Embora a distância temporal que nos separa da proclamação da República e, por conseguinte, das primeiras medidas ditadas pelos novos próceres da política portuguesa, não seja, em termos históricos, excessiva, parece-nos conveniente recordar a profunda alteração que se preconizou para a cultura nacional[1] logo após a abolição das instituições monárquicas.
Esta preocupação justifica-se com base no facto de julgarmos que houve, ao nível dos políticos responsáveis de então, uma relação, por vezes difusa, entre o fundamento ideológico da República e as linhas orientadoras, ou programáticas, das correntes literárias que foram designadas por Realismo e Naturalismo. Por outras palavras, admitimos que a revolução cultural que o Governo Provisório da República pretendeu iniciar sofreu influências das concepções idealistas que suportavam o Realismo e o Naturalismo.
Para, de forma coerente e válida, conseguirmos resumidamente atingir o nosso objectivo convirá perspectivar, ainda que a traços largos, a evolução das condicionantes sociais e económicas que influenciaram as correntes literárias da centúria passada em Portugal, ao mesmo tempo que as cotejamos com a situação europeia.
Olhando de relance o século XIX, verifica-se que foi, na Europa, um tempo de mudança, de abertura sobre si próprio e sobre o mundo. As alterações políticas que a Revolução Francesa introduziu, os novos mecanismos e as novas técnicas que a Revolução Industrial evidenciou, os novos grupos sociais que surgiram da interacção destes contextos definiram caminhos culturais de ruptura que já se haviam esboçado – pelo menos teoricamente – na segunda metade do século XVIII. Uma aristocracia terratenente toda-poderosa foi sendo lenta mas, seguramente, substituída por uma grande burguesia financeira e industrial que gerou uma média e pequena burguesia que viviam do comércio e dos serviços; a par desta transformação, mas no outro extremo do quadro social, o século XIX foi o período da transferência dos excedentes de proletariado agrícola, transmutado em proletariado industrial, para os centros fabris.
A cultura aristocrática do século XVIII – fortemente influenciada pelo Neoclassicismo literário então em voga – foi, na viragem da centúria, confrontada com as mudanças sociais já referidas e com os novos desejos e hábitos que os grupos possidentes e dominantes impunham. Curiosamente, se este facto esteve na origem de um novo género literário e artístico – o Romantismo – o certo é que foram precisos mais de cinquenta anos para que a outra franja social do novo contexto (o proletariado industrial) fosse fonte de inspiração e análise dos autores da época.
Se Portugal, durante a primeira metade do século XVIII, em consequência da descoberta e exploração das minas de ouro e diamantes no Brasil, não esteve na periferia cultural da Europa, já o mesmo se não pode dizer do período pombalino e mariano, porque as carências do precioso metal recolocaram-no nos limites geográficos, políticos e económicos do Velho Continente. A concomitância e sequência temporal da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e das Invasões Napoleónicas empurraram Portugal para um protagonismo secundário na Europa do século XIX, levando-o a ser, do ponto de vista cultural e, em especial, literário também periférico.
O Portugal do século XIX, do ponto de vista social, pode ser dividido em dois grandes períodos que correspondem sensivelmente a cada uma das respectivas metades[2]. Na realidade, até aos anos cinquenta e, por conseguinte, antes do fontismo, a chamada província era, se assim se pode dizer, mais fechada sobre si própria (basta pensar que a forma mais rápida e segura de ir de Lisboa ao Porto era por mar!) fazendo com que os horizontes, no interior do país, fossem estreitos e limitados: esquematicamente, quase se podia dizer que os do lugar acabavam na aldeia, os desta na vila e os do concelho na cidade mais próxima. A uma situação desta natureza correspondia uma economia agrária de subsistência cujos excedentes não se escoavam para além do aglomerado urbano mais cercão. Claro que, também, como resultado desta limitação, as relações laborais – em especial no Centro e Norte – eram do tipo familiar, fazendo-se o pagamento em géneros de toda a natureza e muito raramente havendo lugar a liquidação a dinheiro. A ausência de complexos industriais, ou de simples fábricas, reduzia a valores pouco significativos a migração interna, fixando os agregados familiares à terra. No máximo, a emigração fazia-se do lugar para a aldeia ou para a vila e poucas vezes para a cidade, e mesmo estes movimentos estavam ligados ao exercício exclusivo de certas actividades[3].
