Em períodos de crise económica e financeira é já tradição nas sociedades demoliberais levantar-se a discussão na opinião pública, em alguns órgãos de comunicação social e mesmo em alguns partidos políticos com representação parlamentar, sobre qual o papel e a importância das Forças Armadas (FA), os seus custos, o seu dimensionamento, o estatuto dos militares e mesmo a privatização da sua atividade.
Assim, tendo em consideração o atual contexto estratégico, com este breve ensaio procuramos contribuir para a reflexão sobre estas temáticas, interrogações e dúvidas, abordando as missões e finalidade das FA, a sua estrutura, bem como a utilidade do instrumento militar e do emprego da força na atualidade, mesmo que de uma forma privada.
A atual conjuntura internacional, onde o papel do Estado soberano está em crise, também se carateriza pela flexibilização do conceito de fronteira e pela aceitação de situações de cidadanias múltiplas e de governança partilhada. Neste contexto, o conceito de Segurança sofreu alterações e modificou o seu valor para uma segurança agora orientada para riscos diversos, mais difusos na forma, origem, espaço e atores, onde a imprevisibilidade aumenta as condições para a eclosão de conflitos. A Segurança passou a ter interesses além dos vitais, por vezes materializados longe da base territorial dos Estados.
A Defesa tem obrigatoriamente de procurar corresponder a um conceito alargado de Segurança e de flexibilização de fronteiras, através de uma articulação das várias componentes. No presente, cada vez mais, a promoção da Segurança Nacional joga-se em novas fronteiras, que vão para além da fronteira territorial, passando a Segurança e a Defesa a assegurarem-se na fronteira dos interesses e em quadros coletivos e cooperativos.
Hoje, o contexto estratégico coloca aos Estados novos desafios, manifestam-se novas e diferentes ameaças, interdependentes, de múltiplas naturezas, dinâmicas, polimorfas, assimétricas e globais, que não reconhecem fronteiras, mas que, apesar de tudo, as consequências da sua existência ou atuação se manifestam no interior das tradicionais fronteiras políticas e de soberania dos Estados[1]. Por exemplo, em Portugal, o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN, 2013) identificou as principais ameaças e riscos[2] à Segurança Nacional, sejam elas ameaças de natureza global (o terrorismo, a proliferação de armas de destruição massiva, a criminalidade transnacional organizada, a cibercriminalidade, a pirataria), sejam riscos de natureza ambiental (alterações climáticas, riscos ambientais e sísmicos, ocorrência de ondas de calor e de frio, atentados ao ecossistema, terrestre e marítimo, pandemias e outros riscos sanitários).
Face à ineficácia do Estado e dos seus tradicionais instrumentos de política externa e de segurança, assistimos a um impulsionar do desenvolvimento gradual de uma nova conceção de segurança alargada, abrangendo outras dimensões para além da militar, forçando a adoção de uma estratégia de resposta holística, sendo a eficácia da mesma subsidiária da adequada coordenação multi-institucional e de uma arquitetura de segurança cooperativa onde as diferentes organizações, diferenciadas nos objetivos e capacidades, se devem complementar.
O contexto estratégico também coloca outros e novos desafios aos aparelhos militares, passando alguns países e Organizações Internacionais (OI) a exigir às suas FA novas missões, novos requisitos de força, novas capacidades e mesmo novas estruturas de força, de forma a torná-las capazes de fazer face a todo o espectro do conflito[3]. Esta evolução deixou antever o emprego das mesmas Forças em missões de segurança interna.
As FA, que não têm uma origem espontânea ou mesmo divina, surgem porque, em dado momento histórico, uma determinada unidade política considerou que necessitava de um instrumento legítimo que, através da exclusividade do uso da Força, lhe garantisse a segurança e consequentemente lhe permitisse o desenvolvimento do bem-estar (Vaz, 2002) – lembramos que são estas duas condições mínimas que permitem que os mercados domésticos funcionem (Nye, 2012).
Se a opção de uma unidade política for não possuir FA, configurando assim um vazio de poder militar numa determinada área geográfica, a sua soberania ficará limitada (Santos, 2012) e, uma vez que a estratégia não consente vazios de poder, este tende a ser preenchido inclusivamente pelos amigos ou aliados, mesmo contra os próprios interesses do Estado.
No fundo, a força militar que as FA representam são uma componente essencial do Poder que, como metaforicamente Nye nos refere, providenciam “um grau de segurança que está para a ordem assim como o oxigénio está para a respiração: mal se nota até começar a rarear” (2012, p. 70).
O que carateriza e individualiza as FA é a capacidade de executar a ação armada com um objetivo político claro, sendo hoje a finalidade das FA a de sempre: dissuadir e combater. A primeira, é garantida através da sua própria existência e da transmissão aos outros (percepção de potenciais antagonistas), da sua credibilidade e capacidade de emprego pelas unidades políticas; a segunda finalidade implica o emprego (útil e organizado) da força, quando, onde, e se necessário.
