Nº 2549/2550 - Junho/Julho de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
O luso-tropicalismo enquanto modelo ideológico da gestão colonial portuguesa
Mestre
Marco Pais Neves dos Santos

O presente trabalho aborda o luso-tropicalismo enquanto modelo ideológico da gestão colonial portuguesa e foi estruturado em três partes: uma primeira, como enquadramento, procede à contextualização histórica, essencial para a compreensão dos factos; uma segunda, desconstrói o que foi o colonialismo português, sendo possível comprovar uma realidade bem diferente daquela que é ainda muitas vezes transmitida, de que o colonizador português era melhor face aos seus congéneres; e uma terceira, que aborda o fundamento, características e objetivos da teoria do luso-tropicalismo, e procura responder se essa representou o modelo ideológico da gestão colonial portuguesa. Concluímos refletindo de forma concisa sobre o tema estudado.

 

Parte I – Contextualização Histórica

“As nações validas teem tão naturalmente colonias como os indivíduos vivem sujeitos à lei da propagação da espécies pela paternidade. Acabou a velha concepção do systema colonial de sujeição. As colonias não são feitas «pela metrópole e para a a metropole», como d´antes se dizia. As colonias são filhas da Mãe-patria, e como taes teem direito à protecção da metrópole no intuito de lhes dar civilização, grandeza e independencia”. (Moura, 1910, p. 1)

Antes da chegada dos portugueses aos vários territórios coloniais, os povos aí residentes tinham um peculiar modus vivendi, caracterizado por seculares instituições económicas, políticas, sociais e religiosas[1]. Todas as suas atividades eram condicionadas pela obediência aos hábitos, usos e costumes, isto é, pelo cumprimento intransigente do direito consuetudinário. Não obstante a quezílias normais da vida em sociedade, inter e intragrupais, o respeito pelos velhos, a obediência aos chefes, a adoração dos deuses, a crença nos mitos, o temor dos feiticeiros e bruxos, eram as pedras angulares de todas as normas de conduta social, capazes de assegurar só por si a boa harmonia das relações sociais e a manutenção da ordem pública.

Com a emergência dos primeiros tentames de colonização em grande escala (século XVI)[2], baseados em objetivos económicos, políticos e religiosos, debelou-se essa ordem social[3], e os povos colonizados foram, não poucas vezes, subjugados e espoliados, escravizados, o que, aliás, levou ao aparecimento de uma abordagem humanista, de defesa dos colonizados e de luta contra a escravatura, que começou a ser defendida sobretudo por membros clericais, ainda no século XVIII. É disso exemplo a obra do Padre Raynal, publicada em 1770, Histoire Philosophique Politique des Établissements et du commerce dês Européens dans le deux Indes, considerada um dos principais manifestos do anticolonialismo, esmagando não só os colonos como os príncipes coloniais (Ferro, 1996). Aliás, esta corrente de pensamento do final do séc. XVIII e do séc. XIX trouxe novas ideologias, nomeadamente, através da Revolução Francesa, cujas consequências foram, por exemplo, a abolição da escravatura ou a hipótese de dar independência às colónias e estabelecer com elas novas formas de comércio. (Ferro, 1996)

O contempto social foi uma dura realidade no colonialismo português, que acontecia por via de estratégias de dominação e de determinação de uma superioridade cultural e civilizacional face aos africanos, como advoga Pereira (1998, p. VIII), que também enfatiza as questões da escravatura, distanciando o esclavagismo indígena que antecede os descobrimentos da escravatura e do tráfego negreiro emergente no século XV, responsável por alterar as formações sociais africanas. Tal como refere Ferro (1996), o argumento humanitário de que as “raças superiores” deveriam cumprir o seu dever para com as “raças inferiores”, ainda não orientadas nas vias do progresso, está hoje desacreditado. Para o autor, os colonizadores europeus teriam consciência de uma identidade europeia, e a convicção de que encarnavam a ciência e a tecnologia, e que o seu saber fazia progredir as sociedades submetidas ao seu domínio. No entanto, é hoje largamente consensual a ideia de que o aumento do poder dos Estados sobre as suas colónias nem sempre ocorreu por via política, mas sim por via das circunstâncias. A própria colonização era quase sempre feita por revoltosos, delinquentes e criminosos, o que não era atrativo para a opinião pública europeia.

Com base nesta consciência de superioridade ocidental, nas colónias portuguesas africanas, os negros eram considerados “raças inferiores” ou “arremedos grotescos de homens brancos”, como lhe chamou o então governador-geral da Angola, Vicente Ferreira (Bender, 1980, p. 26-27); aliás, motivos justificativos da “missão civilizadora”, legitimada pelo designado luso-tropicalismo, de Gilberto Freyre, formulação que deu os primeiros passos na obra Casa-Grande & Senzala (1933), dedicada à pesquisa específica da idiossincrasia do povo brasileiro (Castelo, 1999 e 2011; Moreira, 2000, p.19), e que germinou na obra O mundo que o português criou (1940), onde autor revela ser possível uma teoria sobre o mundo luso-tropical. A teoria ganharia vida numa conferência realizada em Goa (Índia), em novembro de 1951, e numa conferência realizada em Coimbra (Portugal), em 1952, sendo que, efetivamente, a teoria foi materializada nas obras Um brasileiro em terras portuguesas (1953b) e Integração Portuguesa nos Trópicos (Freyre, 1958), e acaba na obra O luso e o trópico (1960). (Castelo, 1999 e 2011)

Não obstante, devemos contextualizar a “missão civilizadora” empreendida pelo Estado Novo à luz do momento e da conjuntura, e sem negligenciar o pensamento que vinha do antecedente, ou o posterior. Por exemplo, Karl Marx e Friedrich Engels, dois grandes pensadores europeus, consideravam a colonização francesa da Argélia, nos anos 40 do século XIX, em grande parte um processo civilizatório (Engels, 1849). Já depois do términus da colonização, Marc Ferro, na emblemática obra: História das Colonizações, Das Conquistas às Independências – Sécs. XIII-XX, apesar de evidenciar a faceta profundamente negativa da colonização, também levanta algumas questões positivas, por exemplo, focando a questão das miscigenação, ou a reformulação do papel da mulher branca e da mulher negra nas novas sociedades que surgem com o fenómeno da colonização, em territórios onde o sexo feminino era uma clara minoria, e até a efetiva emancipação da mulher, já que, segundo o autor, esta “contrabalançou o seu estatuto subalterno no âmbito tribal ou familiar e contribuiu para a sua libertação”. (Ferro, 1996, p. 162-224

Para Ferro (1996), terá a sua relevância referir que a primeira derrota de um “grande país de raça branca por um povo de cor”, foi a vitória do Japão face à Rússia, em 1904, em que a Rússia acaba por reconhecer a soberania do Japão na Coreia e o Porto Artur volta a estar sobre o domínio japonês.

No entanto, independentemente do colonizador e do processo (de exploração ou de povoamento), a colonização é sempre um processo em que uma ou mais civilizações exercem dominação sobre outra (Balandier, 1955)[4], relação que não atrai muitos aspetos positivos (Wright, 1995)[5], até porque, tal como advoga Jorge Dias, citado por Lara (2000, p. 15), “da colonização resulta sempre uma imposição dos padrões de cultura da sociedade tecnologicamente mais evoluída”. No entanto, sem qualquer intenção, o colonialismo europeu, e sobretudo o português, assente numa colonização de exploração, que visava extrair recursos naturais e minerais dos países colonizados, para posterior comercialização (Moog, 1954 [1943]), contribuiu para a africanização de África, não pela importância de levar a civilização ocidental ou o cristianismo até África, mas por reforçar a identidade africana, ao lembrar aos povos africanos que eles eram todos africanos e tinham os mesmos objetivos (é disso exemplo o papel de Mário Pinto de Andrade, que lutou pela independência de todas as colónias). (Pereira, 2000, p. 1)

O racismo, na forma como as populações negras foram tratadas (desenvolvido na segunda parte do trabalho), é a prova mais evidente de que não existiu intenção dos europeus contribuírem para esta africanização. (Mazrui & Wondji, 2010, p. 11[6])

Depois da Segunda Guerra Mundial, com a derrota das potências do Eixo, os povos dos países coloniais e dependentes aumentaram a sua luta libertadora (Bastos, 1998, p. 422). Todo o continente asiático se põe em movimento. Mesmo em África, até então designada por “continente adormecido” (Mazrui & Wondji, 2010, p. 68-69)[7], os povos começaram a opor-se afincadamente à opressão colonial, recebendo estímulo da desagregação do Império Britânico. Não obstante, teria sido o seu maior estímulo o acumular de sentimentos nacionalistas e a perceção de que podiam opor-se aos colonizadores, disposição que se afirmou no pós-II Guerra. (Mazrui & Wondji, 2010, p. 2)

Em 1947, os ingleses reconhecem a independência da Índia, colónia de maior relevância, em consequência da intensidade das lutas nacionalistas, que eram permeadas pelas divergências religiosas entre hinduístas e muçulmanos, e pela perda de poder económico e militar decorrente da Guerra; começa a decadência do Império Britânico (Talbot & Singh, 2009). Índia e Paquistão, por divergências religiosas, constituem dois novos Estados: a União Indiana, governada por Nerhu, com maioria hinduísta, e a Liga Muçulmana, governada por Ali Jinnah, com maioria islamita, respetivamente. Em 1948, a Birmânia, que resistia à ocupação japonesa, proclama a independência, e o Ceilão (hoje Sri Lanka), com maioria budista, segue o mesmo caminho.