A grande alteração verificou-se com a abertura de estradas e o lançamento das ferrovias, logo nas primeiras décadas da segunda metade do século. Na verdade, este novo tipo de trabalhos gerou dois efeitos quase simultâneos: em primeiro lugar, absorveu os excessos de mão-de-obra existentes nos pequenos aglomerados urbanos por onde as redes viárias iam passar e introduziu, forçadamente, o pagamento a dinheiro, desfazendo, ou contribuindo para desfazer, as antigas relações laborais existentes no campo; em segundo lugar, a ligação rápida e segura das aldeias às cidades, efectuada por rodovia ou por ferrovia, fez desaparecer o conceito de produção agrícola de subsistência e introduziu o de produção para venda. Quer dizer, a agricultura passou a ser uma fonte real de rendimento, levando a que o empregador escolhesse os assalariados mais baratos e rompesse com as formas tradicionais de tratamento. Poder-se-ia dizer que a rede viária criou em Portugal a agricultura capitalista ou de produção para o mercado.
Do ponto de vista urbano – e aqui temos de estabelecer que grandes cidades com clara diferenciação das da província, só eram Lisboa, Porto e Coimbra – as mudanças acompanharam sensivelmente os mesmos períodos antes mencionados. É na segunda metade do século XIX que se dá a explosão da imprensa[4] periódica, a qual corresponde, de facto, ao aparecimento nas cidades de uma grande e média burguesias letradas. A importância desta burguesia está naturalmente associada ao aumento do comércio interno e urbano, ao crescimento do volume de negócios de importação e exportação e à ampliação do aparelho de Estado como resultado de uma política de compadrio.
Também do ponto de vista da cultura, em particular na da vertente literária, houve dois períodos que, com ligeiras diferenças, acompanharam as duas metades do século XIX. O primeiro foi o do Romantismo e o segundo foi o do Realismo-Naturalismo.
No estrangeiro, o Romantismo surgiu como «[...] uma revolta, uma contestação e uma refutação à modernidade burguesa e capitalista, [...]»[5] a qual se estabelece «contra a racionalidade instrumental, contra o princípio da eficiência produtiva, contra o desencantamento do mundo, contra o utilitarismo e o conformismo, contra a mecanização da vida e da sociedade». Tudo isto «exprime tanto a nostalgia de um paraíso perdido como o anseio utópico de um futuro mundo ideal»[6].
Ora, olhando para as condições objectivas, tanto sociais como económicas, do Portugal de 1825[7] concluímos que estavam longe de ser semelhantes ao quadro que acabámos de traçar para o estrangeiro. O Romantismo entra em Portugal, por conseguinte, pela porta da política, ou seja, como uma consequência do exílio, em Inglaterra e França, dos liberais, nomeadamente Almeida Garrett. Este chega a confessar que, no poema Camões, houve uma preocupação de trabalhar o estilo de forma desconhecida em Portugal e à maneira de alguns românticos da época[8]. O facto de ter havido uma «importação» de modelo não invalida que a temática do introdutor do Romantismo tenha sido sempre na busca das raízes portuguesas, na identificação de um nacionalismo caro aos românticos.
Poder-se-ia admitir que só na fase primitiva do Romantismo em Portugal teria existido desconformidade entre os objectivos gerais da corrente literária e o desenvolvimento social e económico, no entanto, assim não foi, porque, durante o desenrolar do segundo quartel do século XIX, os outros dois cultores do Romantismo «inicial» – Alexandre Herculano e António Feliciano de Castilho –, que vão consolidar a ligação da obra à origem nacional[9], continuam a fazer sobressair o que era já uma evidência: o novo estilo, mesmo até 1865, não traduziu «uma revolta, uma contestação e uma refutação à modernidade burguesa e capitalista» semelhante à que lhe deu origem no estrangeiro, porque, mesmo depois de 1834, isto é, após a consolidação do liberalismo, a modernidade portuguesa era limitadamente política.
Quando, no começo da segunda metade do século XIX, os Regeneradores impulsionam Portugal para a senda do desenvolvimento capitalista e, entre nós, se começam a fazer sentir os efeitos sociais e económicos dessa acção política imaginada por Fontes Pereira de Melo, estala a célebre Questão Coimbrã seguida a curta distância temporal pelas não menos célebres Conferências do Casino. Neste caso, tal como anteriormente referi-
mos, embora toda a inspiração estética e temática defendida pelos contestatários tenha resultado de uma inspiração recebida do estrangeiro, o certo é que já começavam a existir condições socioeconómicas objectivas no contexto nacional para que, como disse Hernâni Cidade, urgisse «revolucionar costumes e instituições, processos pedagógicos e técnicos, a arte e a literatura, a ciência e a filosofia, a política, a moral, a religião»[10]. Esta revolução era, afinal, o fruto do pensamento científico que se desenvolvia e aceitava, na Europa do terceiro quartel do século XIX, procurando encontrar as justificações científicas para os fenómenos sociais. A literatura assume para si a ultrapassagem do objectivo meramente ficcional para, tomando certos aspectos da realidade, as explicar, com base científica, à própria sociedade.
