EUROPA
Quem somos nós?
O L’Express de 31 de Janeiro levanta a questão no Editorial do seu Director, por considerar que sessenta anos após o final da Segunda Guerra Mundial, ela deveria assediar a Europa, porque o principal interesse do passado é o de esclarecer as pessoas de hoje e de amanhã. E o que acontece é que nós, prisioneiros do quotidiano de cada um, passamos a viver uma história anónima, que levou Marc Ferro a resumi-la de forma brilhante, na sua última obra, cujo título traduzido é o de Os Indivíduos face às crises do século XX. Epigrafou-a com a seguinte citação do “Diário de Kafka”: 2 de Agosto de 1914. A Alemanha declarou a guerra à Rússia. À tarde, piscina.
A questão Quem somos nós? torna-se ainda de mais necessária resposta porquanto a globalização abala as identidades nacionais e põe em causa todos os seus elementos constitutivos tradicionais. Samuel Huntington, voltou a abordar o fenómeno mundial numa obra acabada de publicar, que Jeambar considera um livro acontecimento sobre a identidade nacional, a que deu exactamente o título Quem somos nós? Identidade nacional e choque das culturas.
Resumiu o referido fenómeno nos seguintes termos:
“A modernização, o crescimento económico, a urbanização e a mundialização, originaram encolhimento das identidades e a sua redefinição numa escala mais reduzida, comunitária e íntima.”
Refere-se que os Prefeitos informam que, quando a questão é posta aos Franceses, estes se mostram descrentes de tudo, pelo que se torna urgente enfrentar as causas perante o fracasso do discurso político face a tão profundo mal-estar.
A situação portuguesa assemelha-se a esta, e aliás isso não aconteceu apenas nos dois países ocidentais, em que as mensagens parecem não passarem dos governantes para os governados num momento que, no entanto, é decisivo para o futuro desses povos.
Os debates sobre a Constituição Europeia e a entrada da Turquia na União deveriam mobilizar as opiniões públicas, quando se trata de definir o futuro dos países que nela estão ou à qual pretendem pertencer, e, afinal, ou não as despertam, ou suscitam nelas pouco eco.
Levanta-se a questão de saber se isso, é culpa dos povos ou dos que os conduzem. Amontoam-se as referências às prioridades nacionais que são lançadas para o ar e enunciadas de modo a ninguém já saber distinguir o essencial do acessório. Colocadas sob as tensões da imigração, da subida do multiculturalismo, dos progressos do comunitarismo ou do credo da diversidade e da redefinição da soberania, as identidades nacionais mantêm-se em pousio à míngua de se pensar nelas.
“Quem somos nós?”. Na arena política esta falha, diz-se, conduz a um recuo do laicismo portador de modernidade, e interroga-se o Director do L’Express se iremos ceder ao regresso do religioso que se manifesta, como observa Huntington, em todas as regiões do Mundo excepto na Europa Ocidental?
Mas parece-me não dever ser esta a preocupação principal, bem pelo contrário, se se entender a modernidade identificada com a falta de valores próprios das religiões em geral. Isso acentuará na Europa a nítida falta de valores reforçadores de unidade e da vontade de os defender lutando por eles, que todos consideram estar nela em preocupante crise.
O caminho afigura-se-nos, pois, o contrário, o de um ecumenismo feito da convivência compreensiva de valores diferentes, que evite confrontos em que a Europa Ocidental participe desarmada e enfraquecida por falta de objectivos definidos que a identifiquem e motivem a sua afirmação e defesa comunitária.
“Quem somos nós?”. Não apenas os Franceses, mas todos os Europeus, e para nós Portugal em particular, esperam resposta. Melancolicamente. Mas como aconteceu muitas vezes ao nosso povo na sua longa história pouca coisa bastará, na opinião de Denis Jeambar, para os Europeus, incluindo os Portugueses, escaparem à sua neurastenia, exprimindo categoricamente a sua falta de dúvida de que assim acontecerá uma vez mais. Mas, tal como De Gaulle falava na necessidade de uma certa ideia da França, nós não devemos deixar apagar da memória colectiva também uma certa ideia autonomizadora de Portugal, devidamente ajustada à circunstância actual, mas sendo fundamental configurá-la em função de uma definição prévia e abrangente de uma ideia da futura Europa.
