novos teatros e a uma gama de alvos de nível tático poderá fazer acelerar a oposição, local, nacional e internacional, contribuindo para um maior enfraquecimento interno dos governos em cujo território ocorrem os ataques. Assim, poderá contribuir para diminuir a vontade e a capacidade desses governos em tomarem ações efetivas contra os insurgentes. Nessa perspetiva, a focalização da campanha nos alvos de interesse estratégico, em detrimento da eliminação generalizada de operacionais, oferecerá menores efeitos indesejados. De igual forma, a transferência do controlo deste programa, da CIA para as Forças Armadas, poderá fornecer a tão necessária transparência e responsabilização a uma modalidade ainda envolta em secretismo.

Devido à relativa infância dos drones, por ora, apenas os Estados Unidos dispõem de capacidade para sustentar tais campanhas com impacto global. Em breve, com a crescente democratização da Guerra Aérea Remota, assistiremos a uma maior probabilidade destas ações militares se replicarem.

Pelos benefícios operacionais e políticos apontados, os drones constituirão uma capacidade essencial para aumentar a consciência situacional do espaço de batalha, ao mesmo tempo que possibilitam a aplicação letal da força de forma discreta e precisa. Isto poderá implicar uma alteração das dinâmicas de poder regional, proporcionando às pequenas e médias potências uma capacidade acessível para colocar em risco os Centros de Gravidade adversários, sem os custos, tradicionalmente proibitivos, associados à projeção de poder. Assim, poderemos assistir a uma valorização das posturas ofensivas, em certa medida preventivas, em virtude do custo reduzido de emprego destas capacidades, fazendo perspetivar um aumento da conflitualidade regional, e com ela maiores danos civis.

Ao invés de dissuadir potenciais agressores, parece-nos mais verosimil a perspetiva duma corrida aos armamentos na procura do nivelamento da assimetria, aumentando a proliferação dos drones em modalidades de emprego potencialmente mais gravosas. Neste caso, os efeitos adversos da vigilância persistente e da precisão criam uma presunção de infalibilidade que motiva decisões políticas mais arriscadas, como os ataques em zonas urbanas.

A armamentização dos drones, como consequência da proliferação tecnológica, é uma das áreas que pode, a médio prazo, estar facilmente disponível aos pequenos poderes. Atendendo ao número de países, e mesmo organizações, que dispõem de drones com alcance e capacidade de carga substanciais para transportar armamento convencional ou de destruição massiva, é possível antecipar a disseminação de riscos no panorama internacional. Esse natural alargamento da base de utilizadores a grupos terroristas, organizações criminosas e mesmo ao próprio individuo, poderá fazer alastrar a perigosidade das ameaças que confrontam os Estados.

Ao contrário de outras ocasiões em que os Estados dispuseram do monopólio de emprego das inovações, reforçando a vantagem militar sobre outros atores, atualmente, a proliferação desregulada dos drones parece confirmar a tendência no sentido da perda do monopólio estatal do uso da força, fazendo alastrar estas capacidades a outros atores do sistema internacional, multiplicando o poder do próprio individuo.

A concretizar-se esta tendência, é possível antecipar uma transferência de risco do combatente para a sociedade, alargando métodos, armas e alvos, fazendo transbordar o carácter limitado da Guerra. Perspetiva-se, por isso, que a perigosidade de tais ameaças aumente, antecipando-se a generalização da conflitualidade hostil, à distância, incentivando a comercialização de serviços privados de segurança e defesa. Este fenómeno de transferência tecnológica, catalisado pela eficácia operacional dos drones e a resultante corrida desenfreada a sistemas de combate, pode acentuar a democratização e civilinização da Guerra Aérea Remota, tornando, em particular os pequenos poderes, mais expostos e indefesos a uma panóplia alargada de ameaças.

É possível, então, compreender que a dimensão psicológica e política da Guerra Aérea Remota é, porventura, tão ou mais importante do que o impacto físico dos ataques, uma vez que, ao fornecer aos seus proponentes a possibilidade de vigilância perpétua e ataque seletivo em qualquer parte do globo, de forma discreta e sem risco para a vida humana do ofensor, permite que um estado possa assumir mais facilmente posturas militares preventivas em situações de conflitualidade.

Ao contrário das armas nucleares que, pelos seus efeitos, dissuadem o seu uso, o custo de empreender a Guerra Aérea Remota é relativamente baixo, incentivando as nações mais desenvolvidas a coagirem e imporem a sua vontade a outras nações, com riscos cada vez mais limitados. A confirmação da prolixidade de intervenções em locais remotos do globo fazem vislumbrar, de forma embrionária, o esboço da estratégia aérea do futuro, obrigando-nos a revisitar o relacionamento entre a Guerra e Paz e as sociedades democráticas. Assim, a combinação invulgar de características como a distância entre combatentes, a assimetria de combate, a possibilidade de autonomia no uso da força, assim como a minimização de risco humano e político, confirmam a modalidade de Guerra Aérea Remota como politicamente irresistível.

Em conclusão, podemos afirmar que a Guerra Aérea Remota não é um fim em si mesmo, mas, antes de mais, um instrumento primordial para alcançar determinados fins políticos. Por isso, esta modalidade não pode ser vista como uma solução mágica para a exiguidade política na determinação dos objetivos de emprego do instrumento militar.

Tal como as aeronaves foram um dos artefactos tecnológicos que permitiram equilibrar a assimetria imposta pelo aumento do poder de fogo e do entrincheiramento, característicos da I Guerra Mundial, também os drones se afiguram como uma possível solução para os problemas táticos contemporâneos impostos pela dificuldade de localizar, identificar e atacar alvos de reduzida assinatura em zonas remotas do planeta. Daí a antecipar que estes sistemas se transformem na solução estratégica para as Guerras atuais e futuras, será certamente uma falácia. E, com ela, virão consequências profundas para acentuar a erosão da soberania dos Estados e no consequente aumento da instabilidade das Relações Internacionais.

 


* Comunicação efetuada pelo autor, sob o título “A Guerra como a continuação da Política por outros meios…não tripulados”, no II Congresso Internacional do OBSERVARE: Guerra Mundial e Relações Internacionais – 100 anos depois de 1914, organizado pela Universidade Autónoma de Lisboa e que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, nos dias 2 e 3 de julho de 2014.

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2015-01-23
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by COM Armando Dias Correia