A luta libertadora contra o imperialismo britânico instala-se em África. Os sudaneses começam a reivindicar a independência e, em 1953, conseguem a autonomia gradual, concedida pelo Reino Unido e pelo Egito, antecâmara duma independência alcançada em janeiro de 1956; mas também os ganeses, depois de 1952, altura em que Kwame Nkrumah se torna Primeiro-ministro e começa a trabalhar para a descolonização de África (Holland, 1985). Aliás, já em 1945, no 5º Congresso Pan-africano de Manchester, que teve a adesão de intelectuais negros vindos de todos os cantos do mundo, e que conseguiram fazer aprovar uma resolução em que se condenava o colonialismo tal como existia e apelava a reformas várias económicas e sociais nas colónias, K´Nkrumah, sem rodeios, exigiu a independência imediata e incondicional dos territórios africanos ocupados, criticando o que considerava ser a “balcanização” de África – a estratégia Ocidental de “dividir para reinar” –, que consistia na fragmentação de África em pequenos Estados, como estratégia imperialista de dominação sobre o continente. (Nkrumah, 1977)

No império francês, a luta anticolonial teve a mesma evolução. Em 1945, os franceses deixaram de controlar o Líbano. No mesmo ano, foi proclamada a República do Vietnam, ainda que a independência só tenha chegado depois de 1954, com a derrota militar francesa em Dienbienphu. Em 1946, depois de muita luta, os franceses retiram definitivamente da Síria e, no Norte de África, no ano seguinte, o sultão Sidi Mohamed pronuncia-se a favor da independência, tendo sido deposto e exiliado; no entanto, aproveitando a derrota francesa na Indochina, e a insurreição anticolonial na Argélia, revestida de muita violência depois de 1954, regressa e sobe ao trono de Marrocos, em 1955, com o nome de Mahamed V e, em março de 1956, proclama a independência de Marrocos. No mesmo ano, após dura resistência armada ao colono, o movimento nacionalista tunisiano, liderado por Habib Bourguiba, força com sucesso a independência do país, sendo eleito para a Presidência em 1959. Em 1962, através dos Acordos de Evian, a Argélia obtém a independência.

O fim da colonização inglesa da Índia, e francesa da Argélia, marcam o início da descolonização na maior parte das colónias europeias em África e na Ásia.

O império holandês, com menor número de territórios coloniais, penalizado desde cedo pela incapacidade de rivalizar com as potências emergentes, como a inglesa e a francesa, apresentava, nesta altura de pós-guerra, sintomas semelhantes. Em 1945, Ahmed Sukarno liderou o movimento de independência, e após muita luta armada com a metrópole, em 1949, os Países Baixos reconheceram formalmente a independência da Indonésia[8], muito pressionados internacionalmente, ainda que a independência absoluta só tenha surgido em 1954[9]. A proclamação da República da mais importante colónia holandesa significou a desagregação do Império Colonial Holandês (Holland, 1985), até porque só restavam duas colónias aos holandeses, o Suriname, que se tornou autónomo ainda em 1954, apesar de ter recebido a independência, em 1975, e as Antilhas Holandesas, um conjunto de cinco pequenas ilhas nas Caraíbas (Hart-Davis, 2007), dissolvidas em 2010, enquanto uma entidade autónoma da coroa holandesa, passaram a constituir dois países autónomos, e três ilhas voltam a integrar o território da Holanda.

A desagregação dos impérios coloniais na Ásia e na África aconselha o regime de Salazar a redobrar de cuidados, até porque, em 1947, com a França em esforço para conservar a Indochina, e com a Holanda prestes a perder a parte substancial do seu antigo império asiático, realizava-se em Nova Dehli, na Índia, uma conferência convocada por Nehru, Primeiro-ministro da União Indiana, país que chegará à independência nesse mesmo ano (Venâncio, 2002, p. 234), onde é apontada a necessidade de constituir um bloco de nações capazes de influenciar as decisões mundiais, o que atua excelentemente como reforço do sentimento nacionalista dos povos colonizados africanos e asiáticos.

Começam a surgir de forma mais intensa organizações e atividades de índole política, com uma conotação acentuada de esquerda. Com efeito, é através da conferência de Bandung (Indonésia, abril de 1955), a primeira conferência afro-asiática significativamente anticolonialista, na qual se preparou o batismo do Terceiro Mundo[10], que acontece no seguimento da conferência de 1947, com os mesmos princípios e objetivos, que emergiria o maior apoio aos africanos na sua demanda pela soberania; “pilar” histórico e basilar na luta contra racismo e contra o imperialismo colonial (Mackie, 2005). É disso exemplo a contribuição de Richard Wright, conferencista em Bandung, que viria a ser considerado o percussor do multiculturalismo e um agente defensor da transformação global, pelo ataque concretizado às nações ocidentais, a quem responsabilizou pela pobreza e ignorância dos povos coloniais, aconselhando essas nações a trabalhar em direção à modernização e industrialização dos espaços coloniais sob um sistema político democrático e livre, ou seja, dando aos povos coloniais o direito à autodeterminação e liberdade de escolha, relativamente aos seus próprios sistemas políticos (Wright, 1995). Como refere Cann (1998, p. 36), “os «ventos da mudança» sopravam através de África, mas [em Portugal] o regime de Salazar recusava efectuar eleições democráticas ou descolonizar”.

A conjuntura política internacional, os reiterados abusos cometidos pelos colonos e o consequente empolar independentista, a recusa do direito das colónias à autodeterminação e à independência, o menosprezar das ameaças feitas pelos movimentos de libertação, e o não cumprimento das recomendações das organizações internacionais, por parte do Estado Novo, estão na base da Guerra Colonial, iniciada em fevereiro de 1961, e findada com a Revolução dos Cravos, em abril de 1974.

Apesar de todas as evidências e pressões externas, sabendo que as potências internacionais reprimiam o colonialismo e a escravatura, e apoiavam os movimentos de libertação, estes movimentos estavam inspirados numa ideologia comunista, acoitados pelos países africanos pró-comunistas (ex. Guiné-Conakry e o Congo ex-Belga), e mesmo recebendo recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) para ceder a independência às colónias, como aconteceu desde que Portugal integrou este organismo em 1955, ainda assim, mesmo sem parceiros ou apoios internacionais, Salazar manteve-se inabalável, numa política de “orgulhosamente sós”[11], socorrendo-se do luso-tropicalismo para justificar a persistência no sistema colonial (Bastos, 1998, p. 422), “ (…) ideologia que persistiu para além da brutal contradição evidenciada pelas práticas” (Bastos, 1998, p. 428). Salazar sabia que, ao defender pela força das armas as colónias, estava a preservar o regime prepotente que tutelava. (Cann, 1998, p. 59)

“(…) this interpretation [Lusotropicalism] is then used by the Portuguese colonial regime to legitimize its claims in Africa against growing anticolonial pressure as of the late 1950s and until the demise of the colonial and dictatorial regime in the early 1970s”. (Almeida, 2008, p. 2-3)

No entanto, e por isso mesmo, procurou através de uma operação de cosmética desviar a pressão exercida pela ONU, e acalmar a insubordinação colonial, afirmando que Portugal não possuía “colónias” mas sim “províncias ultramarinas” (Bender, 1980:6-7); mas, no entanto, foi insuficiente para acalmar os independentistas africanos, enredados num profundo sentimento de espoliação, e cada vez mais “unidos” em torno de um “(…) sentimento nacionalista, alicerçado na ideia de que o desenvolvimento almejado deixava de ser possível noutro quadro político-jurídico que não o do Estado-Nação” (Venâncio, 2002, p. 234). E, depois de muita luta, conseguiram partir “(…) as correntes do domínio estrangeiro [português] e tudo o que elas tinham representado em termos de privação moral e social” (Davidson, 2000 [1992], p. 163), remetendo a ideologia luso-tropicalista ao silêncio da repressão, sem abrir a questão ao debate público e democrático, tal como advoga Cristina Bastos, ao referir que não foi “sujeita à terapia coletiva de discussão do tema”. (Bastos, 1998, p. 428)