Para a atingir, definir, e fazer aceitar, o caminho é longo e áspero, como veremos a seguir. Mas percorrê-lo sem fé, nem mitos, nem valores transcendentes, apenas através de uma modernidade permissiva, não nos parece a forma de objectivamente o conseguirmos.
Constituição a 10 incógnitas
A União Europeia confrontar-se-á com uma crise séria se um dos dez países onde terá lugar um referendo sobre o Tratado proposto para a reger vier a rejeitá-lo.
E já criaram alguma desordem as pequenas bandeiras com as cores nacionais polacas, britânicas, dinamarquesas e até francesas que nas horas cruciais do futuro da União Europeia têm sido colocadas nas carteiras de alguns deputados da Assembleia de Estrasburgo.
Em princípio proibidas numa sala onde apenas deveria ver-se a bandeira azul estrelada, Alain Louyot informa no L’Express de 17 de Janeiro, que estes sinais ostensivos do combate travado pelos eleitos mais soberanistas irritam “soberanamente” o conciliador Presidente do Parlamento dos 25, o espanhol José Borrell.
Como este confessou, trata-se de uma “má imagem” de uma minoria, no momento em que a instituição a que preside se pronunciou em massa a 12 de Janeiro a favor da Constituição Europeia.
Ela pretende arrastar consigo as opiniões públicas, a começar pelas dos 10 Estados que decidiram submetê-la a referendo: Dinamarca, Espanha, Irlanda, França, Luxemburgo, Países-Baixos, Polónia, Portugal, Reino Unido e, em princípio a República Checa.
Além das lutas verbais entre eurodeputados, esta pequena batalha das bandeiras e dos cartazes hostis à Constituição, dizendo, por exemplo, “Não em meu nome” ou “Esta Constituição é a morte da Europa”, mostra claramente as polémicas que suscita nas instâncias comunitárias o futuro texto da União alargada.
Enquanto Philippe de Villiers, à direita, brama que ela retoma, para as eternizar, disposições antigas que são outros tantos ferrolhos, também há os que, em contrapartida, se entusiasmam com a etapa histórica que vai permitir à União ser a da abertura e não a da se dobrar sobre si própria, como proclamou a Vice-Presidente do Partido Popular Europeu e Democratas Europeus, Françoise Grossette.
Questão importante, digamos mesmo essencial e a nosso ver decisiva, para criar e se manter uma Comunidade Europeia, como com frequência temos afirmado, é encontrar a medida certa entre a preservação da identidade das nações e povos que dela fazem parte e possuem tradições muito antigas e radicadas, em confronto com os que Alain Louyot classificou de mais eurófilos, e lamentam a resistência de muitos à não adopção de decisões por maioria qualificada em domínios tão importantes como as questões fiscais ou da cooperação judicial, para eles continuando a ser reguladas por um sistema de decisão intergovernamental paralisante.
Esse compromisso necessita de ser milimétricamente ajuizado, e não se compreende que se pretenda iludir a sua justeza não informando nem ouvindo as pessoas sobre o que está verdadeiramente em causa, pretendendo abstrair do que lhes é indissociável. E se faça tábua rasa de que na velha e diferenciada Europa de muitos povos - latinos, anglo-saxões, germânicos, eslavos, ou otomanos - onde as respectivas idiossincrasias são tão profundamente arreigadas, a ponto de acarretarem choques sangrentos entre si e se persista em não abdicar de autonomias mesmo que, para as alcançarem, dêem o seu sangue e façam correr o alheio, como acontece com o IRA, a ETA, a Córsega, o Kosovo, ou a Bósnia.
É lícita a inquietação sobre o que os cidadãos serão chamados a pronunciar-se - como é essencial aliás para quem proclama e se afirma democrata - e que venham a decidir sobre uma Convenção, de cujas subtilezas nem muitos deputados da Assembleia de Estrasburgo se apercebem, por não lhes passarem sequer pela cabeça.
Será muito cedo ainda para o dizer, apesar de estas notas serem redigidas logo depois de os Espanhóis já se terem pronunciado no dia 20 de Fevereiro passado, folgadamente a favor do “Sim” nas percentagens, apesar do “Não” da Catalunha e do País Basco.
O certo, porém, para Alain Louyot, é que a rejeição por um ou dois Estados membros, se vier a ocorrer, mergulhará a União dos 25 numa crise séria. Tanto mais, como se sabe e é afirmado com embaraçoso receio, não haver outro plano alternativo para fazer face esta inquietante eventualidade.
