O Sargento Mor do exército português José António Caldas, ocasionalmente nascido no Brasil, no ano de 1725[1], foi, na época, um dos mais brilhantes engenheiros militares que serviram nas nossas fileiras e, não sendo de origem nobre, teve de percorrer todas as escalas até atingir o posto militar que corresponde ao actual posto de Major, ou seja, já oficial superior, bem como o lugar de “professor” na Aula Militar da Bahia. Consta que nasceu em Salvador, filho de Pedro da Silva Caldas, calafate, oficial escrevente e requerente de papéis, e de D. Maria da Natividade Cavalcante[2], e faleceu em 31 de Outubro de 1782, com a idade de cinquenta e sete anos. Atravessou uma época histórica sob os governos de D. João V (1707/1750), de D. José I (1750/1777) e de D. Maria I (1777/1792).
Figura 1 – Oficial do Terço de Ordenanças, na Bahia, Brasil, em 1787
Na impossibilidade de obter uma imagem do Sargento Mor José Caldas, tomamos a liberdade de juntar uma imagem curiosa elaborada por um militar português, referindo os fardamentos em uso no século dezoito e que poderia ser o utilizado na Bahia. Notar que no século XVIII a fotografia era obtida normalmente por pintura.
No reinado de D. João V, com a acção do Marechal General Conde de Lippe na organização militar portuguesa, e com influência na vida do Sagento Mor Caldas, há a determinação importante da inclusão, em cada regimento de infantaria, de uma companhia enquadrada por engenheiros de profissão, originando a criação de uma corporação especial de engenheiros militares, na época, ligados à Artilharia.
Desde 1699 que, por carta régia de D. Pedro II, na Bahia, funcionava a Escola de Artilharia e Arquitectura Militar, para diminuir a escassez de profissionais aptos a fazer a manutenção das fortificações e promover a construção civil no Brasil[3]. Esta escola esteve instalada no Forte de S. Pedro, na cidade de Salvador, entre 1710 e 1829. Para esta escola, o recrutamento era feito entre jovens com menos de dezoito anos, sendo, ou não, já militares, a quem era atribuída uma bolsa de estudos.
Figuras 2 e 3 – Forte de S. Pedro, em Salvador, onde funcionou a Escola de Artilharia e Arquitectura Militar. Porta de armas e imagem obtida por satélite
O ensino no Brasil, e também em Portugal, era ministrado essencialmente pela ordem dos jesuítas, que mantinham colégios para os filhos da elite portuguesa e escolas públicas para os alunos sobrantes, onde apenas aprendiam a ler, escrever e contar. Era desta massa que era feito o recrutamento para as aulas de engenharia militar.
No entanto, Caldas recebeu anteriormente formação erudita no colégio de Jesus, em Salvador.
Durante muito tempo, em Portugal, o ensino apoiava-se na experiência dos mestres, como nas “cartas de marear” na Aula de Astrologia em 1514. Sabe-se que Pedro Nunes ensinou na Aula de Matemática, em 1547, e Miguel de Arruda, na Aula de Arquitectura Militar, em 1550, quando era Mestre de Obras e das Fortificações do Reino, Lugares de Além e Índia. O termo Aula, só por si leva-nos a pensar num tempo lectivo, como actualmente se usa, mas, naquela era, designava um curso completo. Por exemplo, na Aula do Paço, em Lisboa, ensinava-se geometria, cosmografia e arquitectura militar. Esta Aula, em 1559, mudou de nome para Escola Particular dos Moços Fidalgos do Paço da Ribeira, com a finalidade de ensinar arquitectura militar.
Figura 4 – Desenhos de Ignacio José, aluno de José A. Caldas
Já no período dos Filipes, esta Aula foi levada para Madrid e deu lugar à Academia das Matemáticas e Arquitectura, voltando a deslocar-se para Lisboa, onde Filipe Terzi, arquitecto, reabriu a Aula do Paço da Ribeira. Estes cursos formavam arquitectos e medidores por conta do erário real e com garantia de trabalho após o final dos mesmos.