 

Parte II – O colonialismo português

“Sem coação da parte do europeu, não teria se dado a tão violenta revolução social como a representada por este deslocamento do trabalho agrário das mãos da mulher para as do homem. Sem coação, só, não.. Sejamos francos e empreguemos a expressão exata: sem escravidão. Foi o regime de trabalho escravo que permitiu ao português, nos primeiros séculos de colonizador europeu da África, fazer o homem de Angola trabalhar contínua e regularmente nos campos”. (Freyre, 1953a, p. 405)

 

O trabalho compulsório e esclavagista foi o principal eixo da organização social na sociedade colonial, aliás, o que viria a ser considerado um arcaísmo improdutivo pelos economistas liberais. Os povos colonizados eram tidos como mão-de-obra barata e pagadores de impostos (Zamparoni, 2001, p. 207-208)[12], recebiam um tratamento desumano reiterado num quotidiano de violência, pernoitavam amontoados em senzalas, “casas” pequenas e húmidas, sem o mínimo de conforto, distanciando-se “da casa-grande do homem de cabedal e governo” (Koshiba & Pereira, 1987), “estavam sujeitos ao arbítrio das autoridades coloniais, e eram submetidos a julgamentos sumários e a medidas discriminatórias ou mesmo vexatórias” (Mateus & Mateus, 2011, p. 41), o que levou ao presságio de que a solução só podia passar pela independência.

Entre 1890 e 1940, foram formuladas e implementadas as bases do regime colonial em Moçambique (diga-se, segregadoras, tal como acontecia nos territórios adjacentes, de outro domínio colonial, como no território hoje pertencente à África do Sul), e que persistiram até 1960, quando eclodiu a luta armada anticolonial (Zamparoni, 2001, p. 191). Este modelo de gestão colonial visava e legitimava a marginalização dos negros. Por exemplo, em Lourenço Marques, existiam clubes só para os nascidos na Metrópole (Mateus, 2004, p. 95). No entanto, também descriminava outras minorias, com a mesma intensidade, sobretudo a comunidade dos monhés, que era altamente segregada, mas também a pequena comunidade de chineses, grosso modo concentrada nas cidades da Beira e de Lourenço Marques (cf. Zamparoni, 2001). Aliás, nestas duas cidades, o africano só podia circular pelos passeios públicos desde que por aí não passassem brancos em simultâneo. (Mateus & Mateus, 2011)

Em Angola, poucos portugueses eram capazes de separar as distinções entre raça e cultura: o branco estava associado à cultura portuguesa, e o negro a uma cultura diferenciada, classificada de “africana”, ou seja, vingava uma gradação na discriminação relacionada com a cor, muito vinculativa na sociedade, motivo pelo qual “até ao início da Guerra Colonial nenhum natural de Angola, branco ou negro, podia desempenhar funções de oficial no exército ou ascender a cargos de públicos de relevo e, durante muito tempo, nem sequer podiam fazer a tropa” (Mateus & Mateus, 2011, p. 42). Apesar de ser uma regra repleta de exceções, porque o sistema de indigenato e a teoria luso-tropical permitia os assimilados (racialmente negro, mas culturalmente português), em geral, quanto mais clara fosse a pele, mais elevada era a posição social do indivíduo. Aliás, oficialmente, os africanos assimilados representavam menos de 1% da população. (Bender, 1980, p. 301)

A elite colonial portuguesa, que era uma minoria originária da metrópole, seguia uma política de segregação e de ação cultural, firmada num sentimento de superioridade face aos povos colonizados (Cann, 1998, p. 35) e, por isso, o africano ser “arrebanhado à força pelas autoridades coloniais, que recebiam avultadas quantias por cada trabalhador enviado para as plantações e empresas, onde, longe das famílias, em instalações sórdidas, mal alimentado e com salários de miséria era forçado a um trabalho desumano que se convertia em riquezas enormes de que não beneficiava”. (Mateus & Mateus, 2011, p. 42)

Muitos revoltosos eram enviados para África, o que agravada a situação das populações locais, que tinham de suportar a fúria destas pessoas, e o seu descontentamento, e ainda, indiretamente, eram alvo da política de opressão e censura de Salazar, que servia para reprimir a oposição que se manifestasse nas colónias, negra ou branca. (Boahen, 2010, p. 815)

Nos anos 60 século XX, o reordenamento ou reagrupamento das populações, sob a designação de aldeamentos, aldeias estratégicas, agrupamentos, concentrações, reordenamento rural, desenvolvimento comunitário, aldeias fortificadas e “sanzalas da paz” (Cann, 1998, p. 208-209), realizado com o objetivo de separar as populações dos guerrilheiros e dificultar o alastramento subversivo para Sul, agravou incomensuravelmente as condições de vida dos africanos, já de si muito débeis. Só no Norte de Angola foram deslocadas mais de um milhão de pessoas (Bender, 1980, p. 226). Tal política, militarmente eficaz, culturalmente destrutiva, e socialmente indesejada, levou à destruturação da agricultura tradicional (sobretudo da produção de milho), e traduziu-se na ocupação pelos senhores de terras pertencentes aos africanos (para produção de café, algodão ou sisal), e na formação de depósitos de mão-de-obra onde os senhores iam recrutar negros, muitas vezes para trabalhar nas suas próprias terras, ocupadas de forma coerciva. (Moutinho, 2000, p. 104)

“O reagrupamento dos africanos em aldeamentos artificiais (…) assinalava outro capítulo triste na crónica da destruição dos padrões sociais, económicos e políticos tradicionais de Angola – uma crónica que começou com a escravatura, prosseguiu com as «guerras de pacificação» e o período do trabalho de contrato e veio a culminar com a reinstalação forçada de mais de um milhão de africanos durante a guerra”. (Bender, 1980, p. 104)

A descriminação racial atingia todos os nascidos nas colónias, inclusive os chamados “brancos de segunda”, e ocorria sem ser necessário recorrer a legislação específica, porque “o sistema virulento de discriminação cultural e de classe impedia eficazmente os africanos de participarem como iguais nas instituições sociais, económicas e politicas portuguesas” (Bender, 1980, p. 302). Nas cidades, o africano também estava sujeito a medidas discriminatórias e vexatórias: em Lourenço Marques, a “gente de cor” (como eram designados os não brancos pelas mulheres brancas, no Jornal Lourenço Marques Guardian), estava proibida de tomar banho no recinto protegido da praia e, como tal, se quisesse banhar-se, teria de o fazer em áreas costeiras não protegidas, correndo o risco de ataque por tubarões (Zamparoni, 2001, p. 206). Em Angola os “brancos de segunda” sentavam-se atrás dos “brancos de primeira”, o que acontecia, por exemplo, nas escolas e ou nos transportes públicos. Aliás, no Lobito existiam carreiras para brancos e carreiras para pretos.

Aos africanos estava vedado o acesso aos cinemas, restaurantes e cafés frequentados por brancos, não podiam olhar as mulheres brancas, ou até mesmo gesticular no seu sentido, e deveriam manter a cabeça baixa, sob pena de serem presos (Mateus, 2004, p. 95). Tinham os movimentos condicionados, por exemplo, durante a noite tinham de pedir autorização para circular, não podiam passar num passeio onde estivessem brancos, e não podiam exercer atividades profissionais relevantes (Carvalho, 2001, p. 25). Aliás, em Lourenço Marques, os salários eram fixados de acordo com a raça dos profissionais (Zamparoni, 2001, p. 207-208). Nos serviços públicos existiam locais de atendimento específicos para brancos e negros, e, quando não existiam, os negros eram atendidos depois dos brancos, ficando imenso tempo em filas de espera, tempo que teriam de faltar ao trabalho e que não lhes era remunerado. (Mateus & Mateus, 2011)

Regras informais de organização da sociedade, não escritas, mas muito vincadas, que criavam uma barreira invisível de exclusão, imposta ao africano e às pequenas minorias étnicas, e que favoreciam a procrastinação da escravidão nas colonias (Vellut, 1989); mesmo após decretado o fim progressivo da escravatura, em 1858, ou a sua abolição em 1878, porque acontecia de forma camuflada (Valério & Fontoura, 1994, p. 1196-1197), o que é revelador do fracasso da legislação da abolição da escravatura (Torres, 1989). Situações de abusos coloniais que ainda fazem eco na contemporaneidade, mesmo no Brasil, tal como é percetível em Dantas (1998), referindo-se à dureza a que eram expostos os negros transplantados de África para a Bahia/Brasil[13], ou em Holanda (2005 [1936]), no que se refere à ausência de uma ética do trabalho do colonizador português, ou em Bonfin (1905), que refere que, quando os portugueses se sedentarizaram tornaram-se parasitas, trabalhando com recurso ao trabalho escravo, não velando pelo bem comum, só explorando e regrando a sociedade de forma a perpetuar um poder parasitário, ou em Moog (1954 [1943]), que faz um diagnóstico alargado do atraso brasileiro apontando o dedo à colonização portuguesa, que considerou predadora e extractivista, ou também em Romero (1888 [1943]) e Prado (1928), entre outros.