Com base nas ameaças podemos definir os cenários genéricos de emprego do instrumento militar: o exercício da soberania no espaço estratégico, a segurança e defesa do território nacional e respetivas populações; o apoio à política externa, seja no âmbito da segurança cooperativa, da defesa coletiva ou da cooperação e assistência militar; e no apoio ao desenvolvimento e bem-estar das populações. Estes cenários podem e devem depois ser desdobrados em sub-cenários.
Embora a opinião dos militares deva ser tida em consideração, as FA executam as missões que lhe forem definidas pelo poder político, que também fixam os padrões para o seu desempenho (Janowitz, 1979). As missões, decorrem normalmente das constituições, e da conjugação entre os cenários de emprego, o conceito de ação militar e as orientações específicas definidas nos conceitos estratégicos. De uma maneira geral, as suas missões devem abranger três empenhamentos de ação estratégica militar: os períodos de paz, crise e guerra, e são desenvolvidas, quer na ordem interna quer na ordem externa, sendo que, face à limitação de recursos, quer materiais quer humanos, o Poder político tem de assumir riscos (aceitar que parte das ameaças identificadas não está coberta), em função de critérios de probabilidade e perigosidade de ocorrência das mesmas.
Nesta ordem de ideias, podemos considerar que as missões das FA têm de garantir as funções e deveres permanentes do Estado de Direito democrático como a defesa dos valores constitucionais, a integridade territorial, a garantia da soberania e da independência nacional, a segurança humana, incluindo a liberdade individual e política dos cidadãos.
Para cumprir este desiderato consideramos fundamental a ação de presença das FA em todo o território nacional, contribuindo para o reforço da coesão e identidade nacional e para a preservação da ocupação populacional e institucional de todo o território, mantendo ainda proximidade com as populações para as poder apoiar, sempre que for solicitado, com a capacidade dual dos seus meios, materiais e humanos.
Para a sua consecução é necessário assegurar (Monteiro, 2013):
– a disponibilização de uma estrutura militar de defesa como um dos meios através dos quais o Estado pode revelar a vontade coletiva de soberania;
– capacidade para cumprir as missões militares necessárias para garantir a soberania, a independência nacional e a integridade territorial do Estado;
– capacidade de vigilância e controlo do território nacional;
– capacidade para organizar a resistência em caso de agressão.
Para concretizar os objetivos da política de Defesa Nacional e as respetivas missões, as FA deverão ser capazes de gerar e explorar as capacidades militares[5] que lhes permitam executar as suas missões nos diversos cenários gerais, sendo que o seu emprego nestes cenários deve respeitar as prioridades e orientações contidas nos Conceitos Estratégicos.
Para o cumprimento das missões é fundamental garantir que as FA estão organizadas em função do ambiente operacional onde atuam (mar, terra, ar), possuem uma estrutura hierárquica, estão disciplinadas e instruídas.
As ameaças já por nós identificadas anteriormente manifestam-se, hoje, num contexto estratégico dinâmico e incerto, situação que dificulta objetivamente qualquer critério racional para se definir sustentadamente a natureza, organização e o dimensionamento da Força a edificar para ajudar a fazer face a essas ameaças (Barrento, 1999).
Por norma e no mínimo, a sua dimensão organizativa deve assentar numa componente operacional e numa componente de base ou de apoio, que devem ser dimensionadas em função das missões, dos recursos, dos interesses que as unidades políticas pretendem preservar e o que é razoável obter pela participação em alianças OI, bem como qual deve ser a nossa ambição de participação nessas organizações.
Esta estrutura tem que garantir relevância estratégica ao país e uma flexibilidade de emprego ao nível externo e interno. Assim, consideramos que no exterior do espaço de soberania do estado português, a atuação deve ser privilegiada nas seguintes linhas de força:
– no espaço geopolítico de proximidade (atlântico, península e norte de África);
– no espaço das OI de Segurança e Defesa e outras onde se possa projetar poder através do emprego das FA, como instrumento de política externa, mas onde deve ser considerada uma escala geopolítica de prioridades;
– no espaço do legado histórico.
O emprego do instrumento militar deve ainda potenciar a mais-valia de presença no exterior para promover a imagem externa do país, abrindo portas à diplomacia económica e às empresas nacionais, mas tendo em consideração o caráter sempre limitado dos recursos disponíveis, e da própria conjuntura.