Foi em 1590 que foi criada, em Lisboa, pelos jesuítas, a famosa “Aula da Esfera”, no Colégio de Santo Antão, aproveitando a transferência da Aula do Paço da Ribeira para Madrid.
Com estas habilitações, em 1603, Francisco Frias de Mesquita foi escolhido para Arquitecto Mor do Brasil, e tinha apenas vinte e cinco anos de idade. Luis Serrão Pimentel, em 1641, montou a Aula de Artilharia e Esquadria (cantaria de pedras) que, em 1647, se denominou Aula Régia (Fortificação e Arquitectura Militar).
É certo que, no séc. XVII, Portugal se empenhou na formação de arquitectos no Ultramar, destinando-os para a construção de fortificações, cartografia e organização de serviços públicos, nomeadamente no Brasil.
Era notório que militares com formação superior na ciência da construção eram considerados quase “um oásis” de conhecimentos e desenvoltura de procedimentos, no meio da grande maioria do pessoal que constituía o exército colonial, no qual muitos oficiais eram analfabetos. O próprio “Marechal General das Tropas de Sua Majestade Fidelíssima”, Conde de Lippe, determinou, em 16 de Fevereiro de 1764, “(…) Que de ora em diante, todo o sargento que nas mostras responda pela Companhia e que pela natureza do seu encargo deve saber ler e escrever correctamente porque o oficial Comandante da mesma pode não o saber, por ser fidalgo” [4].
Foi o mesmo Conde de Lippe que, aproveitando as reformas pombalinas, reformou o exército, criou bibliotecas em todas as unidades militares e criou o Real Colégio dos Nobres[5].
A Carta Régia de 15 de Janeiro de 1699 institui no Brasil o ensino regular da Arquitectura Militar, onde constava[6]:“(…) aí (no Brasil) deveria ser aberta uma Aula em que ele (o formador) possa ensinar a fortificar, havendo nela três discípulos do partido (bolsistas), os quais serão pessoas que tenham capacidade necessária para poderem aprender e se aceitarem terão ao menos 18 anos de idade, os quais sendo soldados se lhes dará além do soldo meio tostão por dia (…) e todos os anos serão examinados para ver se adiantam os estudos e se têm génio para eles”.
Figura 5 – Desenhos de Ignacio José, partidista da Aula Militar da Bahia e aluno de José A. Caldas
Em Salvador, foram implantadas as primeiras aulas regulares de fortificação, em 1699. O conteúdo programático destas Aulas acompanhava a orientação geral que se seguia em Lisboa, onde se aprendia de tudo em geral, mas o principal da instrução incidia no estudo dos tratados de arquitectura militar, incluindo aritmética, geometria, trigonometria, fortificação, ataque e defesa de praças, modos de desenhar e artilharia. Também incluía estudos de longimetria, altimetria, planimetria, estereometria, geodesia, e pantometria, bem como obras de cantaria e alvenaria. Em geral, os militares com exercício de engenheiros, planeavam e marcavam os arruamentos e serviam de medidores (topógrafos) na implantação de novas fundações e alinhamentos nas ruas, largos, praças e edifícios. Em regra, cada curso tinha a duração de seis anos e incluía a execução de cópias de gravuras de tratados franceses ou holandeses e também de portugueses, cópias estas elaboradas a tinta da china.
E foi assim que, em 1745, José António Caldas “sentou praça” como soldado de infantaria, pensando nós que, pela sua arte desenhista e arquitectural, tenha sido encaminhado para a Aula de Fortificação da Bahia, onde, quando saiu, foi promovido a Cabo de Esquadra. O Coronel Cardoso de Saldanha, que estava em Salvador, desde 1749, foi um mestre insigne de muitos engenheiros brasileiros, nomeadamente de José Caldas. Faleceu em 1767.
Foi Saldanha que indicou o Caldas para trabalhos de engenharia em África, então portuguesa.