O descontentamento dos povos colonizados, e o clima de instabilidade política internacional no pós II Grande Guerra, deu campo de manobra aos movimentos nacionalistas africanos (as elites negras tinham retornado durante a guerra, e muitos dos que tinham sido recrutados para a guerra, ou retornaram, ou abriram os olhos para um mundo diferente; melhoraram a escolaridade ou concluíram mesmo cursos, superiores ou não). Depois da descolonização da África britânica, francesa e belga, da anexação de Goa pela Índia, e após eclodirem as rebeliões em Angola (1961), Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964), intensificaram-se as pressões internacionais contra Portugal, agravadas pelo facto dos Estados Unidos da América (EUA), liderados pelo Presidente John F. Kennedy, retirarem o apoio em relação a esta matéria, e alinharam com a União Soviética (URSS) na condenação da política africana de Portugal. (Cann, 1998, p. 59-60)

No entanto, antes do Presidente Kennedy tirar o apoio político, fez deslocar a Portugal, em agosto de 1963, o subsecretário de Estado dos Assuntos Europeus, George Ball, para propor a Salazar que reconhecesse às colónias o direito à autodeterminação e iniciasse o processo de descolonização, num prazo máximo de dez anos (Rodrigues, 2003, p. 22-27), durante os quais os EUA ajudavam financeiramente Portugal a promover melhoramentos de infraestruturas básicas, de educação, de saúde, de condições sociais, de agricultura e de quadros técnicos nas suas colónias. Salazar recusou a proposta, também chamada de “Plano Ball”, o que acentua a sua obstinação pelo domínio colonial, não só com base no argumento de que o país tinha parcos recursos e deveria aceitar a proposta, mas também a fazer fé no que escreveu George Ball, onde se lê que o pensamento demonstrado por Oliveira Salazar remete para uma política “(…) ditada pelos mesmos princípios de “orgulho nacional”, de “sentido de missão cristã” e de “mística de dilatação das fronteiras da fé e do império” que tinham guiado os “descobridores portugueses dos séculos passados” (Ball, 1983, p. 276). Para o autor, Salazar era inflexível e ultra reacionário, não só por todas as suas crenças e preconceitos, mas por ser sectário de uma visão medievalista para o mundo português. Aliás, Ball relata dessa viagem que Portugal era governado por um triunvirato, ou troika, expressão muito em voga, composto pelo Infante Dom Henrique, Vasco da Gama e pelo próprio Salazar. (Ball, 1983, p. 277)

Militarmente confrontado, diplomaticamente censurado[14], politicamente desprovido, e ideologicamente isolado, Salazar insistiu em defender pela força das armas os territórios ultramarinos, acreditando veementemente que a guerra era para o “bem dos africanos”, e para a preservação das sociedades multirraciais (Bender, 1980, p.7). Ainda, inteligentemente, socorreu-se da mortandade provocada pela UPA, nos inícios de 1961, no norte de Angola, em revolta por séculos de escravatura, para justificar a Guerra Colonial e para evidenciar a natureza tribal desta União, ou seja, que estes povos ainda não tinham atingido a modernidade, e que tinha razão quando insistia na necessidade da missão civilizadora dos povos coloniais. (Pélissier, 1978, p. 235)

No entanto, segundo John Cann e Gerald Bender, fica claro que a política colonial, mais importante do que pretender a preservação da “secular convivência fraterna” entre bancos, negros e mestiços, tinha o propósito de preservar o regime (Cann, 1998, p. 58;62). Os autores justificam-se, entre outros, na ausência do “luso-tropicalismo” no decurso da guerra, porque, após um curto período inicial de vantagem dos independentistas (Cann, 1998, p. 7), ao terror negro contrapõe-se veementemente o terror branco. (Cann, 1998, p. 56)

A conjuntura portuguesa era complicada, tanto na metrópole como nas colónias. Primeiro, os africanos descontentes com a colonização queriam a independência; segundo, os portugueses da metrópole, descontentes com o aumento do esforço de guerra (material e humano), e com o atraso socioeconómico de Portugal, por falta de investimentos produtivos, começavam a não compreender a teimosia em preservar as províncias ultramarinas (Pinto, 2001, p. 30); terceiro, os militares incumbidos da obrigação de combater os movimentos de libertação (Cann, 1998, p. 58), céticos de que essa fosse a melhor via de negociação, e também descontentes pelo esforço de guerra (Pinto, 2001, p. 30), constituíram um movimento militar, organizado na clandestinidade, designado de Movimento das Forças Armadas (MFA), que executou com êxito o 25 de abril de 1974. Devemos ainda considerar a crise financeira mundial, decorrente do choque petrolífero de 1973, que obrigou ao rigor e à contenção financeira, sobretudo da indústria ligada ao mar (Santos et al., 2012); e ainda o aproveitamento da ex-URSS, que soube criar condições políticas favoráveis e dinamizadoras da sua esfera de influência, tanto na metrópole como nas colónias (ex. embaixador Daniel Solod). (Cann, 1998, p. 44)

Após o 25 de abril de 1974, e na presença de reciproca disposição de negociar, Mário Soares recém-empossado Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório, inicia negociações com os movimentos de libertação para a obtenção de um cessar-fogo nos territórios ultramarinos, o que faz de forma muito dinâmica, no sentido de ultrapassar as imprecisas formulações da nova política ultramarina portuguesa, sustentadas por António Spínola. (Oliveira, 1983, p. 43) Trata-se das primeiras formulações do processo de transferência de poderes, e das dinâmicas políticas, com fundamento na Lei n.º 7/74, de 27 de julho (reconheceu aos povos dos territórios sob administração portuguesa o direito à autodeterminação e independência), que deram resultado, logo em 26 de agosto de 1974, através do acordo Argel, onde Portugal reconheceu a independência do Estado da Guiné. Também nesse mês de agosto se iniciaram as negociações com Moçambique, e na conferência de Moussaka, de 7 de setembro desse mesmo ano, foi agendada a independência total de Moçambique para o dia 26 de junho de 1975.

A transferência de poderes, uma saída atrapalhada das colónias, traduziu-se num clima de instabilidade e violência, e as respostas sociais não se fizeram tardar. Só em Angola, os números oficiais registaram um êxodo de quase 90% dos portugueses, e de muitos naturais que não aguentaram o processo, pelas violências ocorridas, valor onde não estão incluídas as fugas incontroladas pelas fronteiras terrestres, que se sabe terem tido lugar (Heimer, 1980, p. 91). Moçambique mergulhou numa onda de agitação que paralisava quase por completo o sector dos transportes e da indústria, agravando a já de si difícil situação económica. Por exemplo, a luta política pós-independência pelo controlo dos meios de comunicação social, que assumiu várias formas, levou à destruição das instalações e do parque gráfico. (Heimer, 1980, p. 91-92)

 

Parte III – Fundamento, características e objetivos da teoria do luso-tropicalismo

O luso-tropicalismo não é uma “ideologia”, um “conceito”, um “sistema” ou um “método de colonização”, tal como observa Mário Pinto de Andrade (Fele, 1955, p. 7), mas uma teoria que constrói uma interpretação teórica do que terá sido, na opinião devidamente fundamentada de Gilberto Freyre, a integração portuguesa nos trópicos. Esta teoria é aqui relevada pela distinção entre raça e cultura, desde logo, porque permite valorizar em pé de igualdade a contribuição das diferentes raças para a civilização luso-tropical, enquanto uma unidade de sentimento e cultura. (Araújo, 1994)

“Distinguindo raça de cultura e por isso valorizando em pé de igualdade as contribuições do negro, do português e – em menor escala – do índio, nosso autor [Gilberto Freyre] ganha forças não só para superar o racismo que vinha ordenando significativamente a produção intelectual brasileira mas também para tentar construir uma outra versão da identidade nacional, em que a obsessão com o progresso e com a razão, com a integração do país na marcha da civilização (…). Dessa forma, essa terceira posição dará ao Brasil a oportunidade de superar o “inacabamento”, definitivo e temporário, que habitualmente o caracterizava, fornecendo-lhe um passado, minimamente aceitável (…). Reconhecendo o valor da influência dos negros e dos índios, a reflexão desenvolvida por Gilberto parecia lançar, finalmente, as bases de uma verdadeira identidade coletiva, capaz de estimular a criação de um inédito sentimento de comunidade pela explicitação de laços, até então insuspeitos, entre diferentes grupos que compunham a nação”. (Araújo, 1994, p. 28)