Este quadro obriga assim a um dimensionamento da força que comprove o empenho credível e que seja demonstrativo da solidariedade no seio das alianças ou OI. O que não for assegurado pelos sistemas de defesa coletiva ou cooperativo terá de ser conseguido de forma autónoma (Barrento, 1999), garantindo os interesses específicos nacionais necessários a preservar que não sejam coincidentes na íntegra com os interesses supranacionais.
Esta capacidade autónoma deve ser de natureza dissuasória e defensiva, e permitir evitar riscos de perda da solidariedade dos parceiros, da coesão da segurança coletiva e da individualidade nacional.
O dimensionamento das FA para a atuação na ordem interna deve ter em consideração, essencialmente, os estados de exceção, as missões em prol do desenvolvimento e bem-estar das populações, bem como algumas missões de jurisdição e responsabilidades nacionais próprias.
A estrutura de base, além de garantir a subsistência e a vida normal das FA, sustenta o comando e controlo que garanta o desenvolvimento das outras estruturas. Esta estrutura também deve estar preparada para garantir condições para mobilização, levantamento e prontidão dos recursos.
O emprego dos meios, que podem e devem fornecer elementos para a estratégia genética e estrutural, possuem uma doutrina, que fruto da realização de operações e exercícios internacionais nas OI e alianças que integramos, é uma doutrina conjunta e combinada, com repercussões na organização, ensino e instrução.
Face aos resultados da avaliação estratégica efetuada, impõe-se às FA uma grande flexibilidade de capacidades de prevenção e resposta. Esta flexibilidade é garantida, entre outros aspetos, através de um adequado grau de prontidão para planear, preparar e conduzir simultaneamente diferentes tipos de operações, o que implica dispor de capacidades na área do Comando e Direção, da aplicação da força, bem como da sua sustentação, e que incluam os diversos tipos de forças.
Em todo este processo, as opções quanto à estrutura de forças recomendam a capacidade de crescimento para níveis superiores de levantamento e prontidão, quando necessário, por convocação ou mobilização. É, por isso, necessário ter implementado um efetivo sistema de convocação e mobilização, e um novo conceito de reserva operacional que permita enquadrar e instruir as unidades a levantar quando a situação o exigir. As dotações de armamento e equipamento, as reservas de guerra, e a dimensão humana do contingente mobilizável devem ser estabelecidas com realismo, em conformidade com as possibilidades do país.
Os níveis de ambição e as exigências nacionais devem ser deduzidos a partir da associação de “funções de combate” a “capacidades militares”, julgadas necessárias para cumprir os diversos “cenários de emprego das FA”.
O produto final das FA reside na sua capacidade operacional, a qual se deve apoiar em forças credíveis, que se distinguem pela eficiência, de modo a serem reconhecidas pelos nossos aliados nas diversas organizações de segurança a que pertencemos e, para tal, são necessários recursos materiais e humanos. Estes recursos são quantificáveis quando se efetua o levantamento da estrutura, se define o sistema de forças e o respetivo dispositivo. Destes, o principal elemento da organização é o recurso humano, sendo fundamental ter condições para o recrutar, formar, motivar e preservar, tendo em consideração a especificidade da sua condição militar[6] e os elementos básicos da cultura e dos valores organizacionais onde está inserido[7].
Os recursos materiais estão muito associados à logística de produção ou estratégia genética.
Neste âmbito, entre outros aspetos, o foco do investimento deve concentrar-se em equipamentos de indiscutível utilidade tática e estratégica que permitam resultados operacionais significativos a custos materiais e humanos mais baixos e, sempre que possível, numa perspetiva de possibilidade de emprego dual dos recursos, procurando a eliminação de todas e quaisquer formas de duplicação de meios.
O quadro conceptual de empregos dos meios está relacionado com os recursos disponíveis, sendo desta relação que, numa perspetiva de eficácia e eficiência, se pode definir o que é possível pedir que as FA façam.
Já com Clausewitz (1976, p. 73), o poder militar era instrumental e subordinado da vontade política, sendo a guerra considerada apenas mais um instrumento político, uma realização da política por outros meios.
Atualmente, nas democracias ocidentais consolidadas, o Estado deve empregar o seu instrumento militar em todo o espectro das operações, da alta à baixa intensidade, e ser capaz de projetar e sustentar forças flexíveis e interoperáveis para onde e quando for necessário, no território, na periferia ou à distância estratégica, e para o desempenho das missões que o poder político entender.
O mesmo Estado deve ter em conta que um dos objetivos do emprego da Força deve ser o da alteração das relações de poder e que a decisão sobre a sua adopção deve ser o produto de um efeito psicológico, ou seja, que no jogo dialéctico, a gestão das percepções e as mensagens que se pretendem passar aos atores em presença são fundamentais, sendo que o efeito pretendido só é alcançado se existir comunicação com o Outro ator e da sua parte uma assimilação clara do que se pretende. Assim, desde o momento da preparação, devem ser tidos em conta os diferentes padrões culturais, civilizacionais bem como os critérios de racionalidade. A partir desta análise pode efetuar-se então a formulação das possíveis modalidades de ação para alcançar o objetivo definido.