Figura 6 – Planta Geográfica da Ilha de Príncipe, desenhada por José A. Caldas, em 1757
E foram estes trabalhos no golfo da Guiné, onde trabalhou como Cabo de Esquadra, que permitiram que, em 1761, tomasse a patente de “Capitão com exercício de engenharia”, nomeação feita por Sua Majestade o Rei D. José I. Transcreve-se agora um documento sobre o tema, de autoria do Tenente Coronel de Artilharia Raymundo José da Cunha Matos que foi governador da Ilha de S. Tomé, até 1816, e que, depois da independência do Brasil, foi Marechal brasileiro.
“Em 21 de Agosto de 1755 foi ordenado ao Vice Rei da Bahia que escolhesse um engenheiro dos melhores que houvesse na Aula Militar daquela cidade e o mandasse em companhia do governador da dita ilha (Príncipe) que ali se achava, para que visse e desenhasse a Fortificação que se devia fazer na mesma ilha. Em 8 de Novembro do mesmo ano foi escolhido para essa missão José António Caldas, por ter sido considerado o único com suficiente desembaraço para executar o desenho e planta da ilha de Príncipe”.
Figura 7 – A Ilha de Príncipe, em 1924, depois dos trabalhos geodésicos de Gago Coutinho
Em 15 de Outubro do ano seguinte, de S. Tomé, José António Caldas escrevia ao Vice Rei do Brasil, Conde de Arcos, dizendo que:
“(…) levara na viagem até essa ilha, 44 dias. Ao fim de 35 dias tinham avistado a ilha de Príncipe, mas os oficiais da corveta e o ouvidor entenderam que seguissem rota para S. Tomé. Aí esperava há 22 dias barco para o Príncipe, que não há menos de Novembro”. E acrescenta Caldas,”(…) nestes dias procurei saber quais eram os rendimentos da real fazenda e sua despesa e negócio dos habitantes”.
Em 1759, Caldas publicou o seguinte sobre S. Tomé:
“Esta ilha em altura de 6 minutos da Equinocial para o Norte, é cabeça de três que formam o seu governo, ainda que de presente por ordens de Sua Majestade de 1755, é a ilha de Príncipe cabeça de Governo, onde reside o governador debaixo de cujo mando estão as outras.
Tem esta ilha de norte a sul dezoito léguas de comprido e em circunferência mais de cinquenta e oito.
O seu porto e ancoradouro olham para leste. A cidade assenta sobre uma pequena planície que terá de comprimento oitocentos passos e de largura pouco mais de duzentos e cinquenta.
A direcção das ruas e situação das casas guardam muito pouca ordem, e são estas todas de madeira e muito poucas cobertas de telhas”.
E depois de explicar a constituição do governo, da câmara, das oito freguesias, do corpo eclesiástico, do corpo secular, analisa:”
As despesas são: | Corpo eclesiástico | 3708$649 réis |
Corpo secular | 3852$266 réis | |
O rendimento é: | Direitos sobre escravos em navio português | 6984$856 réis |
Direitos sobre navios estrangeiros | 406$600 réis | |
Outros direitos | 7683$766 réis |
Tais rendimentos não cobrem a despesa, mas como normalmente não há governador nem bispo e como os oficiais militares não são confirmados por Sua Majestade, e por isso não cobram soldo, sempre chega a receita para a despesa”.
Figuras 8 e 9 – Planta do Forte de S. João Baptista de Ajudá, em 15 de Agosto de 1759, desenhado por José A. Caldas, e a visão actual do interior do mesmo forte, onde existe um museu histórico.
E a terminar a sua opinião pessoal sobre as ilhas: “O país é nefando e a sua intempérie de tal forma má, que não só os estrangeiros mais ainda os naturais, padecem de violentas febres a que dão o nome de carneirada, que as mais das vezes inutilizando os remédios, matam ao quarto dia”.
Nesta missão José Caldas executou levantamentos, plantas e projectos nas ilhas de S. Tomé e Príncipe alguns dos quais são a seguir apresentados:
Figura 10 – Planta topográfica da cidade de S. António de Príncipe. Desenho de José A. Caldas
Referindo-se a Ajudá, Caldas escreveu também:
“Este porto de Ajudá he avultado em negócio de escravos e mais frequentado de todas as nasoes (nações) que navegam para aquela costa. Nele há três fortalezas, a saber inglesa, francesa e portuguesa distantes da praia hua (uma) légua e por esta razão sujeitas aos insultos do rei de Homé. Corre a costa a lesnordeste surgese no dito porto em nove brazas, fundo de lama.”