Com base na tese da mestiçagem, entre portugueses (simbolizando os europeus), negros e índios (em menor dimensão), Gilberto Freyre lançou as bases da identidade do povo brasileiro, inserindo o seu trabalho nos debates teóricos sobre a identidade nacional do Brasil (Araújo, 1994). Convém referir que, de uma forma transversal, as Teorias da Identidade Nacional seguem duas ideias: (i) procuram as particularidades reais e imaginárias da formação da nação, para que se consigam individualizar perante os outros “nós somos diferentes”; (ii) essas particularidades são objeto de avaliação, que na maior parte das vezes é positiva, mas também pode acontecer de ser negativa. No caso do Brasil, as reflexões iniciais sobre a identidade nacional ocorreram sob o signo do pessimismo, com base no determinismo racial[15] e, por isso, nos anos 1920, o lugar de Gilberto Freyre é central na redescoberta do Brasil e na passagem do pessimismo para o otimismo. Neste processo é central o nativismo e o cosmopolitismo, que coexistem em simultâneo no século XX, e a Semana de Arte Moderna, que aconteceu em São Paulo, em 1922, que simboliza o segundo grito de revolta, agora de independência cultural (o primeiro seria o Grito do Ipiranga, que trouxe a independência política), e marca a rotura com as velhas estruturas oligárquicas dominantes, tornando como objetivo o futuro, o modernismo.

Gilberto Freyre realçou a melhor relação entre o colonizador português e os povos colonizados, por via da miscigenação, e por comparação com outras potências coloniais, onde essa miscigenação era menos significante, lutando contra o determinismo racial, mostrando os benefícios da mistura de raças, o que não deve ser confundido, nem nós o queremos fazer, com a expressão “democracia racial”, um mito atribuído a Gilberto Freyre, mas que nunca é referido na obra Casa-Grande & Senzala (1933), tal como advoga Vianna (2000).

“O escravocrata português (…) foi o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores (…) o menos cruel com os escravos”. (Freyre, 1933 [1957], p. 191)

Neste período, Sérgio Buarque de Holanda (1936), tal como Gilberto Freyre (1933), também tematiza a Identidade Nacional com uma linguagem erudita e culturalista, mas não procura evidenciar se a colonização foi boa ou má, até porque, como já vimos, qualquer colonização é sempre má, mas, antes, se foi bem-sucedida ou não, e os motivos desse sucesso e insucesso. Isto revela as várias posições perante o passado e a perspetiva do futuro. Freyre, com influências de Boas, a escrever a partir do Nordeste, da Casa Grande, enfatiza a mestiçagem e a contribuição positiva dos portugueses; Holanda, com influências de Max Weber, a escrever de São Paulo, do ponto de vista das cidades, crítica o passado, atribuindo aos portugueses a responsabilidade do atraso brasileiro. A constituição da identidade por referência a um outro “nós – outros”, no Brasil far-se-ia com Portugal, comparação historicista, e com os EUA, comparação para a modernidade. Atente-se que, as identidades não existem, o que existe são discursos que formulam as identidades, ao vincarem as singularidades, mostrando que nós somos assim, por comparação com outros, que têm outras características.

A obra de Gilberto Freyre e a teoria do luso-tropicalismo, que visou combater os modelos deterministas raciais que existiam no Brasil, e a própria ideologia salazarista, receberam influências do cenário geopolítico mundial, pelo que, mesmo de forma resumida, não podemos deixar de referir o racismo na Alemanha nazi e nos EUA, que em parte justifica o otimismo com que Freyre observa a realidade da sociedade brasileira, o fascismo italiano e espanhol, a doutrina social católica, e sobretudo o integralismo lusitano, no caso da ideologia salazarista. (Cruz, 1982, p. 137)

A questão do luso-tropicalismo enquanto “modelo ideológico de gestão colonial”, com que iniciamos o trabalho, de certa forma, remete para o assumir implícito de que o luso-tropicalismo influenciou a ideologia colonial portuguesa. E, de facto, influenciou, tal como advoga Cláudia Castelo para o período entre 1933 e 1961, ou seja, entre a publicação de Casa-Grande & Senzala, que coincide com a entrada em vigor da Constituição do Estado Novo (e disposições do Ato Colonial), e o início da Guerra Colonial em Angola e da abolição do Estatuto dos Indígenas. Na apropriação pelo Estado Novo, para resistir às transformações, representava o igualitarismo racial e insistia na realidade pluricontinental e multirracial da nação portuguesa. Para a autora, nesse período, existem dois momentos distintos do luso-tropicalismo: receção inicial (anos 1930/40) e apropriação (anos 1950/60). (Castelo, 1999, p. 13;69)

Gerald Bender, que sustenta a divisão temporal proposta por Castelo (1999, p. 13;69), prolonga a fase de apropriação até ao golpe militar de abril de 1974, referindo que, em todo este período, o luso-tropicalismo foi a ideologia mais fervorosamente aceite pelos portugueses (Bender, 1980, p. 7); mas não a única, acrescentaríamos nós, pois existiram bastantes críticas, nomeadamente de Henrique Galvão, e uma forte ideologia anticolonialista coordenada por nacionalistas como Mário Pinto Andrade, Eduardo Mondlane e, sobretudo, Amílcar Cabral (Sanches, 2011)[16], que, como veremos mais à frente, lutaram veementemente contra o regime português.

Bender também refere que a violência caracterizou o essencial das relações com os africanos, diabolizados pelas suas origens e pelas suas opções culturais, e que essa cresceu com o evoluir da guerra colonial (Bender, 1980, p. 228). No entanto, segundo Freyre, a violência não era característica do luso-tropicalismo (Freyre, 1958), muito pelo contrário, já que realça como positiva a atitude colonizadora portuguesa, quando comparada com a dos europeus boreais para com as gentes tropicais e suas culturas[17]; o que é elucidativo de como existiam várias formas de pensar este conceito, das quais destacamos: (i) a conceção do regime salazarista; (ii) que não é nem tem que ser a de todos os portugueses, nem a do próprio Gilberto Freyre; e (iii) a conceção dos não portugueses. Estas três linhas, sem pretender esgotar o tema, são sequencialmente apresentadas a seguir:

(i) Para Gerald Bender, que escreve na senda de George Ball (1983), o regime acreditava verdadeiramente que a política, a prática e os objetivos eram fiéis ao luso-tropicalismo, e que este constituía uma explicação exata do igualitarismo racial português (Ball, 1983, p. 276-277)[18]. Inclusive, apenas alguns dias antes do golpe de abril de 1974, Marcelo Caetano, Presidente do Conselho de Ministros, declarava oficialmente: “Estamos a lutar em defesa do direito que têm todos os homens de viverem juntos na África e, acima de tudo, defesa da sociedade multirracial que lá formámos” (Bender, 1980, p.7);

(ii) No entanto, tal como nos dá conta Morais & Violante (1987, p. 142-146), alguns portugueses discordavam e denunciavam a política colonial, nomeadamente os abusos humanos. Começamos pelo Capitão Henrique Galvão, inspetor-chefe da Administração Colonial (Cann, 1998, p. 58), que apresentou, em 1947, à porta fechada na chamada Comissão das Colónias, um famoso «Relatório sobre os Problemas Nativos nas Colónias Portuguesas»[19], onde dizia:

“Em certo ponto de vista, a situação é mais grave que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o negro comprado, adquirido como um animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito, como tem em manter são e escorreito o seu cavalo ou boi. Agora, o preto não é comprado, é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer, reclamará outro. Há patrões que têm 35% de mortes entre o pessoal, durante o período do contrato. E não consta que alguém tenha sido privado do fornecimento de mais, quando precisar”. (Almeida, 1979, p. 268-274)

Mário Pinto de Andrade, “a quem Cândido Mendes chamou de “o Simon Bolívar” das colónias portuguesas na África, por ele ter lutado pela independência de todas elas” (Pereira, 2000, p. 1), através do artigo “Qu’est-ce que c’est le luso tropicalism”, que publicou na revista Presènce Africaine, utilizando o pseudónimo de Buanga Fele, crítica de forma irrefutável as teses luso-tropicalistas da assimilação e da integração, que diz não serem válidas para explicar a formação do Brasil, e muito menos as circunstâncias do colonialismo português na África. Para isso, comprova, através dos censos demográficos das colónias, de 1950, que nem sequer 1% da população tinha atingido o estatuto de civilizado, apresentando a Guiné o pior cenário, onde esse número nem sequer excedia 0,3%. (Fele [Mário Pinto de Andrade], 1955, p. 24-35)