Convenhamos que a culpa disso é menos dos que levantaram cartazes e bandeiras em Estrasburgo, do que da ligeireza e inconsequência de quantos, em matéria de tanta importância, abstraem do sentir diferenciado dos Europeus entre si e dos seus modos de ser próprios e profundos, quiçá inescrupulosamente.
ÁFRICA
Temos os meios de pôr fim à pobreza!
A pobreza hoje não é só uma injustiça imoral no seu dramatismo e desumanidade. Os meios de comunicação modernos, na sua tendência sensacionalista e especulativa da busca do aumento de audiências, contribuem mais para fazerem dela um factor especulativo e de aumento dos riscos de conflitos, do que de salutar apelo à solidariedade e à necessidade de eliminar esse flagelo. Quer dizer, ela tornou-se ainda maior factor de desequilíbrios estratégicos, e por isso merece referência e destaque a entrevista dada ao L’Express de 17 de Janeiro pelo antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica e actual Comissário Europeu para o Desenvolvimento e Ajuda Humanitária, Louis Michel.
Verdadeiramente, ele não se considera surpreendido pela ampla mobilização registada em favor dos países tocados pelo tsunami. As imagens haviam sido fortemente chocantes e além do mais havia a deplorar a existência de Europeus entre as vítimas.
Esta catástrofe remete-nos para o abalo súbito das certezas ao tomar consciência de que não somos eternos e de que a natureza não pode ser contrariada. E esta verificação, embora não se tivesse referido a isso, é extensiva às decisões dos governantes e das pessoas em geral que persistem em abstrair dela, quer no domínio privado, quer político e social, vindo a pagar-se por isso custos muito elevados.
Neste caso, em consequência dos motivos atrás referidos, houve uma reacção emotiva e justificada. Face a tamanha infelicidade, quando se vive numa certa forma de opulência, não pode deixar de se sentir uma espécie de constrangimento, quase de má consciência, no dizer de Louis Michel.
Para ele a emoção resultante constituiu um bom motor para uma ajuda humanitária expressiva e para que, ao mesmo tempo, se faça pedagogia adequada. Há que lembrar que milhões de pessoas morrem anualmente de sida e que milhões vivem com menos de um dólar por dia, abaixo do que se designa a “linha do pão” e do limite de subsistência, ou estão privados de água potável para beber.
Afirma depois disto uma consoladora e algo surpreendente certeza para muitos. Temos meios materiais e técnicos para pôr termo à pobreza e à fome no mundo. Mas, em contrapartida, somos incapazes de pôr em prática organicamente esta formidável capacidade.
Os meios de comunicação, a que já nos referimos criticamente, em vez da especulação, devem orientar-se no sentido de fazer do desenvolvimento uma matéria nobre, porque a mundialização representa uma extraordinária oportunidade para repartir melhor as riquezas.
Toca depois num ponto, a que nos temos referido com alguma insistência, como fundamental. O entrevistador, por seu lado, referiu-se ao sentimento crescente de as políticas de desenvolvimento em África estarem sendo votadas ao fracasso.
Admitiu que sim, e isso talvez devido ao facto de a única via que para ele pode resultar em África ser a regional, pois os objectivos bilaterais, Estado a Estado, não resultam, tão interligado está tudo. Referiu como exemplo o Congo, cuja estabilidade está dependente do estado das suas relações com o Ruanda, e o que se passa no Ruanda está ligado ao que acontece no Uganda, e assim sucessivamente.
A União Europeia deve fazer sua única interlocutora a União Africana, quanto a permitir a transferência da tecnologia e das formas de governar. Estas, quanto a nós, exigem competência respeitadora, porque, não só não é viável, como nos parece inconcebível e violento pensarem os Ocidentais sequer em clonarem outras civilizações dando-lhes feições idênticas às suas. Elas têm usos, tradições e sabedorias próprias a configurá-las, muitas das quais até com aspectos mais sábios e eficazes do que os nossos.
Louis Michel considera também não fazer sentido construir uma via de comunicação num único país, e o mesmo acontece quanto a redes aéreas e quanto à energia. Convirá mostrar a esses países o seu próprio interesse vital em trabalharem juntos e não uns contra os outros.