Figura 11 – Perspectiva (Elevação e fachada) da Cidade de S. António de Príncipe, desenhada já na Bahia, por José A. Caldas, em 1757. Ao centro o Pico do Papagaio
Em 1816, Cunha Matos[7] refere que as fortalezas que defendem S. António do Príncipe eram: Fortaleza da Ponta da Mina, com vinte e nove peças; o Forte de Santa Ana, na outra entrada da baía; e o Forte de S. João, já dentro do porto. Quanto à fortaleza que Caldas ia projectar ou mandar construir na ilha de Príncipe, em 1756, para a defesa desta ilha, temos as nossas dúvidas a que fortaleza se referia, porquanto, desde 1695, que foi deslocada de Lisboa uma companhia de infantaria para guardar a Fortaleza da Ponta da Mina, a qual parece já existir, em 1626 (Labat), no reinado de Filipe III. Entre 1706 e 1709, a ilha sofreu vários ataques de piratas franceses que sempre destruíam as fortalezas existentes.
Figura 12 – O Pico do Papagaio em foto recente, tirada no interior do porto de S. António, na Ilha de Príncipe
Figura 13 – A Fortaleza no seu conjunto
Nesta primeira planta (Figura 13), pode ver-se a Fortaleza da Ponta da Mina no seu conjunto, aproximadamente virada a Norte, com uma Bateria redonda, a Real, e a rectangular à sua esquerda, a chamada de Príncipe, ligadas por caminho entrincheirado em ziguezague, que na altura da execução desta planta seguia até ao nível do mar.
A Fortaleza mais importante era, sem dúvida, a da Ponta da Mina, a qual constava de dois pontos fortes:
A Bateria Real, em posição superior, apresentando a parte convexa de um parapeito circular de alvenaria, onde se acham assentadas dezasseis peças de artilharia de calibre 3 a 14. A Sul desta Bateria, encontrava-se um paiol numa espécie de moinho.
A Bateria do Príncipe é um rectângulo de pedra e cal, junto da Real e a oeste da mesma, e tem assentadas oito peças.
Figura 14 – A Bateria Real Figura 15 – Ruínas da Porta de Armas da Fortaleza
No perfil acima, feito por Cunha Matos, nota-se a diferença de cotas das duas posições, pois a Bateria Real está 150 metros acima do nível do mar, e a de Príncipe só a 60 metros da linha de água. Em resumo, desconhece-se qual das fortalezas foi modificada e se o foi.
Em 1759, Caldas informa que ”tem esta ilha hua Fortaleza, na qual se acham vinte e seis pesas de bronze, e onze de ferro, com duas mil novecentas e vinte e hua bala com os mais petrechos de guerra necessários.” Admite-se que Caldas se estava a referir à fortaleza da ilha de Príncipe.
Figura 16 – O perfil
Figura 17 – A Bateria de Príncipe
Não consta nenhum projecto de fortaleza de autoria do então Cabo de Esquadra com exercício de engenheiro, José Caldas, e mesmo a fortaleza de S. Sebastião na ilha de S. Tomé foi iniciada em 1566 e acabada de construir em 1575, portanto muito antes da sua visita deste engenheiro a S. Tomé e Príncipe.
Figuras 18 e 19 – Planta e Alçado da Sé, de José A. Caldas
Figura 20 – Foto da Sé, em 2009
Enquanto esteve na Ilha de S. Tomé executou o projecto, com planta e alçado, da Sé dessa cidade. Pela fotografia, pode verificar-se que o projecto não foi seguido com exactidão, mas que a traça inicial foi seguida, embora tenha sido “riscada” em 1757.
Numa deslocação a Lisboa, autorizada por provisão Real de 29 de Janeiro de 1775, além dos conhecimentos acumulados com o seu mestre Saldanha, ainda na Bahia, procurou um mestre reputado na Aula de Fortificação e
Arquitectura Militar para receber os seus ensinamentos e obteve o apoio do coronel de engenheiros Filipe R. Oliveira, que tinha sido discípulo de Manuel Azevedo Fortes.