Jorge Dias, o maior vulto da Antropologia portuguesa do século XX, nos vários relatórios que resultaram das expedições a Moçambique, no âmbito da Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português, também crítica algumas vezes de forma profunda a gestão colonial portuguesa[20]. Rui M. Pereira, que faz uma interpretação objetiva desses relatórios de Jorge Dias, cita algumas passagens que importa aqui referir:

“O branco habituou-se a considerar-se, de tal maneira, um ser superior, que não dá por nada destas coisas, nem mostra a mínima cortesia ao falar com pretos instruídos ou assimilados, nem muito menos pensa estender-lhes a mão. Desta maneira vai-se cavando um abismo absolutamente desnecessário entre pretos e brancos, que me parece contrário às superiores diretrizes estabelecidas pelos responsáveis.” (…) “Para o comum dos europeus mantem-se a mentalidade colonialista, que considera o negro como mão-de-obra barata e não procura assimila-lo”. (Dias, 1957, p. 60-61. apud Pereira, 1998, p. XLIII)

Através do trabalho de Rui M. Pereira, podemos ainda ler que Jorge Dias, no Relatório de 1957, refere que muitos dos responsáveis residentes no nordeste de Moçambique consideravam que o modelo colonial não se aguentaria mais de vinte anos (Dias, 1957, p. 85. apud Pereira, 1998, p. LII), ou seja, não só critica os abusos dos colonos como recomenda ao regime uma mudança de política, por a existente estar a “autodestruir” a relação com os africanos e, naturalmente, a fazer perder a posição portuguesa em África.

Se alguns portugueses civilizados discordavam, alguns portugueses assimilados encetavam uma profunda luta anticolonialista, desde logo Eduardo Mondlane e Amílcar Cabral, que resolveram aquilo a que António Tomás chama uma profunda contradição: a de se sentirem “negros e portugueses ao mesmo tempo” (Tomás, 2007, p.67). Estes denunciaram o conceito de civilizado (colono), de assimilado e de indígena (Pereira, 1998, p. XV)[21], e de como esta segregação agravou conflitos étnicos devido a desigualdades raciais (Sanches, 2011)[22]. Estes importantes nacionalistas dos territórios coloniais, que foram a maior oposição ao luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, lutavam contra o racismo existente na elite intelectual portuguesa, nomeadamente contra: Mendes Correia, ilustre antropólogo físico da Universidade do Porto, que repudiava taxativamente a miscigenação (Castelo, 1999, p. 112-114); Marcelo Caetano que, em meados dos anos 1950, referia que os indígenas eram meros recetores, passivos e dirigidos, que não tinham nada para dar à troca a não ser o seu trabalho (Castelo, 1999, p. 124); António Enes e Mouzinho de Albuquerque, administradores coloniais, no exercício das suas funções, sempre mostraram um linguajar carregado de conceitos racistas, sempre apontando para uma desigualdade entre portugueses e africanos (Sanches, 1970, p. 333-354)[23]. Mas distingamos Amílcar Cabral, fundador do Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde, expoente máximo da luta anticolonialista, defensor de que os africanos deveriam encarar a luta armada como instrumento de unificação e de progresso cultural, porque esse sim, compensava a derrota da cultura do colonialismo. (Cabral, 1970)

Por outro lado, também não era nem teria necessariamente de ser essa a essência do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, que tinha fundamento num multiculturalismo com o denominador comum de uma língua como pátria (Martins, 2004, p.7), ou seja, valorizava os diferentes contributos (africanos, ameríndios, orientais e europeus) para a civilização comum, luso-tropical, bem como a unidade de sentimento e de cultura (Castelo, 1999, p. 139). Essa foi a forma encontrada pelo regime, veiculando uma versão simplicista e manipulada da tese gilbertiana (Castelo, 1999, p. 139), para mostrar ao mundo quanto amistosa era a “missão civilizadora portuguesa”, e sobretudo, que era determinante para libertar os indígenas da barbárie[24]; uma retórica que ocultava os interesses politico-ideológicos conjunturais, e os interesses económicos nas riquezas naturais e minerais africanas por parte do Estado Novo. (Castelo, 1999, p. 14; Jerónimo, 2009)

(iii) No oposto, os não-portugueses consideravam que o luso-tropicalismo exprimia um mito que ignorava as realidades de arrogância racial, genocídio cultural, degradação humana e exploração (Bender, 1980, p. 21). Para estes, a teoria luso-tropicalista, a ser amplamente filantrópica e potenciadora de uma sociedade multirracial, teria condicionado a revolta do norte de Angola; o que não aconteceu, tendo esta nascido do desespero e da raiva, que refletia o instinto elementar do homem espoliado, a quem, durante toda a vida, se negam todos os direitos[25], e também como resposta às brutalidades na Baixa do Cassange (Carvalho, 2001, p. 122.). Aliás, Gerald Bender rótula de utópico o luso-tropicalismo, por considerar que não pode existir harmonia racial numa sociedade multirracial em que os indivíduos de uma raça se consideram a si mesmos superiores e querem pela força dominar aqueles que julgam inferiores, ou alterar comportamentos e transformar as estruturas sociais dos povos dominados, algo que o autor diz ter acontecido nas colónias portuguesas por todo o mundo (Bender, 1980, p. 295). Tal reflete-se no trabalho de Rui M. Pereira, no sentido de que eram os portugueses que queriam civilizar os africanos, e por isso vangloriavam a sua missão civilizadora; algo que apregoavam… mas nunca fizeram, até porque “poucos africanos estavam interessados em «civilizar-se»” (Pereira, 1998, p. XV). Não obstante, ao acontecer, essa representava a vontade do colonizador, e do seu poder face à cultura dominada, concessão que embatia nos desígnios do luso-tropicalismo.

Na linha do referido na Parte II, importa refletir sobre uma questão: se os parceiros internacionais de Portugal não se opusessem à manutenção do império colonial, nomeadamente os EUA, liderados pelo Presidente John F. Kennedy, e a ex-URSS, ter-se-ia o Estado Novo associado e/ou apoiado no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre? Julgamos que era muito difícil de acontecer, com base no seguinte, mais uma vez sem esgotar o tema:

(I) Sabemos que nos anos 1930-40 as teses de Freyre não tiveram qualquer aceitação oficial junto do regime português (Castelo, 1999, p. 84) e, inclusive, foram criticadas por vários ideólogos do regime[26]; o que se justifica pelo facto do regime estar em processo de afirmação, e defender ideais contrários aos desígnios desta doutrina (Bastos, 1998, p. 422). Só a partir dos anos 1950 é que o luso-tropicalismo foi “incorporado e adaptado pelo discurso oficial do salazarismo” (Castelo, 1999, p. 69), altura em que o regime estava a ficar isolado, sem parceiros nem apoios internacionais. (Cann, 1998, p. 59-60)

(II) Sabemos que George Ball, na sua visita de agosto de 1963, escreveu que Salazar era reacionário: não aceitava “alforriar” as colónias e ainda considerava que o Brasil tinha recebido a independência demasiado cedo[27], entre muitos outros motivos já explanados (Ball, 1983, p. 226-277). Assim, o luso-tropicalismo poderá ter sido uma forma de escape determinante para abrandar a pressão externa, e para convencer os parceiros internacionais da necessidade de preservar os seus territórios ultramarinos.

(III) Sabemos que Salazar estava obstinado a «civilizar os selvagens» e também a isolar a «raça portuguesa» (nós ou eles), porque considerava que a miscigenação tinha consequências negativas e que os mestiços eram biologicamente inferiores[28]; o que ia totalmente contra os desígnios da doutrina luso-tropicalista, desde logo, porque defendia o igualitarismo racial (Alexandre, 1979, p.7).