Entre nós, as fronteiras do Realismo[11] e do Naturalismo não foram indelevelmente traçadas[12], compreendendo-se, mais uma vez, este facto através da correlação existente entre a tentativa de assumir com alguma plenitude as novas correntes e o desfasamento desta posição com o atraso social e científico que ainda se vivia em Portugal.
Realmente, foi à volta do núcleo de jovens estudantes que originou a Questão Coimbrã e que, pouco após, lançou as Conferências do Casino, se desenvolveram duas ideias fundamentais para o avanço do pensamento científico social: o socialismo[13] e o republicanismo[14]. Ora, com efeito, durante cerca de quarenta anos, as ideias de República, de ciência, de materialismo e de anticatolicismo – mais vincadamente de anticlericalismo – vão andar em quase perfeita comunhão, porque se completam e justificam[15]. Assim, se por um lado, as correntes literárias do Realismo e Naturalismo não corresponderam a uma verdadeira explosão capaz de apagar toda a influência eminentemente romântica[16] que ainda subsistia na sociedade portuguesa foi porque, de facto, existia um abismo cultural entre as elites consumidoras de literatura e a grande massa da média e pequena burguesia urbana quase analfabeta[17]. Ou seja, havia uma «cultura republicana» que resultava da propaganda do Partido Republicano Português (PRP) – e das outras organizações que o antecederam – que encontrou eco nas camadas populacionais que compreendiam o sentido da mudança política, mas a quem faltava educação literária para lerem as obras que veiculavam a cultura «superior científica» do republicanismo. A consciência deste desnível terá ditado – pelo menos indirectamente – em boa medida, as grandes decisões de importância cultural do Governo Provisório da República.
O facto do Governo Provisório ter assumido, quase imediatamente após a proclamação da República, uma atitude hostil contra a Igreja Católica, embora hoje possa parecer despropositada, não podia deixar de assim acontecer em 1910.
Com efeito, numa perspectiva genérica, pode afirmar-se que o século XIX foi, na Europa, o tempo do desequilíbrio entre a sociedade civil e a Igreja. Vejamos os motivos.
Em primeiro lugar esteve o resultado do desenvolvimento científico – e, consequentemente, o desenvolvimento do capitalismo associado à revolução técnica – o qual, cada vez mais veio contestar as explicações dogmáticas da Criação; como contrapartida, a Igreja foi, lentamente e com grande dificuldade, aceitando como válidas as razões da Ciência e da modernidade[18]. Em segundo lugar, a unificação da Itália acabou com o poder temporal do Papa, colocando-o na verdadeira dimensão que contemporaneamente lhe competia: a de dirigente máximo de uma Igreja. Em terceiro lugar, a República, em França e em Espanha, vieram evidenciar a importância da mudança em países que haviam sido baluartes do catolicismo. Por fim, e numa escala talvez menor, a vitória liberal, em 1834, em Portugal, e a expulsão das ordens religiosas e respectivo confisco dos bens, acabou provando que o Vaticano estava a ser inexoravelmente ultrapassado como força dominante na sociedade[19].
Por conseguinte, foi este confronto – umas vezes, vivo, outras, silencioso – que obrigou o clero católico a tornar-se socialmente combativo e intolerante, levando-o a defender o conservantismo e a tradição. Em cada aglomerado populacional o templo era a linha da frente de um combate sem tréguas contra as ideias novas, viessem elas donde viessem. O clero católico tornou-se obscurantista, pese embora a acção cautelosa e digna de apreço do Papa Leão XIII[20].
Em Portugal, no último quartel do século XIX e na primeira década do século XX, o posicionamento da Igreja não andou longe daquele que tinha em França ou em Espanha. Deste modo, também genericamente, é possível situar essa acção de combate a dois níveis: nas paróquias e nas instituições de ensino e assistência.
Nas primeiras, o padre assumia a posição de orientador político e conselheiro familiar, aproveitando-se, de acordo com a terminologia republicana, do púlpito e do confessionário para instilar as ideias que, julgava, impediriam o avanço da mudança e da modernidade; tratava-se de uma acção quase sempre tosca, porque destinada à grande massa dos crentes. Nas segundas, em especial nas escolas dos diferentes níveis, a acção do clero era mais subtil e competente[21]. Na verdade, quer nos estabelecimentos de ensino privado – onde predominavam os Jesuítas que educavam os filhos das melhores e mais abastadas famílias – quer nas escolas e liceus públicos, o ensino da religião católica era obrigatório e com ele toda a conformação aos princípios de uma prática que, em cada dia, mais se via contestada pela filosofia positivista e materialista. Quer dizer, a Igreja Católica em Portugal enquadrava, moral e culturalmente, de alto a baixo, toda a estrutura social[22] e ao fazê-lo também servia, em parte, de esteio ao poder político monárquico que vinha sendo fortemente atacado, desde os anos de 1890, pelos republicanos.