De volta ao Brasil, em 1779, Caldas executou diversos projectos de urbanização na Ribeira das Naus e outros na cidade baixa da Bahia, e desenhou a planta monumental da cidade de Salvador, de que se pode ter uma ideia nas imagens seguintes:
Figura 21 – Fachada da cidade de Salvador, parte Norte. Tirada por José A. Caldas, em 24 de Junho de 1756
Figura 22 – Fachada da cidade de Salvador, parte Sul. Tirada por José A. Caldas, em 24 de Junho de 1756
Desenhou ainda o antigo colégio dos jesuítas no Terreiro de Jesus e cadastrou o Seminário de Belém no Pará.
Também publicou livros como: “A Expedição ao Maranhão” (1753); nesta obra tratou da utilização de “câmaras ópticas” para “fotografar manualmente” as fachadas dos edifícios, fortalezas, localidades, etc..
Não tivemos possibilidade, até ao momento, de consultar a sua obra indicada, e as referências que encontrámos apenas se referiam ao emprego, por José A. Caldas de “câmaras ópticas”.[8]
Figura 23 – A câmara óptica, que José A. Caldas usou muitas vezes a perspectivar localidades8
Acontece que esta Expedição ao Maranhão, realizada em meados do século XVIII, e comandada pelo Governador Mendonça Furtado, era composta por astrónomos e engenheiros que dispunham de imenso material científico, nomeadamente geodésico, topográfico e cartográfico, jamais reunido no hemisfério sul, com a finalidade de demarcar as fronteiras entre países rivais – Portugal e Espanha –, segundo os tratados de Tordesilhas e de Madrid.
Figura 24 – Mapa do Amazonas ou Maranhão, elaborado por frei Samuel Fritz
É esta a primeira carta hidrográfica da bacia do rio Amazonas, que posteriormente La Condamine corrigiu e publicou em 1744[9].
Que nos conste. José A. Caldas não esteve presente na “Expedição do Maranhão” (de 1753). Esta, comandada pelo governador Mendonça Furtado, era composta por astrónomos e engenheiros e dispunha de imenso material geodésico, topográfico e cartográfico, penso que jamais reunido no hemisfério sul. Embora não tenha sido todo utilizado, constava de telescópios, micrómetros, óculos, relógios, quadrantes, bússolas, teodolitos, grafómetros, pranchetas, barómetros, termómetros, microscópios, níveis, réguas e também “câmaras escuras” e estojos de matemática. A finalidade era demarcar fronteiras entre o Brasil e as vizinhas colónias espanholas segundo os diversos tratados, desde o de Tordesilhas, de Madrid e de S. Hildefonso.
Os terrenos que existem ao longo do rio Amazonas ou Maranhão eram completamente desconhecidos dos europeus, e mesmo o mapa de frei Samuel Fritz, de 1707, feito numa escala pequeníssima (1/17.000.000) nada ajudava ao seu conhecimento. Na própria imagem cartográfica, Fritz informa:
“Este famoso rio, o maior da nossa descoberta (espanhola) que chamam já de Amazonas e de Orellana, é o próprio Maranhão. Nasce no Peru … e corre 800 léguas até sair no mar do Norte, com 84 léguas de boca“.
Relata depois a flora e a fauna existente, e afirma ainda que os portugueses possuem docas em algumas povoações e no rio Negro, uma Fortaleza.
A quantidade de pessoal que tomou parte da frota de demarcação, em 1754, pode ser avaliada na imagem seguinte, notando o número de “velas” utilizadas no transporte.
Figura 25 – Saída de Belém da expedição para o rio Amazonas
Um outro livro ou obra manuscrita por José A. Caldas foi:
“Notícia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até ao presente ano de 1759”, de que apresentamos a lombada[10].
Esta obra é um importante documento descrevendo a história de Salvador e da Bahia de Todos os Santos.