(IV) Quando Gilberto Freyre foi convidado pelo ministro português do Ultramar para viajar pelo império e escrever as suas impressões, lamentou-se por não ter sido convidado vinte anos antes, “(…) quando a energia juvenil lhe permitiria percorrer os espaços lusos” (Bastos, 1998, p. 422); mesmo que o tenha referido em jeito de ironia, a expressão não esconde a vontade de que as coisas tivessem sido diferentes, ou seja, que esse reconhecimento tivesse chegado mais cedo. De facto, o convite surgiu tardiamente, e ainda assim com exigências quanto ao programa da visita, procurando o Ministro do Ultramar evitar a ida de Freyre a Timor. Podemos perceber que foi uma visita forçada, realizada não de acordo com o tempo de Freyre, mas sim do regime, no fundo, uma estratégia do governo português para reverter a seu favor o prestígio internacional de Gilberto Freyre, e assim mostrar aos parceiros internacionais a natureza diferenciadora da colonização portuguesa. (Castelo, 1999, p. 89;96)

(V) Podemos ainda indagar se Gilberto Freyre estava consciente de que o convite do governo português era “interesseiro” e visava exclusivamente atingir objetivos de política externa. De facto, é provável, e por isso o ter recusado por duas vezes, por considerar que poderia ser comprometedor, e só não o recusou uma terceira vez porque tal gesto seria considerado uma afronta. Não podemos negligenciar que era um dos críticos do regime, ainda que bastante moderado. Criticava sobretudo as práticas racistas da Companhia de Diamantes de Angola[29], e de outras companhias ou empresas, que injuriavam os valores humanos[30], bem como a existência de censura, que por ironia o atingiu, quando foi “dissuadido” a não visitar Timor durante a viagem aos territórios ultramarinos (Castelo, 1999, p. 89). Também sabia que não podia agradar a todas as frações na sua viagem, o que de facto aconteceu, tendo sido amplamente criticado pelo comandante Vilhena, de quem foi acusado de errar ao desvalorizar a questão do crioulo enquanto instrumento literário. (Castelo, 1999, p. 93)

 

Considerações Finais

A doutrina do luso-tropicalismo[31], apadrinhada pelo Estado Novo, explicava o “sucesso” da expansão portuguesa pelo carácter cristocêntrico do povo português, pela predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata, e pela capacidade que mostrou para se unir aos povos das regiões tropicais através da miscigenação e interpenetrarão cultural, assente em três abordagens: miscigenação (facilitada pela apetência para a mobilidade e aclimatabilidade), reciprocidade cultural e “missão” evangelizadora. Ainda, postulava como verdadeira e positiva a realidade pluricontinental e multirracial da nação portuguesa (Cabral, 2010, p. 11), e apresentava o colonialismo português como o mais filantrópico de todos, com base no primado da efetiva integração (por parte do colonizador) de fatores de diferenciação (sociais, raciais, culturais, políticos, económicos, gastronómicos, educacionais, de indumentária, princípios de medicina tradicional, etc.). (Pereira, 1998, p. XXX)

O aparente apoio do regime a esta doutrina, nomeadamente através do convite a Gilberto Freyre para visitar as colónias portuguesas, como que para aferir a validade do modelo (Pereira, 1998, p. XXX), foi uma forma interesseira que o regime encontrou de manipular a seu interesse a tese gilbertiana quando começava a ficar isolado (Ball, 1983, p. 226-277; Rodrigues, 2003, p. 22-27; Cann, 1998, p.59-60), nos anos cinquenta e sessenta (Martins, 2004, p.7), o que é justificado pelo facto de esta doutrina nunca ter sido verdadeiramente incorporada no discurso oficial do regime, que se manteve sempre profundamente nacionalista (Castelo, 1999, p. 139). Tal como expusemos, se não fosse tão intensa a oposição anticolonialista internacional, sobretudo por parte dos EUA, dificilmente o Estado Novo inspiraria a defesa do império colonial com base no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre.

O luso-tropicalismo nunca foi incorporado plenamente no discurso oficial, contrastava em grande medida com a prática de gestão colonial, e o regime salazarista só usou o luso-tropicalismo para justificar a persistência do sistema colonial quando se intensificaram as pressões externas. Não passou de uma aspiração, de um mito, “inventado de costas voltadas para os factos históricos e para a realidade concreta” (Castelo, 1999, p. 140), que “forneceu ao regime um sustento ideológico de grande rentabilidade política e a que grande parte da intelligentzia portuguesa se rendeu acriticamente, ou por desconhecimento da situação do terreno, ou por conveniência e conivência política” (Pereira, 1998, p. XXXI). Tanto é que, acabou-se a submissão a um regime político colonial, mas continuaram a persistir formas de colonização económicas e ideológicas.

 

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*  Trabalho realizado no âmbito da UC de Antropologia e Colonialismo, pertencente à Licenciatura em Antropologia, frequentada na FCSH/UNL.

[1]  A colonização e o imperialismo são fenómenos que já vêm da Antiguidade Clássica. Depois deste período, só se ouve o termo colono e colonização depois do séc. XI, salvo situações pontuais em Veneza e Génova. (Ferro, 1996)

[2]  Em 1568, é oficializado pelo governador Salvador Corrêa de Sá o tráfico de escravos africanos. Cada senhor de engenho de açúcar ficou autorizado a comprar até 120 escravos por ano. Eles substituem, nas grandes plantações, os indígenas, considerados ineficientes para o trabalho agrícola. Com isso fica garantido um custo competitivo dos produtos para o mercado externo. O próprio tráfico torna-se um negócio lucrativo para os portugueses.

[3]  O papel dos negros e dos índios é complexo, porque, enquanto as leis portuguesas proibiam a escravatura de índios, com algumas exceções, a escravidão africana era comummente aceite, até porque, em África, os senhores negros tinham direito de vida e morte sobre os seus escravos, escravizavam e vendiam os inimigos que capturavam em guerras e, muitas vezes, os seus próprios súbditos (Lacombe, 1979, p. 48). Tal como advoga Ferro (1996, p. 104-108), apesar de tudo e ao contrário do que acontecia aos negros, os índios eram indivíduos livres.

[4]  Balandier (1955) cristaliza a definição de colonialismo, isto é, apresenta a primeira definição, a mais holística, que abrange os vários campos das Ciências Sociais, e desmistifica a existência de processos de colonialismo melhores ou piores, porque, considera o autor, ainda que a forma de colonizar varie de acordo com os condicionalismos locais, a essência de todos os processos coloniais é a mesma.

[5]  Richard Wright, após presença em Bandung, em 1955, publica, no ano a seguir, este trabalho onde arrasa de críticas todos países Ocidentais, responsabilizando-os pela ignorância e pobreza dos povos coloniais.

[6]  “A humilhação e o rebaixamento de que os africanos negros foram vitimas, por razões raciais, no curso dos séculos, contribuíram a levá-los a se reconhecerem mutuamente como “irmãos africanos”. (Mazrui & Wondji, 2010, p. 11)

[7]  Segundo Pereira (1998, p. XI), não existiu qualquer movimentação significativa de reivindicação de autonomia politica nas colónias até 1960, e fundamenta-se em Pélissier (1978), La colonie du Minotaure. Nationalismes et révoltes en Angola (1926-1961), ed. Pélissier, Orgeval, p. 235, quanto à “geração silenciosa” dos anos 50. No entanto, mesmo em concordância, temos de considerar a forte emergência de partidos/movimentos políticos nesta década, de que é exemplo a criação do Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (1953), primeiro partido político a reivindicar a independência de Angola, formado por separatistas angolanos, bem como as reiteradas comunicações destes movimentos de libertação direcionadas a Oliveira Salazar, inclusive o “ultimato” que lhe foi dirigido pela União dos Povos de Angola (UPA), antes do início da guerra colonial, que visava a saída dos portugueses de Angola, e que foi negligenciado. Tudo situações que reforçam o intuito de autonomia política, ainda que não nutram o impacto do massacre de fevereiro de 1961, na zona sublevada do Norte de Angola. As pressões dos movimentos de libertação eram constantes, mas Salazar menosprezava a sua capacidade de luta. Aliás, isso justifica a imensa mortandade inicialmente no Uíge, Zaire e Cuanza Norte, porque o regime não estava à espera nem estava preparado para a Guerra, e sobretudo porque pensava que a UPA estava a fazer “bluff”. Em suma, pressões para a autonomia política existiram, mas foram todas desconsideradas e/ou ocultadas pelo regime, como foi ocultado aos portugueses o início da guerra colonial (Salazar comunicou tratar-se de um pequeno conflito na fronteira), ou depois a natureza do conflito (não se designava de guerra mas antes de ações de policiamento contra bandidos e terroristas), e o já referido sentimento de Homem espoliado traduziu-se num tremendo massacre à catanada (de brancos, pretos e crianças). Se as ameaças tivessem sido encaradas com o devido respeito, como reivindicações de autonomia politica que eram, poderiam ter sido evitados 13 anos de guerra.

[8]  Não obstante, a parte ocidental da ilha de Nova Guiné (Nova Guiné Holandesa) permaneceria holandesa até 1962.

[9]  Quando a Indonésia rompeu a união com a Holanda e se aproximou dos estados Sudeste Asiáticos para efeitos de cooperação económica, afastando-se da influência europeia sem perder integridade.

[10]  Estiveram presentes cinco países africanos (Egipto, Líbia, Libéria, Etiópia e Sudão) e representantes da Costa do Ouro, ainda colónia britânica, mas que se tornaria independente dois anos depois, passando a chamar-se Gana.

[11]  Inclusive, ao longo da década de 1960, os EUA e a Grã-Bretanha vão deixar de vender armamento que possa ser enviado para as colónias por uma questão de princípios e, neste sentido, Salazar é forçado a procurar novos apoios internacionais, destacando-se a França do general De Gaulle, a Alemanha Federal, a Bélgica, a Itália, a Espanha, a África do Sul, a Rodésia e, em determinado momento, a Líbia.