Nesta ordem de ideias, as FA, que são a parte mais substancial do instrumento militar, quando enviadas para ação numa qualquer confrontação política ou conflito, apenas devem desempenhar missões que visem melhorar ou conter uma situação, compelir comportamentos, desorganizar estruturas ou destruir e/ou impor uma situação. Estas missões podem ser desempenhadas em simultâneo, em qualquer nível da atividade militar.
Para a concretização destas missões os comandantes militares necessitam de estar cientes das condições e dos critérios para o emprego da força nas diversas situações com que se deparam nas operações militares que conduzem. Por princípio, o Soldado é preparado para combater e morrer, podendo, no entanto, desempenhar outras missões em apoio e em coordenação com Autoridades Administrativas, ou, inclusive, com Organizações Não Governamentais.
Doutrinariamente, podemos sistematizar que as FA, de acordo com Loup Francart (2002), só podem ser empregues nos campos físico e psicológico, num quadro legal, institucional e ético, sem o qual a Força pode estar a exercer violência sem a legitimidade política necessária. Neste emprego podemos considerar quatro formas de atuação: psicológica sobre os atores e espectadores dos conflitos; apoio; contenção; e combate.
Esta atuação das FA deve procurar conter o conflito em diversas dimensões-chave: espaço; massas; armamentos; urgência; informação e forças; ao mesmo tempo que podem ser chamadas a desempenhar missões pós-conflito e participar no restabelecimento da vida pública e privada (Francart, 2002).
Ruperth Smith (2006), general inglês, também nos apresenta a sua interessante visão sobre a utilidade da força, desde as guerras da Revolução e de Império na atualidade. Para ele, as FA, quando enviadas para ação numa qualquer confrontação política ou conflito, são um instrumento útil e apenas podem desempenhar funções que visem melhorar uma situação, conter uma situação, coagir ou destruir. Estas funções podem ser desempenhadas também a qualquer nível da atividade militar, e as diferentes funções podem também elas ser desempenhadas nos diferentes níveis, ou seja, ao nível tático a força pode estar a coagir, mas estrategicamente estar a melhorar uma determinada situação. Nesta ordem de ideias, podemos considerar que o uso não coercivo e benigno dos recursos militares pode constituir importante fonte de poder suave para enquadrar objetivos, para a persuasão e para a atração na política mundial (Nye, 2012).
Quando as funções referidas são implementadas com competência e legitimidade (efetiva ou percebida) produzem alterações comportamentais desejadas nos seus alvos (Nye, 2012). Porém, quem decidir sobre a sua implementação necessita de ter em consideração as circunstâncias em que a Força é empregue, ou seja, o contexto dos objetivos, o ambiente da ação, e a probabilidade e tipo de reação a desencadear pelos seus alvos (Nye, 2012).
Se o contexto estratégico não é permissivo, o soft power adquire uma importância considerável para conquistar/manter a confiança junto das populações, sendo empregue numa pura gestão do consentimento da presença da Força num qualquer Teatro de Operações.
Nye (2012) apresenta-nos um quadro onde sintetiza e relaciona o tipo de comportamento, as qualidades chave para o êxito estratégico, os recursos moldados e as quatro modalidades do Poder militar: o combate, a diplomacia coerciva, a proteção e o apoio.
Tipo de Comportamento | Coerção física | Ameaça de coerção | Proteção | Assistência |
Modalidades | Combate e destruição | Diplomacia coerciva | Alianças e manutenção de paz | Ajuda e treino |
Qualidades chave para o êxito estratégico | Competência | Capacidade e credibilidade | Capacidade e confiança | Competência e benignidade |
Recursos moldados | Pessoal, armas e táticas | Diplomacia expedita | Tropas e Diplomacia | Organização e Orçamentos |
Quadro 1
Assim, com base nas análises de Loup Francart, Ruperh Smith e Joseph Nye, entendemos que na modalidade de combate e destruição, podemos estar a falar em melhorar ou conter uma situação, compelir comportamentos, desorganizar estruturas ou mesmo a imposição de uma situação, se necessário através da destruição.
A Força para concretizar estas modalidades do Poder, no caso de se pretender apenas melhorar a situação, deve ter:
– estrutura C2W (command and control warfare) para planear e conduzir esta tarefa;
– capacidade organizativa e aptidão logística;
– auto-suficiência e não se constituir como fardo para nenhuma das partes;
– capacidade para se auto-proteger.