Em uma conjuntura tal como a que acabamos de genericamente identificar, o Governo Provisório da República tinha mais a temer a reacção do clero – que olhava o novo regime como a vitória do livre-pensamento – do que a dos monárquicos[23], motivo pelo qual se vê coagido a lançar um conjunto de decisões legislativas que, reduzindo à subordinação a Igreja, remetesse a reacção eclesiástica para o domínio da ilegalidade e, ainda, provocasse uma verdadeira revolução cultural não só junto dos seus aderentes como, também, em todo o tecido social; é, por conseguinte, segundo esta óptica, que se podem juntar e articular, formando o edifício da mudança cultural republicana, os decretos anticlericais e os relativos à instrução pública.
Consideremos os principais desses instrumentos e analisemo-los para aquilatar da profundidade da mudança desejada.
Seleccionámos treze dos mais importantes decretos que tinham em vista a subordinação da Igreja Católica. Deste conjunto de diplomas preparador das estruturas fundamentais da República, dez não têm qualquer preâmbulo explicativo, começando pela fórmula clássica «manda o Governo da República...»; dos três restantes nenhum se refere em exclusivo à questão religiosa. Parece, pois, poder concluir-se que a subordinação da Igreja à vontade do Governo não carecia de qualquer explicação prévia, sendo um dado adquirido e inquestionável. Passemos à identificação dos Decretos, por ordem cronológica:
1. A 8 de Outubro, publicado a 10, determina-se que passam a estar em vigor as Leis de 3 de Setembro de 1759, de 28 de Agosto de 1767 e de 28 de Maio de 1834, que expulsavam os Jesuítas, encerravam conventos e anulava-se o Decreto de 18 de Abril de 1901 que autorizara a existência de congregações religiosas;
2. A 12 de Outubro, foram estabelecidos como feriados nacionais os seguintes dias: 1 de Janeiro, dedicado à fraternidade universal, 31 de Janeiro, para comemorar o sacrifício dos mártires da República, 5 de Outubro, para lembrar os heróis da República, 1 de Dezembro, dedicado à autonomia da Pátria e, por fim, 25 de Dezembro, como dia festivo da família;
3. A 18 de Outubro, foi determinada a abolição do juramento religioso sob qualquer forma;
4. A 22 de Outubro, foram proibidas as matrículas no primeiro ano do curso de Teologia da respectiva Faculdade, em Coimbra; este facto correspondeu, na prática, à extinção daquele departamento;
5. A 26 de Outubro, foi decretada a extinção de todos os feriados nos dias que, até àquela data, eram considerados santificados, com exclusão dos domingos;
6. A 3 de Novembro, foi aprovado o Decreto que determinava a possibilidade do casamento se dissolver pelo divórcio;
7. No dia 4 de Novembro, foi aprovado o Decreto que, publicado no Diário do Governo de 5, concedia a amnistia a presos condenados por diversos crimes, figurando em primeiro lugar os previstos nos artigos 130º e 135º que se referiam a crimes contra a religião católica apostólica romana. Dizia-se no preâmbulo: «Desejando solenizar o acontecimento mais notável da história pátria com um acto de clemência, tão amplo quanto seja compatível com a segurança comum, e mais extenso e profundo do que qualquer outro semelhante de que haja registo na nossa legislação, [...]». Ou seja, porque não se tratava de uma medida exclusivamente subordinadora da Igreja, houve explicação para a decisão;
8. A 10 de Novembro, mas com publicação a 17, foi decretada a criação de Comissões de Saúde nos concelhos das províncias que não as tinham e, no preâmbulo, invocando a ameaça de proliferação de uma epidemia de cólera em Portugal, diz-se, a dado passo: «Deparou-se ao novo regime um agravo intolerável contra a higiene nacional, porque não só representa a negação de toda a higiene, como acusa os prejuízos do fanatismo: em alguns pontos do país subsiste ainda a prática bárbara e repugnante dos enterramentos nas igrejas. [...]. A República, esperando que todos os cidadãos concorram para pôr termo breve a uma situação ofensiva de todos os sentimentos e conveniências, levará a cabo, com prudência e firmeza, essa instante reforma»[24].
Mais uma vez, porque não se tratava de uma medida claramente subordinadora da Igreja ela é explicada no preâmbulo do diploma legal. Curiosamente, deve reparar-se na cautela que se prevê na aplicação da acção repressiva; não estava ainda esquecida a Revolta da Maria da Fonte!