O autor debruça-se sobre diversos aspectos da vida da cidade, separando os pontos de vista políticos, dos militares, dos administrativos e principalmente incidindo sobre os aspectos da economia da região. Assim, inclui descrições geográficas, inventários administrativos (civis e eclesiásticos), mapas de populações e rendimentos da Fazenda Real, catálogos de autoridades (bispos, governadores, capitães mores) e colecção de tratados e cópias de legislação vigente[11].
A obra inclui também estudos sobre a produção da agricultura colonial, das minas, do aproveitamento de madeiras e dos lucros de Portugal (Continente) sobre o comércio português, obtido nas relações entre a Bahia e as restantes colónias portuguesas, entre 1756 e 1759. Ainda nesta obra, informa sobre os malefícios do clima de São Tomé para os holandeses, que conquistaram a ilha no século XVII, os quais podem ser calculados pelo seguinte:
“Dentro de catorze dias pereceram mil soldados com dores de cabeça e cólicas. Abertos por isso os cadáveres, achou-se no abdómen uma gordura liquefeita como água. Finaram-se em três ou quatro dias”[12].
Embora ultrapassando a sua ligação à cartografia e à engenharia de construção, esta publicação salienta as possibilidades intelectuais deste militar português que ocupou outros cargos, além de professor da “Aula da Bahia”. Foram muitas as missões desempenhadas por Caldas ao serviço do Senado da Câmara, do Governo Geral e de Sua Majestade o Rei de Portugal, e só em 1768 conseguiu entrar na Ordem de Cristo. Foi também inspector de obras públicas da Fazenda Real.
A vida de Caldas evidencia, assim, o lugar social a que tinha direito, não só como professor e engenheiro, mas também pelas funções e missões que desempenhou ao serviço do Império Português.
Figura 26 – “Notícia geral….
Esta obra, foi encomendada pela Academia dos Renascidos, composta por elites coloniais e metropolitanas, que visavam a criação de uma história geral e, de acordo com as reformas pombalinas, assegurar o controlo português nos territórios ameaçados em terras da América Portuguesa[13].
José A. Caldas, atendendo às especificidades da Academia, publica, além de um mapa geral da América, mapas particulares de “capitanias” e de “bispados” e “plantas de fortificações”[14].
Por ter sido escolhido pela Academia, José A. Caldas foi muito prestigiado e foi-lhe atribuída autoridade para historiar à sua vontade, eliminando as notícias que não interessassem às elites portuguesas e ao controlo do Mundo Português de então.
As plantas que apresentamos como desenhos dos projectos de fortalezas que defendiam a cidade de Salvador na Bahia de Todos os Santos e seu recôncavo por mar e por terra, foram elaboradas, em 1764, por José A. Caldas, e ao lado apresentamos as imagens actuais dos mesmos fortes, obtidas por satélite.
Figura 27 – Forte de S. António Além do Carmo
No Catálogo da Exposição dos Trabalhos Históricos, Geográphicos e Hidrográphicos que serviram de base à Carta Geral do Império (Brasileiro), exibida na Exposição Nacional de 1875, executado pelo Barão da Ponte Ribeiro, consta que, no ano de 1798, foi elaborada uma carta do Brasil abonada por trinta e quatro técnicos cartógrafos, astrónomos e engenheiros que observaram e configuraram, entre os quais o Dr. Miguel António Ciera e o Capitão Engenheiro José A. Caldas (este, na data referida, já falecido).
Figura 28 – Forte do Mar, semelhante ao Bugio, em Lisboa
Figura 29 – Forte do Barbalho
Figura 30 – Forte S. António da Barra
Estas plantas encontram-se no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Existem também algumas plantas de projectos de obras, como a da figura 31.
Figura 31 – Casa da Pólvora, situada junto do Forte de S. Pedro, em Salvador
Além de projectos de obras, que foram os principais documentos deixados por Caldas, e das obras reais que dirigiu e que chegaram até hoje, também se projectou na execução de uma cartografia elementar, como o desenho da figura 32, onde a altimetria se pode notar pelo emprego de normais, dando assim a noção do relevo do terreno levantado.