As FA com estas capacidades e estrutura não se destinam a resolver o problema, acabam por servir apenas de paliativo, e uma vez que a iniciativa reside nos que criaram o problema, podem mesmo tornar-se reféns de outras ações levadas a cabo por forças amigas.
Para conter uma situação, aos itens anteriores devemos acrescentar a capacidade de fornecer a força militar com o poder de fogo apropriado a esta tipologia de missão. No entanto, o instrumento militar continua a não ser solução para o problema de fundo; as forças tendem a ser colocadas fora da zona da crise e podem ter o efeito perverso de a ampliar; a iniciativa reside naqueles que criaram o problema; são definidos os limites de atuação às partes envolvidas.
Para compelir devemos acrescentar a capacidade credível para esta tarefa, através de uma intenção evidente, da prontidão e capacidade para a “escalada”. Para esta postura tem de haver uma estratégia, vontade política da comunidade internacional envolvida, ser identificado o local onde exercer a “pressão” e a ação deve ser “relevante” e “adequada”.
Para desorganizar é necessário disponibilidade política e capacidade militar para um envolvimento em operações militares de grande significado, pois é necessário destruir ou neutralizar as fontes de financiamento, fluxos de material e cercear a liberdade de circulação bem como negar santuários. Não é igualmente solução para o problema de fundo, embora possa neutralizar por tempo indeterminado capacidades existentes, tendo que ser definidos objetivos bem precisos e entendidos internacionalmente como justos. Estes objetivos devem materializar uma ação estratégica clara, diretamente relacionada com as preocupações político-estratégicas da parcialidade e proporcionalidade, o que envolve uma maior exigência no acesso à informação estratégica atualizada, bem como exige maior capacidade de autoproteção e disponibilidade política e militar para a “escalada”.
Para destruir, o emprego das FA, além da disponibilidade política e capacidade militar para realizarem todas as ações operacionais no espectro do conflito, deve: ser garantido, o que nos confere a iniciativa na condução do processo; ser sancionado pela comunidade internacional; a ação deve ser precisa, com o mínimo de danos colaterais; e ser entendido como “justo”.
No âmbito da modalidade de emprego do instrumento militar através da diplomacia coerciva, o chamado show the flag (ficou conhecido na gíria militar nacional, como a política da canhoneira) não se ameaça explicitamente com o uso da Força, mas apenas para demonstrar o potencial militar e a intenção da sua utilização, se e quando for necessário.
Já a proteção, e a sua garantia, são centrais nas relações de aliança, mas também ela implicam credibilidade e produção de confiança. Uma das atuações encontra o mais evidente exemplo na estratégia de dissuasão da OTAN, que, com o chapéu nuclear norte-americano, confere proteção aos aliados com a designada extended deterrence. Um outro exemplo são as operações de paz, onde a atuação das FA pode ocorrer de forma preventiva, antes de um conflito eclodir, durante o conflito, procurando o fim das hostilidades violentas e, no pós-conflito, para participar no restabelecimento da vida pública e privada. Aqui fazemos uma ressalva importante; é que, em ambientes considerados não permissivos, onde apenas a presença militar pode atuar, as tarefas típicas do pós-conflito devem ser desempenhadas pelas FA, com a sua capacidade militar sobrante, procurando estas criar um ambiente seguro, estável e autossustentado para a população, permitindo a posterior intervenção com mais ênfase dos outros instrumentos do Poder, numa verdadeira estratégia global, ou, mais modernamente, efetuando uma comprehensive approach da situação.
A ajuda e treino materializam tradicionalmente uma das formas de apoio à política externa do Estado, e é concretizada através de ações de cooperação técnico-militar, mentoria e assistência militar, sejam efetuadas no âmbito bilateral e multilateral, ou através de ações no âmbito da Reforma do Setor de Segurança, constituindo-se num importante instrumento de smart power (Nye, 2012).
À medida que se multiplicam as novas ameaças, os líderes mundiais, políticos e militares, começam a encarar esta nova realidade, que nos parece inevitável: as FA irão, nas próximas décadas, ser empregues na ordem interna. Esta perspetiva não é aceite sem controvérsias apresentadas por muitos líderes militares, como é o caso do Brasil[8]; porém, quer os EUA quer o Reino Unido adotaram conceitos como o Homeland Security [9]. Portugal, no seu atual CEDN, também alargou o âmbito de atuação das missões das suas FA, detalhando nas missões das FA o modo de atuação complementar e supletivo das valências próprias das Forças de Segurança.