9. No dia 28 de Novembro, decreta-se, sem mais explicações, a proibição das forças militares participarem em actos religiosos;
10. A 31 de Dezembro, um Decreto, também sem justificações iniciais, regulamenta a confiscação dos bens da Igreja em Portugal;
11. No dia 21 de Janeiro de 1911, o Governo Provisório tomou a decisão de extinguir a prática do culto na capela da Universidade de Coimbra e no preâmbulo justifica-se a atitude da seguinte maneira: «Atendendo a que as ciências entraram definitivamente no período da sua emancipação de todos os elementos estranhos à razão, porque só desta emanam e só dela dependem, e atendendo também a que estão destinadas a imperar pelo poder incruento e irredutível da verdade demonstrada, a qual acabará com as desinências das escolas dogmáticas que têm até hoje dividido os indivíduos e os povos; [...]».
Neste diploma houve o cuidado de justificar a medida, em nossa opinião, por duas razões: por um lado, na decisão não estava envolvida exclusivamente a Igreja; por outro, sendo a Universidade um centro de cultura, não se podia perder a oportunidade de evidenciar o papel reformador do novo regime neste domínio.
12. A 20 de Fevereiro, foi publicado o Decreto de 18 que, sem qualquer explicação, instituía o registo civil;
13. Por fim, a 21 de Abril, da forma mais lacónica que a prática legal vulgarizou, publicou-se o Decreto de 20 que separava as Igrejas do Estado.
Como se verifica, uma vez mais o enfatizamos, sempre que se tratou de subordinar a Igreja ao Estado houve, por parte do Governo Provisório, uma sobranceria que, parece, encontrava fundamento em certezas «indiscutíveis», tal como se neste aspecto particular não estivesse a acontecer nem uma revolução, nem uma reforma; o que se fazia era uma correcção ditada pela força da Lógica. Curiosamente, nos quatro decretos que julgámos mais significativamente importantes, relativos ao ensino, porque se pretende levar a cabo uma revolução cultural, foram elaborados longos preâmbulos que fundamentam as medidas adoptadas. Tratou-se, afinal, do traço distintivo que complementou a «lógica» da subordinação da Igreja; ou seja, não haveria revolução cultural sem silenciar ao máximo a Igreja – facto que já nem carecia de explicação – e sem reforma do ensino – facto que «obrigava» a todas as explicações. Vejamos os respectivos diplomas, também por ordem cronológica, e o conteúdo dos preâmbulos:
1. A 22 de Outubro de 1910, foi aprovado o Decreto que extinguia o ensino da doutrina católica nas escolas primárias. No preâmbulo dizia-se: «Para satisfazer ao espírito liberal e às aspirações dos sentimentos republicanos da Nação Portuguesa:
Tendo em vista que o Estado não pode obrigar as famílias, e, portanto, as crianças a determinada crença religiosa;
Considerando que o ensino dos dogmas é incompatível com o princípio que deve regular a instrução educativa das escolas primárias [...]».
É clara aqui a intenção de evidenciar que se considera a prática da religião, tal como vinha sendo seguida, um impedimento da reforma das mentalidades que possibilitasse a revolução cultural republicana. Mas o esboço mais completo do sentido dessa reforma vai aparecer na introdução explicativa do diploma seguinte.
2. A 22 de Março de 1911, publicado no Diário do Governo de 24, foi aprovado o Decreto que criava as Universidades de Lisboa e do Porto. Lê-se no preâmbulo: «Considerando que a frequência regular da Instrução Secundária e Superior demanda tal sacrifício de tempo e dinheiro, que a constitui em privilégio de ricos e remediados, tornando-a inacessível, de facto, a muitos estudiosos com méritos e aptidões, mas desprovidos de recursos;
Considerando que um dos primeiros deveres do Estado democrático é assegurar a todos os cidadãos, sem distinção de fortunas, a possibilidade de se elevarem aos mais altos graus de cultura, quando disso sejam capazes, por forma a que a Democracia constitua, segundo a bela definição do imortal Pasteur, aquela forma de estado que permite a cada indivíduo produzir o seu máximo esforço e desenvolver, em toda a plenitude, a sua personalidade; [...]».
Como consequência do que foi dito, refere-se a necessidade de se criarem bolsas de estudo para auxílio dos estudantes mais dotados, mas sem recursos financeiros, em especial os que vivem na província. Chega-se mesmo ao ponto de preconizar que os mais brilhantes vão ao estrangeiro para se aperfeiçoarem e afirma-se: «Atendendo, com efeito, a que a transformação e desenvolvimento da cultura nacional, no sentido moderno, e para a organização científica da vida económica do País, não basta importar como, até aqui, na sua expressão livresca e em fórmulas já feitas, os resultados obtidos nas nações mais adiantadas e progressivas, mas se faz mester que a juventude portuguesa assimile, directamente e in loco, os métodos de ensino, de criação e de aplicação das ciências, para os implantar entre nós e criar centros autónomos de cultura nacional; [...]».