Figura 32 – Levantamento topográfico de José A. Caldas, com o relevo indicado por normais (achures), na zona da então Vila da Victória
E desenhou muitos outros, como, por exemplo, este extraordinário prospecto da mesma Vila de Victória, em 1767 (figura 33).
Em 3 de Outubro de 1768, por carta patente real, foi nomeado para o posto de Sargento Mor de infantaria com exercício de engenharia[15]:
“D. José (...) faço saber aos que esta minha carta patente virem que atendendo ao que me representou José António Caldas, Hey por bem fazerlhe mercê de o nomear (como por esta nomeyo) no posto de sargento mor de infantaria com exercício de engenheiro na Praça da Bahia, e vencerá as honras, privilegios, liberdades, isenções e franquezas, que em rezão dele lhe pertencerem. Dada na cidade de Lisboa a 13 de outubro de 1768. ElRey”[16].
Figura 33 – Vila de Victória, capital da capitania do Espírito Santo, na foz do rio do mesmo nome.Esta imagem foi tirada com câmara óptica, por José A. Caldas
José A. Caldas não foi promovido a Tenente Coronel, permanecendo como Sargento Mor do Reino, embora no Brasil fosse o mais antigo nesse posto. Também, embora tivesse ministrado formação a diversos cursos de engenheiros militares, nunca foi considerado “lente” da “Escola de Artilharia e Arquitectura Militar da Bahia” nem recebeu a paga a que tinha direito.
Caldas trabalhou quase até aos seus últimos dias na Aula Militar da Bahia, a qual, em 1770, mudou de nome para Academia Real de Marinha e, em 1790, já depois da morte de Caldas, para Academia Real de Fortificação, Artilharia e Desenho.
Deixou imensos seguidores na área da cartografia e planeamento de obras, bem como na preparação de “oficiais artilheiros” e “oficiais para o exercício de engenharia”.
Figura 34 – Grafómetros, bússolas, pranchetas e alidades
Parece não haver dúvida quanto à habilidade, ao rigor e ao senso artístico de José A. Caldas na definição de elementos topográficos e cartográficos que sempre utilizou nos seus trabalhos, quer de engenharia, quer de cartografia, quer ainda de topografia, com a ajuda de instrumentos rudimentares nos seus levantamentos (figuras 34 e 35), os quais, possivelmente, na época de Caldas já existiam. Também utilizava astrolábios, octantes e sextantes o que lhe veio a permitir determinar coordenadas dos locais de trabalho, tanto no Brasil como em África.
Figura 35 – Níveis de pedreiro e de bolha de ar, prumos, esquadros, réguas, etc.
Algumas outras referências a Caldas vamos encontrando, tais como:
“A já referida Aula de Fortificação e Arquitectura Militar da Bahia, teve como professores Miguel Pereira da Costa (1709), o Sargento Mor Manuel Cardoso de Saldanha (meados do século) que formou excelentes desenhistas, o seu discípulo Capitão engenheiro José António Caldas (1761). Caldas e Saldanha fizeram a planta da estrada de Montes Claros à Cachoeira (1756) e em 1758, a carta da serra de Montes Altos. [Guardam-se no Arquivo Histórico Colonial (Lisboa) excelentes desenhos clássicos dos alunos dessa academia, referentes a 1778-1779] [17].
E no livro “O Império luso-brasileiro 1750-1822”, a páginas 492, consta:
“Na Bahia a arquitectura militar desenvolveu-se no âmbito da Aula Militar, cujo lente era desde 1761 José António Caldas. Ele e os seus discípulos dedicavam-se a fazer desenhos de mapas topográficos e geográficos e também de obras de arquitectura civil como trapiches (armazéns grandes)”[18].
Figura 36 – Outro projecto para aquartelamento executado em 1756, e assinado por José A. Caldas
Analisando a sua vida profissional, talvez possamos considerar o Sargento Mor José António Caldas, um dos precursores da cartografia de Portugal Continental, que começou a nascer em Lisboa, em 1802, com a criação do Real Arquivo Militar, entidade que ajudou o Dr. Francisco António Ciera[19] na tentativa da medição do meridiano em Portugal, entre o Algarve e a Galiza. Estes trabalhos incompletos, interrompidos por motivos de incidentes militares, como as três invasões francesas, vão ser aproveitados e permitir que, em 1835, o Dr. Filipe Folque desenvolva a geodesia portuguesa e a carta Corográfica de Portugal na escala 1/100.000.