Falta, no entanto, a legislação própria para, entre outros temas, definir concretamente o espaço de intervenção, a cadeia de comando e os responsáveis[10], ou seja, a articulação entre FA e Forças de Segurança, na ordem interna, numa estratégia de emprego dual (Garcia, 2010, p. 271). Neste âmbito considera-se importante:
– promover uma abordagem integrada da segurança interna, contemplando uma dimensão horizontal (necessidade de intervenção articulada e coordenada de forças e serviços de segurança, proteção civil, emergência médica, autoridades judiciárias, bem como de entidades do sector privado) e uma dimensão vertical, incluindo nesta os níveis internacional, nacional e local;
– garantir as capacidades necessárias ao emprego das FA, em cenários nacionais, quer no âmbito de missões em proveito do desenvolvimento e bem-estar quer em ações de prevenção e combate a agressões e às ameaças transnacionais, defesa de infraestruturas críticas e outras ações em reforço/apoio e complemento das Forças e Serviços de Segurança e dos Órgãos de Proteção Civil;
– a utilização das FA neste âmbito deve ser otimizada, numa estratégia de emprego dual, sem que daí não saia afetada a competência para cumprirem as suas missões primárias, intrinsecamente militares, que são a sua verdadeira razão de ser;
– aprofundar a ligação e capacidade de resposta das FA com a rede de entidades responsáveis em situações de catástrofe e calamidade.
Assim, as FA desempenham ainda hoje um papel importante, pois ajuda a estruturar a política mundial (Nye, 2013).
Na conflitualidade atual, devemos ter em consideração o novo paradigma que surge com a alteração significativa na estrutura das FA e no emergir da civilinização, onde assumem grande relevância as modernas Empresas Militares Privadas (EMP), que prestam serviços e tarefas de natureza militar.
A privatização do conflito e o uso de mercenários não são um fenómeno novo. Porém, o presente contexto é substancialmente diferente e as Corporate Warriors, na expressão de Singer (2003), têm um enquadramento jurídico distinto dos mercenários tradicionais.
Podemos considerar como elementos de diferenciação das EMP em relação aos mercenários[11]: a sua estrutura organizacional com diretores e acionistas, estarem legalmente registadas; prestarem contas ao fisco e à segurança social, visarem o lucro a longo prazo, e operarem em vários teatros e para vários clientes ao mesmo tempo. Trata-se, assim, de organizações privadas de natureza comercial, cujo objeto é o fornecimento de um largo espectro de serviços de natureza militar e de segurança a entidades nacionais e não nacionais, apresentando-se como alternativa aos serviços tradicionalmente consagrados às FA dos Estados.
Existem várias tentativas para categorizar estas empresas, normalmente incidindo sobre o tipo de serviços prestados que, segundo Singer (2003, p. 93), são os seguintes:
– empresas fornecedoras de militares – que se centram no ambiente táctico, fornecendo serviços na linha da frente do espaço de batalha, através do empenhamento direto dos seus especialistas em operações de combate;
– empresas de consultoria militar – que fornecem serviços de aconselhamento e treino. Oferecem análise estratégica, operacional e/ou organizacional e têm empenhamento com o cliente a todos os níveis, mas sem haver “combate próximo”. Não operam no espaço de batalha, embora a sua presença possa dar forma ao ambiente estratégico, operacional e tático, é o cliente que corre o risco final no espaço de batalha;
– empresas de apoio militar – que fornecem serviços militares suplementares, incluindo auxílio não letal, apoio logístico, aprovisionamento e transportes, assim como apoio técnico.
São inúmeras as justificações que levam os Estados a contratar estas empresas (Vaz, 2005, p. 819). Nos Estados considerados fracos, o recurso a este tipo de empresas prende-se, sobretudo, com a incapacidade de dar resposta às necessidades básicas de segurança das populações, ao passo que no mundo pós-moderno esse recurso apresenta-se mais como uma consequência de considerandos económicos, sociais e políticos. No caso particular dos EUA, foi o paradoxo entre a efetiva redução de efetivos, por um lado, mas manutenção de ambições e responsabilidades globais, por outro lado, conduziram a uma reflexão sobre o seu papel no mundo.
A necessidade de ponderação de índole económica, social e política conduziram a uma progressiva diminuição de efetivos, no momento em que se defrontavam (defrontam) com as exigências do desafio da sua longa luta “contra o terrorismo” a nível global, e a necessidade de, ao mesmo tempo, terem que assegurar níveis de prontidão operacional para fazerem face a outras ameaças e manterem uma presença militar mundial. Assim, o recurso às EMP surgiu como inevitável, cabendo a estas, sobretudo, a substituição das FA em missões não consideradas vitais para a segurança nacional.
O crescimento destas empresas e a diversificação dos serviços por si prestados não foi, no entanto, acompanhado de regulamentação internacional específica. Não podemos, no entanto, considerar que haja um vazio legal, havendo um conjunto de legislação nacional e internacional que direta ou indiretamente regula esta atividade.