Nesta última transcrição fica claro que havia uma bem definida vontade de actuar sobre a cultura nacional, dinamizando-a e, por isso, transformando-a de modo a que Portugal conseguisse perder o atraso que a segunda metade do século XVIII e o século XIX haviam gerado.
Mas os traços mais marcantes da reforma, tendo em vista a revolução cultural, estão, segundo o nosso parecer, no preâmbulo do diploma seguinte.
3. No dia 30 de Março foi publicado o Decreto que havia sido aprovado na véspera e que reorganizava a instrução primária. O preâmbulo é bastante longo e não resistimos à tentação de transcrever na íntegra as partes que nos pareceram mais importantes para justificar e fundamentar o nosso ponto de vista. Dizia-se:
«O homem vale, sobretudo, pela educação que possui, porque só ela é capaz de desenvolver harmonicamente as suas faculdades, [...];
A educação exerce-se, como que automaticamente, durante toda a vida, [...];
Educar uma sociedade é fazê-la progredir, torná-la um conjunto harmónico das forças individuais, por seu turno desenvolvidas em toda a plenitude. E só se pode fazer progredir e desenvolver uma sociedade, fazendo com que a acção contínua, incessante e persistente de educação, atinja o ser humano, sob tríplice aspecto: físico, intelectual e moral. [...].
A República libertou a criança portuguesa, subtraindo-a à influência jesuítica, mas precisa agora de a emancipar definitivamente de todos os falsos dogmas, sejam os de moral ou de ciência, para que o seu espírito floresça na autonomia regrada, que é a força das civilizações. [...].
Ora o laboratório da educação infantil está para as camadas populares, sobretudo, na escola primária, e é lá que verdadeiramente se há-de formar a alma da pátria republicana. [...].
A moral moderna é diferente da antiga. Ela traz, à hora presente, uma porção de revolta tal, que o velho mundo de preconceitos oscila nos seus alicerces seculares. Para a interpretar e seguir, é preciso comparar os sentimentos dos homens, analisar o carácter dos povos e perscrutar os próprios desígnios da História. E para isso é preciso saber ler, conhecer de maneira elementar, ao menos, esse alfabeto maravilhoso, onde se estratifica a notícia dos acontecimentos e se agita a opinião dos homens. [...].
[...] a criança cria, desde a escola infantil, hábitos fortes de energia e pureza, habilitando-se praticamente para a conquista do pão e da virtude. Ao terminar o seu curso obrigatório, o jovem português amará, de um amor consistente e raciocinado, a região onde nasceu, a pátria em que vive, a humanidade a que pertence. [...].
A religião foi banida da escola. Quem quiser que a dê à criança, no recanto do lar, porque o Estado, respeitando a liberdade de todos, nada tem com isso. A moral das escolas, depois que a República se fundou, só tem por base os preceitos que regulam a justiça entre os homens e a dignidade dos cidadãos. Varreu-se da pedagogia nacional todo o turbilhão de mistérios, de milagres e de fantasmas que regulavam, até então, o destino mental das crianças.
A escola vai ser neutra. Nem a favor de Deus, nem contra Deus. Dela se banirão todas as religiões, menos a religião do dever, que será o culto eterno desta nova igreja cívica do Povo.
A moral de agora firma-se no exemplo prático da solidariedade. [...]. [...]».
4. Finalmente, o Decreto de 19 de Abril, que punha em execução as bases da nova constituição universitária não tinha preâmbulo, nem carecia, porque toda a doutrina orientadora da acção do Estado já estava definida nos anteriores diplomas.
Poder-se-ão extrair algumas conclusões gerais da análise sumária que fizemos, em especial na perspectiva do relacionamento do Governo Provisório com a literatura Realista-Naturalista? Julgamos que sim[25], embora salvaguardemos desse contexto os aspectos mais decadentes e desequilibrados, como por exemplo aqueles que são explorados por Abel Botelho.
Comecemos pela identificação dos grandes princípios orientadores: a emancipação da Ciência relativamente à Religião e a aceitação de que a Verdade só existe quando comprovada cientificamente. Sobre estes dois pilares constróem os primeiros governantes republicanos o seu terceiro princípio: o Estado deve ser isento e situar-se equidistantemente dos cidadãos.