Também permitem que, em 1926, a Secção de Cartografia Militar do Estado Maior do Exército inscrevesse no seu programa de acção a execução da carta militar 1/25.000, sucedânea da 1/20.000, dos arredores de Lisboa.
Daí nasceu o Serviço Cartográfico do Exército, posteriormente transformado em Instituto Geográfico do Exército, essencialmente militar, e o Instituto Geográfico e Cadastral, essencialmente civil, e que infelizmente já desapareceu da cena cartográfica nacional.
* Tenente-coronel de Artilharia. Professor Efectivo de Topografia e Geodesia da Academia Militar, Lisboa, Professor e Criador do Curso de Engenharia Topográfica no Instituto Politécnico de Beja, Professor de Topografia e Desenho Topográfico da Escola de Formação e Aperfeiçoa-mento do Instituto Geográfico e Cadastral em Lisboa, Professor Convidado da Universidade dos Açores para as cadeiras de Topografia e Desenho Topográfico, em Ponta Delgada, e Professor de Topografia da Universidade Lusófona em Lisboa.
[1] Gina Marocci; Bahia séc. XVIII.
[2] Cristina F.L. Ximenes-Bahia e Angola, Redes comerciais e tráfico de escravos, 1750/1808.
[3] As raízes do ensino da Arquitectura e Urbanismo no Brasil; Vol. X Arquitectura e Urbanismo.
[4] Lagos Militar.blogspot.pt/2008/conde-lippe-o-sargento-mor-e-o-fidalgo.html.
[5] As raízes do ensino…
[6] As raízes do ensino…
[7] Brigadeiro Raymundo José da Cunha Matos, referenciado como historiador de S. Tomé e Príncipe, onde permaneceu dezanove anos, e executante de “Mapa de uma parte das províncias de Mato Grosso, S.Paulo e Goiás”, indicado no catálogo da ”Exposição dos Trabalhos Históricos, Geográphicos e Hidrográphicos”, do Barão da Ponte Ribeiro, em 1875.
[8] Carlos F. Moura – Da Bahia às ilhas do golfo da Guiné e a Contra Costa Africana.
[9] Exposição de trabalhos históricos geográficos e hidrográficos – Barão da Ponte Ribeiro, 1876.
[10] História de Salvador.
[11] Iris Kantor, “Esquecidos e renascidos”, Historiografia Académica Luso-Americana 1724-1759, S. Paulo.
[12] História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo de João Maurício Conde de Nassau.
[13] Iris Kantor, id. id.
[14] Iris Kantor, id. id.
[15] http://fortalezas.org/index.php?ct=personagem id pessoa=1341.
[16] Arquivo do Conselho Ultramarino, livro 40 de Ofícios, fol.47.
[17] Cartas Históricas da Mapoteca da Directoria do Serviço Geográfico, Major Sebastião da Silva Furtado; Anuário de 1956 do Serviço Geográfico.
[18] Maria B. Niza da Silva, 1986, Nova História da Expansão portuguesa, Joel Serrão e A.H. Oliveira Marques.
[19] Filho do Padre Miguel António Ciera, matemático italiano, astrónomo, que fez parte da comissão portuguesa demarcadora das fronteiras luso-espanholas na América do sul em 1751-Anuário 1956 do SGE.
Tenente-coronel de Artilharia. Professor Efectivo de Topografia e Geodesia da Academia Militar, Lisboa; Professor e Criador do Curso de Engenharia Topográfica no Instituto Politécnico de Beja, Professor de Topografia e Desenho Topográfico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento do Instituto Geográfico e Cadastral em Lisboa, Professor Convidado da Universidade dos Açores para as cadeiras de Topografia e Desenho Topográfico, em Ponta Delgada, e Professor de Topografia da Universidade Lusófona em Lisboa.