Normalmente, as EMP devem operar de acordo com o enquadramento legal do país objecto do contrato e a nível internacional lembramos, entre outras, o Direito Internacional Humanitário e diversas legislações sobre mercenários. Porém, equacionam-se vários problemas, como a aplicação direta da legislação sobre mercenários[12], e muitas vezes os Estados que contratam esta prestação de serviços têm um sistema judicial debilitado para que possam efetuar o controlo destas empresas e muitas delas, quando contratadas, negoceiam regimes de imunidade dos seus funcionários, como aconteceu na guerra do Iraque em 2003.
Em março de 2007, os EUA deram um passo significativo para contrariar esta situação, tendo sido aprovada legislação que coloca as EMP sob a alçada da lei e dos tribunais militares. Anteriormente, esta modalidade aplicava-se apenas em situações em que o Congresso tivesse declarado formalmente guerra. Com a alteração agora introduzida, a lei passa a contemplar Operações de Contingência (MilTech, 2007, p. 43), onde se incluem as realizadas no Iraque e no Afeganistão. Estas iniciativas são o indicador de esperança na regulamentação. No entanto, ficam ainda a faltar os mecanismos de controlo e inspeção a nível internacional, pois enquanto a regulamentação e fiscalização não forem eficientes receamos que este tipo de empresas não possam ou não queiram entender, na mira do lucro, a “natureza complexa dos interesses nacionais e aceitem participar num jogo em que a sua posição, sem ser claramente oposta aos interesses do seu país, também não possa considerar-se favorável” (Vaz, 2005), subsistindo assim o perigo real de existir um poder militar armado não-residente na legitimidade do Estado.
Em síntese, as EMP configuram uma nova realidade, complexa e ainda mal estudada, que carece de regulamentação e fiscalização, mas também do nosso estudo e aprofundamento como académicos e acompanhamento enquanto cidadãos.
No atual contexto estratégico, o poder militar nas suas diversas modalidades, continua a desempenhar um papel extremamente útil e a ser uma componente essencial do poder na política mundial, que ajuda a estruturar e a manter alguma ordem.
As FA, que produzem poder, podem e devem, de uma forma inteligente, ser empregues nas missões que lhe forem definidas pelo Poder, carecendo, para tal, de possuir estruturas que lhe permitam grande capacidade de emprego operacional flexível, garantindo a relevância estratégica das unidades políticas na cena internacional e, ainda, se necessário, uma capacidade autónoma para afirmação da soberania e da segurança humana, não esquecendo neste quadro, o desafio imposto às estruturas militares pelas empresas que prestam serviços e tarefas de natureza militar.
Na conjuntura económica e financeira de grande contenção orçamental que enfrentamos, as unidades políticas devem cada vez mais adotar uma postura inteligente, para que não se incorra numa situação de diminuição da capacidade de produzir segurança, que podem acarretar riscos não desprezáveis para o desenvolvimento e para o bem-estar social, podendo a crise económica e financeira transformar-se em crise de segurança, correndo o sério risco de irrelevância no seio da Comunidade Internacional e de criar vazios de poder com todas as consequências para a soberania e para a segurança das populações.
BARRENTO, Martins (1999) – Reflexões sobre temas militares. Lisboa: Instituto de Altos Estudos Militares.
CLAUSEWITZ, Carl Von (1976) – Da Guerra. Lisboa: Ed. Perspectivas e Realidades.
FRANCART, Loup (2002) – Maîtriser la violence. Une option stratégique. Paris: Económica.
GARCIA, Proença (2010) – Da Guerra e da Estratégia. A nova polemologia. Lisboa: Prefácio.
JANOWITZ, Morris (1979) – The future of the military profession. In, WAKIN, Malham, War morality and the military profession. Boulder: Westview press.
MILITARY TECHNOLOGY (MILTECH) (2007) – Private Security Companies. February; p. 41-45.
MONTEIRO, Pina (2013) – O Exército em tempos de mudança. In, GARCIA, Proença, LOUSADA, Abílio, Da História Militar e da Estratégia. Lisboa: Prefácio.
NAÇÕES UNIDAS (2004 ) – A more secure world: our shared responsibility – Report of the High-level Panel on Threats, Challenges and Change. [Em linha]. Disponível em http://www.un.org/Pubs/chronicle/2004/issue4/0404p77.html.
NORTH ATLANTIC TREATHY ORGANIZATION (2002) – Military Decision on MC 317/1 – The NATO Force structure. 1 July.
NYE, Joseph (2012) – O futuro do Poder. Lisboa: Círculo de leitores.
SANTOS, Loureiro dos (2012) – Forças Armadas em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
SINGER, Peter (2003) – Corporate Warriors – The rise of the privatized military industry. New York: Cornell University.
SMITH, Rupert (2006) – The Utility of Force. The art of War in a modern world. London: Penguin.