Se formos mais profundos na interpretação destas três ideias fundamentais verificamos que também elas obedecem à objectividade que caracteriza a postura científica. No entanto, havia que passar do plano teórico à prática e, tal como aceitavam que a Ciência existia para o bem-estar do Homem, também competia ao Estado um papel providencial na criação de igualdade de oportunidades de desenvolvimento dos cidadãos perante a cultura, de modo a que se tornasse possível a autonomização e geração de uma cultura científica portuguesa. É nesta manifestação da necessidade de um «nacionalismo científico» que se apoia um outro princípio que era muito querido aos republicanos de 1910: a dignificação do grupo social existe quando houver dignidade para o cidadão e esta fundamenta-se na Justiça e na Solidariedade. Ora, tal desiderato obriga à consciencialização de pertença ao grupo social a qual é mais amplamente conseguida quando tem por fundamento a alfabetização e a divulgação da cultura, razão por que os esteios da nova cultura republicana, em última instância, eram a juventude e a escola.
Depois de exposto este encadeado percebe-se que a estética literária Realista-Naturalista tenha impressionado e inspirado a tal ponto os políticos do primeiro ano de República em Portugal que os levou a legislar no sentido de, segundo o seu ponto de vista, por um lado, tentar erradicar as condições sociais que possibilitavam alguns dos fundamentos desse tipo de ficção e, por outro, adoptarem a objectividade e a isenção científicas como geratriz de uma nova cultura.
* Este trabalho foi realizado para fazer parte de um livro de homenagem à memória do Prof. Doutor Lucas Pires, concebido pela Universidade Autónoma de Lisboa. Ficou inédito, porque o livro nunca se chegou a escrever, morrendo a homenagem antes de ter sido feita. Optou-se pelo descerramento de uma placa com o busto em baixo relevo do malogrado Mestre.
[1] É difícil, como tal o dá a entender Oliveira Marques (Nova História de Portugal. Portugal da Monarquia para a República. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 577), encontrar os contornos precisos que definem a cultura de uma Nação. No presente ensaio, na linha da sugestão de António José Saraiva (Cultura. Lisboa: Difusão Cultural, 1993, p. 11-12), preferimos, quando conveniente, restringir, dentro do possível e do razoável, o conceito de cultura àquela que usualmente se considera erudita e, dentro desta, à cultura literária. Não quisemos enveredar por um estudo quantitativo da mudança cultural, mas pelo estudo do significado da mudança política sobre a cultura.
[2] Sobre esta temática pode consultar-se com vantagem Irene Maria Vaquinhas, Rui Cascão e Fernando Taveira da Fonseca, História de Portugal (dir. José Mattoso), quinto volume, Lisboa: Círculo dos Leitores, 1993, p. 441-491 e, também, segundo uma abordagem mais económica, pode articular-se os trabalhos anteriores com os de Eugénia Mata e Nuno Valério, História Económica de Portugal – Uma perspectiva global. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p. 129-161.
[3] Era o caso dos rapazes que iam servir como moços em certos ofícios – marçanos, carvoeiros, aguadeiros, azeiteiros – ou o das moças que se empregavam como serviçais domésticas.
[4] Muito embora José Tengarrinha (História da Imprensa Periódica Portuguesa. 2.ª ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 131 e 183) refira que o grande surto de desenvolvimento da imprensa em Portugal tenha sido no pós Revolução de 1820 – mais exactamente em 1821 –, também dá a indicação que o maior número de jornais criados em Portugal se inicia no ano de 1851, com o fim da «Lei das Rolhas», atingindo o seu máximo em 1885.
[5] V. M. de Aguair e Silva – Romantismo. In Dicionário do Romantismo Literário Português. (coord.) Helena Carvalhão Buescu. Lisboa: Editorial Caminho, 1997, p. 489.
[6] Idem, op. cit., p. 490.
[7] Data usualmente tomada como introdução do género literário romântico, com a publicação, em Paris, do poema Camões, de Almeida Garrett. Evidentemente que estamos a considerar aqui o Romantismo literário com a plenitude de características que o individualizam e não levamos em conta os esboços pré-românticos de um Filinto Elísio, de uma Marquesa de Alorna, nem mesmo de um José Maria Barbosa du Bocage; esse seria o possível quadro evolutivo para o Romantismo português, se não tivesse acabado por ser o fruto da adopção de um modelo.
[8] Veja-se, por exemplo, de Jacinto do Prado Coelho, Camões. In Dicionário de Literatura. 1.º vol. Porto: Mário Figueirinhas Editores, 1994, p. 139.
[9] A propósito do nacionalismo destes dois autores, veja-se a opinião de Álvaro Manuel Machado, Dicionário de Literatura Portuguesa. (org. e dir. Álvaro Manuel Machado). Lisboa: Editorial Presença, 1996.