A emergência do Congo, por exemplo, a quem não falta potencial para se tornar numa potência africana, não agrada a todos. Se esses países se encaminhassem para um mínimo de integração para levarem por diante as grandes políticas, um pouco como foi feito pela Europa, acreditava que assistiríamos, rapidamente, a um milagre africano.
A África é rica em recursos humanos e materiais e está muito bem situada no plano geopolítico. Além de ser, como temos dito, o prolongamento da Europa, a quem, insistimos, a sua pobreza ameaça mais directamente. Por isso, se nos afigura que Portugal deve estar particularmente consciente e atento a essa situação e não desperdiçar os trunfos que possui do seu privilegiado relacionamento histórico e humano com África, para se tornar um seu interlocutor privilegiado.
A Louis Michel, que ocupa as funções de Comissário Europeu, também lhe compete a sua orientação e para ele não seria bom regionalizar a sua ajuda e voltá-la exclusivamente para a África. Além de os Estados-Unidos da América e a China não aceitarem que a Europa fosse a única a interessar-se por África, essa especialização seria tomada como regresso à colonização que a evolução da história do mundo tornou inaceitável.
Além disso, o desinteresse pelo que os Franceses chamam América Latina, e é mais objectivo designar Ibero-América, colocá-la-ia novamente reduzida a uma dependência em relação aos Estados-Unidos, de que conseguiu libertar-se de forma apreciável, quer do ponto de vista político, quer dos económico e cultural.
Quanto a este aspecto, a título de exemplo, tem interesse referir que periodicamente se têm realizado Congressos das Academias de História dos países da Península Ibérica e das Américas Central e do Sul, organizados por um dos países da Comunidade Ibero-Americana, de que tem resultado proveitoso estreitamento de laços de compreensão e afecto.
Por isso, Louis Michel advoga com objectivo fundamento, uma certa forma, mais do que de concorrência, de diversidade de ofertas de cooperação.
Após o tsunami houve quem pretendesse criar um corpo europeu de salva-vidas da protecção civil. O Comissário Europeu belga aceita a ideia do estabelecimento em Bruxelas de um Estado-Maior dos Estados que permita conhecer dia a dia as capacidades logísticas disponíveis por parte de cada um deles, tanto mais que isso não custa caro. Mas discorda dos que defendem a criação de uma força de intervenção europeia, espécie de exército branco de 5 000 homens/mulheres, pois seria indispensável que os Estados estivessem dispostos a financiá-lo.
Além disso, constitui engano pensar que tal iniciativa impediria as mortes, pois tal força só poderia intervir após as catástrofes e, sobretudo, entraria em concorrência com o excelente trabalho que vem sendo levado a cabo pelas Organizações Não Governamentais (ONG).
Uma última questão lhe foi posta. No início de Janeiro ele esteve presente na Conferência sobre os pequenos Estados Insulares. Não acharia que seria tempo de a Europa dizer claramente, em nome da Segurança das populações desses territórios, que tais microestados, não são viáveis?
Considerou que isso era indubitavelmente verdade, mas, na realidade, seria perigoso tocar em questões relacionadas com a autodeterminação e a ingerência nas respectivas soberanias, porque os limites entre a ingerência humanitária e a ingerência política, não sendo muito nítidos, tornam-se por isso muito vulneráveis devido a essa confusão.
Pareceu-nos muito oportuno e importante levar aos leitores da Revista Militar, e em particular destas Crónicas, um comentário sobre as diferenças de condições de vida existentes no mundo, susceptíveis de afectarem a sua paz e segurança e inadmissíveis nos tempos de hoje. Este escrito procura dar conhecimento que uma entidade europeia, especificamente responsável sobre a matéria, afirma haver meios suficientes para pôr fim a injustiças, em tantos casos arrepiantes, e que, embora consciente das enormes dificuldades, existem ideias e caminhos para as enfrentar.
Mas é necessário, todavia, mais do que boas intenções e projectos, porque a esta guerra contra a pobreza também se aplica a validade da máxima napoleónica de ser a guerra toda de execução. Esperemos que esta não se quede nas palavras e nas imagens predominantemente ilusórias, que os meios de comunicação social, principalmente as televisões, costumam usar para anestesia dos seus espectadores, leitores ou ouvintes, e aumento dos respectivos “rankings”.