VAZ, Mira (2002) – A civilinização das Forças Armadas em sociedades demoliberais. Lisboa: Edições Cosmos/IDN.
VAZ, Mira (2005) – As Empresas Militares Privadas vieram para ficar? In Revista Militar. Lisboa; Agosto/Setembro, p. 819-833.
Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013. Conceito Estratégico de Defesa Nacional.
* Adaptação do artigo publicado na Revista Direito e Segurança, Ano II, nº 3, pp. 113-133.
[1] Neste ensaio optámos por um conceito de ameaça virado para as consequências, e que vem identificado no relatório das Nações Unidas, A More Secure World: Our Shared Responsability, que admite uma conceção bastante ampla de ameaça, encarada como: “(…) Any event or process that leads to large-scale death or lessening of life chances and undermines States as the basic unit of the international system is a threat to international security (…)” (2004, p. 12).
[2] Risco entendido como uma ação não diretamente intencional e eventualmente sem carácter intrinsecamente hostil.
[3] Este foi o caso concreto da OTAN que, a 21 de Novembro de 2002, na Cimeira de Praga, ratificou o novo conceito militar para a defesa contra o terrorismo, o MC 472, e a nova estrutura de forças foi definida em 1 de Julho do mesmo ano, através do Military Decision 317/1.
[4] A Estratégia pode ser entendida, quanto ao seu desenvolvimento e atuação, como: Estratégia Estrutural, que visa identificar as fraquezas e possibilidades das estruturas existentes para as corrigir, melhorar e explorar; Estratégia Genética ou Logística de Produção, que tem por finalidade a criação ou obtenção de novos meios, que serão colocados à disposição da Estratégia Operacional, entendida como o emprego dos meios para se alcançarem os objetivos político-estratégicos.
[5] Como capacidade militar deverá ser entendido o conjunto de elementos que se articulam de forma harmoniosa e complementar, e que contribuem para a realização de um conjunto de tarefas operacionais ou efeito que é necessário atingir, englobando componentes de doutrina, organização, treino, material, liderança, pessoal, infraestruturas e interoperabilidade, entre outras (DOTMLPII).
[6] A este respeito podemos aprofundar em Santos (2012).
[7] A cultura organizacional é um legado inter-geracional que representa uma sabedoria adquirida e consolidada ao longo dos anos e que é fundamental para se poderem cumprir as missões de sacrifício inerentes à função militar. Mira Vaz considera quatro elementos básicos da cultura militar: a disciplina, o ethos profissional, a função cerimonial e o espírito de corpo. Sobre este assunto podemos detalhar em Vaz (2002).
[8] O General Rui Monarca da Silveira, no seu artigo “Segurança e Defesa – a visão do Exército brasileiro”, mostra a relutância que existe em atribuir missões ao Exército para cumprir missões de segurança interna. Disponível em www.exercito.gov.
[9] Ver a este propósito o relatório da United States General Accounting Office, Report to Congressional Requesters, Homeland Security, June 2004, e a importante obra publicada pela Rand Corporation, Army Forces for Homeland Security, Santa Monica: 2004.
[10] Quer a Constituição da República quer a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas limitam o emprego das FA ao plano externo. Porém, pelo Parecer nº. 147/2001, da Procuradoria Geral da República, de 9 de novembro de 2001, homologado pelo MDN, em 6 de dezembro de 2001, estabelece-se que as FA podem ser empregues em missões de segurança interna, em caso de agressão ou ameaça externas. Assim, desde que o poder político defina como sendo externa a origem da ameaça, a atuação das FA no âmbito da segurança interna para o combate a novas ameaças tem cobertura legal. Este parecer não é esclarecedor quanto ao campo de atuação das FA.
[11] De acordo com o primeiro Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949, e segundo o seu artigo 47.º, um mercenário apresenta as seguintes características: “(a) é especialmente recrutado localmente ou fora do local de conflito para lutar nesse mesmo conflito; (b) toma de forma direta parte nas hostilidades; (c) é motivado pelo desejo de ganhos privados; (d) não é um nacional da parte em conflito nem um residente do território contro lado por uma parte do conflito; e (e) não é um membro das forças armadas de uma parte no conflito”.
[12] O problema com o artigo 47.º do Protocolo Adicional I prende-se, sobretudo, com as alíneas a), pois tem que ser provado que um recrutamento especial para um determinado conflito ocorreu. Como o pessoal contratado pelas EMP é, muitas vezes, contratado a longo prazo ou até numa base permanente, não pode, desta forma, ser considerado mercenário; com a alínea b), o problema coloca-se relativamente à exclusão de conselheiros e formadores, entre outros. E como quase todas as EMP não entram em combate (na definição da OTAN de combate), não podem ser consideradas mercenárias; a alínea c) acrescenta um elemento perigoso: a motivação.