[10] Hernâni Cidade – Século XIX – A Revolução Cultural em Portugal e Alguns dos Seus Mestres. Lisboa: Editorial Presença, 1985, p. 61.
[11] Note-se que o Realismo é um movimento literário, antes do mais, de clara contestação do Romantismo, porque tenta recriar o real sem a paixão romântica, por isso faz a sua aproximação à temática através da crítica, embora usando nesta atitude o posicionamento científico que observa e propõe leis, enquanto que o Naturalismo avança destemidamente para a assunção de uma atitude cientificamente comprometida com o positivismo e, em particular, com o determinismo. A este propósito vejam-se os respectivos artigos de Carlos Reis no Dicionário de Literatura Portuguesa. (org. e dir. Álvaro Manuel Machado), p. 543-545 e 528-530.
[12] Veja-se de A. Machado Pires, Romantismo, Realismo e Naturalismo (Fronteiras e Contactos). In Dicionário do Romantismo Literário Português. (coord. Helena Carvalhão Buescu), p. 515-519.
[13] Pode consultar-se de João Medina, As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984.
[14] Consulte-se de Amadeu Carvalho Homem, A Ideia Republicana em Portugal. O contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Livraria Minerva, 1989, em especial p. 221-309 e, também, A Propaganda Republicana 1870-1910. Coimbra: [s.n.], 1990, p. 11-39.
[15] Veja-se de Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910. 2.º vol. Coimbra: Faculdade de Letras, 1991, em especial p. 167-174, 206-256. Pode consultar-se, também, de Rui Ramos, História de Portugal. (dir. José Mattoso). 6.º volume. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 401-416.
[16] Claro que aqui não estamos a considerar o Romantismo – mesmo que só literário – dentro dos limites amplos de José-Augusto França (O Romantismo em Portugal – Estudo de factos socioculturais. 2.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1993).
[17] Deve ter-se em conta que, em 1910, cerca de 75% da população portuguesa era analfabeta.
[18] Tomemos como exemplo as seguintes transcrições da obra de R. P. A. Belliot, Manuel de Sociologie Catholique. 4.ª ed. Paris: P. Lethieulleux, Libraire-Éditeur, 1911: «[...] l’on peut dire que le Capitalisme moderne, envisagé dans sont élément prépondérant, est nettement antichrétien.» (p. 64); «Toutefois, c’est en France par-dessus tout que cette irréligion inhérente à la pseudo-civilisation moderne approche le plus de son paroxysme.» (p. 394); «Aujourd’hui tout est médiocre, excepté le mal: voilà par quelle formule on peut résumer la situation au point de vue général, sur le terrain religieux e moral tout ensemble.» (p. 396).
[19] Veja-se, na perspectiva portuguesa e católica, P.e Miguel de Oliveira – História Eclesiástica de Portugal – Edição revista e actualizada. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994, p. 231-237 e 245-250.
[20] Recordemos que foi a este Sumo Pontífice que se ficou a dever a chamada Doutrina Social da Igreja expressa na encíclica Rerum Novarum.
[21] Sobre as diferentes reformas do ensino em Portugal, desde 1870 a 1910, consulte-se Rómulo de Carvalho – História do Ensino Em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 559-650.
[22] Veja-se A. H. de Oliveira Marques, op. cit., p. 489-491.
[23] Como elemento confirmativo desta afirmação repare-se que, pelo menos até 1914, o apoio que Paiva Couceiro esperava para conseguir com êxito voltar a aclamar a Monarquia se situava na área geográfica da forte implantação e influência da Igreja. Pode, ainda, consultar-se de Hipólito de la Torre Gomez – Contra-Revolução. Documentos para a História da Primeira República Portuguesa. Lisboa: Perspectivas & Realidades, [s. d.] (1985).
[24] O presente sublinhado e todos os que lhe seguem, aquando da análise dos Decretos do Governo Provisório da República, são da nossa autoria e pretendem pôr em destaque os aspectos mais significativos da orientação adoptada.
[25] Deve atentar-se no facto de que, quando colocamos a questão e lhe respondemos afirmativamente, estamos a tentar situarmo-nos na perspectiva dos governantes e não na dos escritores que surgiram por volta da data do Ultimato (1890), porque, se assim fosse, teríamos de concordar com Oscar Lopes (História da Literatura Portuguesa. 16.º ed. Porto; Porto Editora, [s. d.], p. 1012) quando afirma ter existido uma certa falta de coerência própria entre os autores portugueses no pós-1910; esta – se foi ultrapassada – só se inverteu à volta dos ideais da Renascença Portuguesa e da sua revista A Águia (1912). Aliás, entre nós, mesmo antes do começo da segunda década do século XX, já se fazia sentir a corrente decadentista como contestação da Naturalista.