[12]  “Os africanos estavam sujeitos a um imposto de capitação, cujo principal objetivo era forçá-los a trabalharem para os brancos. Até ao início da década de 60 do séc. XX, tal imposto correspondia ao trabalho pago ao nível do salário mínimo por um período de dois meses e meio a quatro meses. Os colonos tinham muita dificuldade em admitir que um africano, negro ou mestiço, pudesse ganhar tanto como um branco”. (Mateus & Mateus, 2011)

[13]  Num ensaio antropológico sobre cultos afro-brasileiros, em que é objeto evidenciar a excessiva africanização a que foi submetido o candomblé, tese até então mais trabalhada pelos cientistas sociais, Dantas realizou várias entrevistas a uma mãe-de-santo designada de Bilina, de um terreiro “Nagô Puro” do Sergipe; o que aconteceu no início da década de 70 do séc. XX, portanto várias gerações após o fim da escravatura. No entanto, no que a este estudo importa, salienta-se que apesar de esta mãe-de-santo representar a terceira geração sem escravatura, ainda revela estar muito ligada à dureza da submissão colonial em África, já que o autor refere que as “(…) suas representações de África se constroem num mundo dividido entre branco dominantes e negros dominados”. (Dantas, 1988, p. 70)

[14]  Em 9 de junho de 1961, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma moção que aconselhava Portugal a cessar a sua defesa em Angola.

[15]  No século XIX, e em boa parte do século XX, culpou-se o racismo pela sociedade hibrida, mestiça e doente. O determinismo racial seria substituído pelo determinismo económico.

[16]  SANCHES, Manuela Ribeiro (Org.), Malhas que os Impérios tecem – Textos Anticoloniais Contextos Pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2011. Em particular, nesta obra referimo-nos ao texto de Eduardo Mondlane “A estrutura social – mitos e factos” (pp. 333-354), de Amílcar Cabral “Libertação nacional e cultura” (pp. 355-377), e de Mário Pinto de Andrade “Prefácio à Antologia Temática de Poesia Africana” (pp. 185-197).

[17]  “Quando os Ocidentais chamam a um povo europeu «indígena» colocam-no fora de sua compreensão e consideram-no semelhante a animais selvagens (…). Esta tem sido na verdade a atitude tipicamente europeia da parte dos europeus boreais para com as gentes tropicais e suas culturas; mas não a atitude característica portuguesa”. (Freyre, 1958, p. 44)

[18]  Como já vimos, George Ball corrobora desta ideia, ao afirmar que Oliveira Salazar governa Portugal com base em pressupostos dos tempos dos descobridores portugueses, ou seja, tem uma visão retrógrada.

[19]  Salazar baniu o relatório e prendeu o Capitão sob acusação de traição, em 1952. (Boahen, 2010, p. 416)

[20]  Este terá sido um dos fatores que condicionou que Jorge Dias a voltar a Moçambique: “por questões de segurança, é certo, mas também porque, seguramente, o regime, perante a consumação da instabilidade social e politica, acharia gratuito prosseguir no patrocínio de estudos que se queriam preventivos, não voltou Jorge Dias a trabalhar entre os macondes e outras etnias do norte de Moçambique”. (Dias, 1958. apud Pereira, 1998, p. XLIII)

[21]  Segundo o autor, na realidade colonial, esta estratificação era ainda mais acentuada pelo próprio regime.

[22]  Em particular, nesta obra referimo-nos ao texto de Eduardo Mondlane “A estrutura social – mitos e factos” (pp. 333-354), de Amílcar Cabral “Libertação nacional e cultura” (pp. 355-377), e de Mário Pinto de Andrade “Prefácio à Antologia Temática de Poesia Africana” (pp. 185-197). Tal como refere Pereira (1998, p. XV), eram muitas as diferenças entre civilizado e assimilado, e muitas as dificuldades para quem não era civilizado, mas que pretendia obter esse estatuto social: “em primeiro lugar, poucos africanos estavam interessados em «civilizar-se»; depois, aqueles que desejavam tal estatuto confrontavam-se com toda uma série de obstáculos: perda de enquadramento social, por impedimento legal de acesso pleno ao contexto cultural de origem; sobrecarga fiscal, tão mais gravosa quanto não era fácil obter um emprego no mercado de trabalho «civilizado», em concorrência com os europeus pobres e os mestiços; por último, a obtenção do estatuto de «civilizado» era manifestamente dificultada pela morosidade e pelos custos do processo, não sendo de excluir, igualmente, uma certa seletividade política”.

[23]  Referimo-nos ao texto de Eduardo Mondlane “A estrutura social – mitos e factos”.

[24]  Recorde-se que, tal como já referimos, depois da revolta no norte de Angola (fevereiro de 1961), este foi um dos argumentos utilizados por Salazar para legitimar a Guerra Colonial.

[25]  O Estatuto do Indigenato determinava os direitos (ou “deveres”!) dos indígenas das colónias portuguesas, e foi aprovado em 1926, através do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique: Decreto n.º 12533, de 23 de outubro de 1926, Boletim Oficial da Província de Moçambique, n.º 48, 1ª. série, de 27 de novembro de 1926, p. 351-353, tendo sido abolido com a aprovação do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias Ultramarinas, Decreto-Lei nº. 43 893, de 06 de setembro de 1961, por Adriano Moreira, enquanto Ministro do Ultramar. Com a abolição do indigenato, os cidadãos nativos das colónias passariam a ser cidadãos portugueses de pleno direito; pelo menos no plano formal e jurídico, já que na prática continuou a existir discriminação, por exemplo na identificação civil, feita por bilhete de identidade para os antigos cidadãos e por cartão de identidade para os que eram indignas, conforme advoga Mondlane (1995, p. 46).

[26]  “Armindo Monteiro e demais ideólogos do regime partem do postulado da inferioridade da «raça» negra e repudiam a ideia de mestiçagem e de interpretação de culturas no império português. Registe-se, contudo, que Norton de Matos, do lado da oposição, também rejeita a doutrina luso-tropicalista. A crença na superioridade da civilização europeia impede-o de considerar a possibilidade de aculturação em África”. (Castelo, 1999, p. 138)

[27]  Salazar era uma personagem reacionária que encabeçava um regime sectário, que defendia princípios ultraconservadores, contrários à evolução política, ou social e, como tal, não lhe passava pela cabeça a possibilidade de conceder o direito à autodeterminação às colónias. De facto, isso era impensável para Salazar, que chega ao cúmulo de afirmar em conversa com George Ball, em agosto de 1963, que o Brasil tinha recebido a dependência demasiado cedo.

[28]  Um dos principais vultos que se insurgia contra a mestiçagem era Vicente Ferreira, Ministro das Finanças e Colónias durante a República, que considerava que produzia efeitos nefastos, nomeadamente degenerescências dos caracteres psíquicos, não aceitando o erro cometido nos primeiros tempos de colonização do Brasil (ou seja, também é contra a mistura racial do Brasil que Gilberto Freyre tão afincadamente defendia). Vicente Ferreira apoiava-se na Teoria da Degeneração ou da Degenerescência, baseada no pressuposto que haveria progressiva degeneração mental, conforme se sucedessem as gerações: “nervosos gerariam neuróticos, que produziriam psicóticos, que gerariam idiotas ou imbecis, até a extinção da linhagem defeituosa”. (Oda, 2001, s/p)

[29]  Tais práticas racistas, bem como outras formas de descriminação, quer entre brancos e negros, ou brancos de primeira e portugueses de segunda (nascidos nas colónias de imigrantes portugueses), estão visíveis no documentário de Diana Andringa sobre a exploração humana e discrepâncias sociais no Dundo, na margem esquerda do Rio Luachimo, que era o principal centro administrativo da DIAMANG, na Lunda. A realizadora considera mesmo existir aí um “appartheid” não declarado. (Diana ANDRINGA [realizadora], (2009), Dundo, Memória Colonial. Documentário de 60 minutos produzido pela LX Filmes, Portugal)

[30]  Estas companhias atuavam com superior autoritarismo, tal como o faziam as antigas companhias majestáticas ainda que, durante o salazarismo, a administração colonial fosse mista. Cobravam a palhota, exportavam mão-de-obra para as plantações e para as minas da África do Sul e utilizavam o trabalho forçado não pago com frequência nas machambas dos administradores.

[31]  Para seguir o critério de Bastos (1998, p. 415): “Menos que teoria, talvez doutrina, o luso-tropicalismo (…)”.

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2014-11-01
577-604
8505
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Mestre

Marco Pais Neves dos Santos

Doutorando em Desenvolvimento Social e Sustentabilidade na Universidade Aberta. Técnico Superior na Direção de Qualificação e Licenciamento (DQ) do Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P. (InCI, I.P.).

REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia