Nº 2553 - Outubro de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A arma que mudou a guerra
Coronel da Força Aérea dos EUA (na reserva)
Dr. Matthew_M_Hurley

José Matos

1. O surgimento do míssil

O poder aéreo na Guiné era a grande vantagem que as forças portuguesas possuíam contra as tropas da guerrilha. Os guerrilheiros não tinham aviação e também não tinham armamento antiaéreo que fosse capaz de impedir a livre circulação dos meios aéreos portugueses na Guiné. Essa vantagem das forças portuguesas desparece, no entanto, em Março de 1973, quando os misseis terra-ar Strela-2M de fabrico soviético causam as primeiras baixas na Guiné, com o abate de dois caças Fiat G.91 da Força Aérea Portuguesa (FAP). O primeiro é abatido no dia 25 de Março, na zona de Guileje, no sul da Guiné, muito perto da fronteira com a Guiné-Conakry. O piloto, o tenente Miguel Pessoa, não se apercebe do míssil, mas consegue ejectar-se e é recuperado[1]. Três dias mais tarde, a 28 de Março, outro Fiat, desta vez pilotado pelo tenente-coronel Almeida Brito, também é abatido no sul da Guiné. O avião de Almeida Brito explode no ar provocando a morte do piloto[2]. Na semana seguinte, a 6 de Abril, a Força Aérea perde ainda dois aviões ligeiros de transporte DO-27 e um avião de ataque ligeiro T-6G, juntamente com os respectivos pilotos, devido à acção do míssil[3]. Para as tropas portuguesas é uma escalada na guerra com a qual não estavam a contar. Para o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) é a derradeira arma para vencer a guerra.

A gravidade da situação surge bem espelhada numa informação que o Inspector-Adjunto Fragoso Allas, chefe da delegação da Direcção-Geral de Segurança (DGS), na Guiné, envia para Lisboa, a 9 de Abril, sobre a perda de vantagem da Força Aérea.

“Não dispomos de meios aéreos que possam constituir uma força de dissuasão ou que nos permitam castigar duramente as bases de apoio, temos que encarar como muito possível que o PAIGC venha num muito curto prazo de tempo a estabelecer novas áreas libertadas, e dificultar ou impedir o tráfego aéreo e até mesmo a aniquilar algumas guarnições que agora passaram a não poder contar com o apoio aéreo para as defender, evacuar os feridos e reabastecer.”

E mais à frente acrescentava: “Consideramos muito grave a situação resultante do emprego pelo PAICG de novas armas antiaéreas” [4]. Na mesma data, a DGS, em Lisboa, tem já informação sobre o míssil, obtida através dos Serviços Secretos Alemães (BND), que a envia ao Secretariado-Geral da Defesa Nacional (SGDN)[5]. Pouco tempo depois, esta informação é difundida pelas três frentes de guerra. Entretanto, o Comando da Zona Aérea da Guiné (COMZAVERDEGUINE) começa a tomar as primeiras medidas cautelares para minorar a ameaça da nova arma.

 

2. A introdução do míssil na Guiné

Não se sabe com precisão a data em que o míssil chegou à Guiné, mas testemunhos de protagonistas do PAIGC envolvidos directamente no processo, como Luís Cabral, apontam no sentido de que os primeiros mísseis chegaram à Guiné depois da morte de Amílcar Cabral, que ocorreu a 20 de Janeiro de 1973[6]. No mesmo sentido, aponta uma análise pericial feita pelas autoridades americanas aos fragmentos de um SA-7 recolhidos na Guiné, que refere Fevereiro de 1973 como data de fabrico do míssil[7]. É interessante registar a este nível a cooperação que se estabeleceu entre os EUA e Portugal com vista à identificação do míssil.

Com efeito, uma parte do míssil encontrada no norte da Guiné é analisada na embaixada dos EUA, em Lisboa, por técnicos americanos que se deslocam à capital portuguesa, em meados de Maio. O exame pericial feito na embaixada americana conclui que os vários fragmentos recolhidos até então correspondem a uma versão aperfeiçoada do SA-7 (Strela-2M), desconhecida nos países ocidentais e fabricada em Fevereiro de 1973[8]. Juntamente com esta peritagem é entregue, a 25 de Maio, no SGDN, um manual técnico da Missile Intelligence Agency (MIA) sobre o míssil, que permite, finalmente, às autoridades portuguesas, conhecer a fundo as características e performances das versões conhecidas do SA-7[9].

Pouco tempo depois, em Junho, a secção de propulsão do míssil e um dos conjuntos electrónicos são enviados a título definitivo para os EUA, para uma peritagem mais exaustiva, que originará depois um relatório técnico da Defense Intelligence Agency (DIA). A 11 de Setembro, a DIA envia, de Washington para o adido de defesa da embaixada americana em Lisboa, as conclusões da peritagem. A agência informa que estamos perante uma versão do míssil com um sistema de propulsão melhorado, que permite aumentar a velocidade do SA-7 em 20-25%, assim como a sua manobrabilidade, o que aumenta a capacidade do míssil dentro do seu envelope de intercepção contra aeronaves de elevada performance[10]. Tudo indica que o modelo analisado era o Strela-2M ou SA-7B Grail Mod. 1, introduzido na União Soviética, em 1971, e desconhecido no Ocidente[11]. Desta forma, podemos concluir que o PAIGC foi o primeiro movimento de guerrilha a usar esta nova versão do míssil. No Vietname, de 1972 a 1973, este tipo de míssil só tinha sido usado ​​pelas forças regulares norte-vietnamitas, e não pelos guerrilheiros vietcongues.

 

3. As primeiras medidas cautelares

Ultrapassada a fase de surpresa inicial, realizada a análise das perdas sofridas e deduzindo, ainda que empiricamente, o funcionamento da nova arma, dada a escassez de informação, o COMZAVERDEGUINE introduz uma série de condicionamentos nas missões realizadas pelas diversas aeronaves. As primeiras medidas cautelares são adoptadas em meados do mês de Abril e implicam uma série de restrições de voo à Força Aérea, que afectam obviamente o apoio que a FAP prestava às unidades do Exército. Neste capítulo, a reacção portuguesa não foi muito diferente da reacção da Força Aérea americana (USAF) e sul-vietnamita no Sudeste Asiático, quando são confrontadas com este míssil, em 1972[12]. Perante a ameaça, os aviões americanos adoptaram novos parâmetros de voo fora do alcance do míssil[13]. A FAP fez a mesma coisa. Podemos ver agora as primeiras medidas cautelares que foram adoptadas pelos pilotos na Guiné em função do tipo aeronave:

– T-6G – Cancelamento das missões de apoio próximo às forças terrestres e de ataque ao solo de natureza independente;

– Fiat G.91 – Execução apenas de missões de bombardeamento a picar (BOP) e de metralhamento a picar (MAP), com entrada a 10 000 pés (3300 m) e saída a 3000 pés (990 m);

– DO-27 – Cancelamento das missões de Reconhecimento Visual (RVIS) e de Posto de Controlo Volante (PCV). Redução das missões de TGER e de TEVS (Transportes Gerais e Evacuação);

– Noratlas – Execução de missões de transporte limitado a 3000 kg de carga, a fim de assegurar a maior razão de subida das aeronaves dentro da zona de segurança garantida pelas forças terrestres. Canceladas as missões de lançamento de cargas aéreas;

– C-47 Dakota – Execução de missões de transporte aéreo limitado a 1500 kg de carga;

– Alouette III – Execução de missões de TGER e TEVS por duas aeronaves, a baixa altitude, uma limpa e a outra armada para protecção do conjunto e de apoio de fogo das tropas e do meio aéreo de TEVS, na zona de operações das forças terrestres. Execução de missões de TGER apenas para pistas interditas ao DO-27.

Entretanto, o Comando da Zona Aérea e a DGS na Guiné conseguem obter mais informações sobre o míssil através do testemunho de ex-guerrilheiros que desertaram para o lado português. É o caso de Tcheto Candé, que fornece informações importantes sobre a localização dos vários grupos de mísseis e dos elementos que os comandam[14] e também de Armando Baldé, que dá várias informações sobre o funcionamento do SA-7 e das tácticas usadas pelos grupos de atiradores contra os aviões da FAP[15].

 

4. A redução da actividade aérea

Gráfico 1 – Exploração Operacional, em Abril de 1973

 

Além da perda de aviões e de pilotos, o míssil afecta também a actividade aérea da FAP. Através da análise dos SITREP (relatórios de situação) da época verifica-se que a actividade aérea na Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (ZACVG) sofre uma redução muito acentuada na segunda semana de Abril (57% em termos de exploração operacional), embora depois se assista a uma progressiva normalização[16].

Como se pode ver pelo primeiro gráfico relativo à exploração operacional, no final do mês de Abril, as várias aeronaves da ZACVG atingiram já os níveis de actividade do começo do mês, o que significa que a FAP se adaptou à nova ameaça, embora com uma série de restrições operacionais. Pelo gráfico podemos ver que a viragem acontece na terceira semana de Abril, quando as medidas cautelares começam a ser aplicadas. As novas normas de voo e as tácticas defensivas adoptadas são depois objecto de uma directiva do Comandante-Chefe da Guiné, general António Spínola, que, a 29 de Maio, emite a Directiva 20/73, que estabelece definitivamente todos os procedimentos antimíssil a tomar, bem como as normas para os pedidos e acções de apoio aéreo[17].

 

5. O impacto do míssil nos diferentes tipos de missões

Como já foi dito, através da análise dos SITREP da ZACVG podemos ver facilmente a evolução dos diferentes tipos de missões em qualquer período de 1973[18]. Vamos agora analisar o que aconteceu ao longo do ano. Para uma melhor compreensão dos gráficos apresentados de seguida e elaborados a partir dos dados disponíveis nos SITREP, faz-se aqui uma pequena explicação das abreviaturas utilizadas nos mesmos:

– ATIP – Ataque Independente Preparado

– ATIR – Ataque Independente em Reconhecimento

– ATAP – Ataque de Apoio Próximo

– AESC – Ataque em Escolta

– TMAN – Transporte de Manobra

– TGER – Transportes Gerais

– TEVS – Transporte de Evacuação

Gráfico 2 – Acções aéreas de ataque, de Março a Dezembro de 1973

 

Começando pelas missões de ataque, podemos observar no gráfico 2, relativo às acções aéreas de ataque, que há alguma quebra em Abril e nos três meses seguintes, com excepção de Maio, em que se regista um pico de actividade provocado pela crise militar de Guidage e Guileje. De facto, Maio é um mês crítico na Guiné com fortes ataques da guerrilha contra estes dois quartéis. No entanto, como se pode ver pelo gráfico 2, a partir de Agosto, as missões de ataque da FAP aumentam de forma visível atingindo níveis superiores aos de Março. Este aumento deve-se, principalmente, ao uso mais intensivo do Fiat G.91 a partir de Agosto, que desempenha um papel importante na resposta à guerrilha. De salientar também o pico de actividade em Outubro, um mês em que a guerrilha esteve pouco activa. Por outro lado, além do Fiat G.91, um avião C-47 de transporte é adaptado para missões de bombardeamento nocturno podendo levar bombas de 15 kg, que são depois atiradas à mão por uma abertura na fuselagem na barriga do avião usada habitualmente para instalar máquinas fotográficas. Embora não fossem bombardeamentos de precisão, tinham um efeito psicológico grande sobre a guerrilha. Podemos assim concluir que a Força Aérea manteve e até aumentou as suas acções ofensivas, apesar da presença do míssil.

Vamos agora analisar as missões de transporte muito relevantes no abastecimento dos quarteis do Exército. No que diz respeito a estas missões, a quebra é evidente até Setembro aumentando a partir daí, embora nunca se alcance o número de acções registado em Março. A redução é mais significativa nas missões TGER, importantes no abastecimento das diversas unidades do Exército espalhadas pela colónia.

Gráfico 3 – Acções aéreas de transporte, de Março a Dezembro de 1973

 

Relativamente às missões TEVS de evacuação de feridos, convém referir que atingem o pico máximo em Maio, durante a já referida crise militar que ocorreu nesta altura. Os Alouette III desempenham, neste âmbito, um papel importante com 102 acções TEVS, no mês de Maio, sendo seguidos pelo DO-27 (87 acções) e pelo Noratlas (26 acções)[19]. No entanto, apesar deste pico de actividade em Maio, as unidades mais atacadas pela guerrilha neste período ficam sem evacuação aérea, pois os Alouette III experimentam severas dificuldades em actuar nessas zonas, devido à proximidade entre as forças em confronto, não permitindo que as forças portuguesas assegurem pequenas áreas de aterragem para os helicópteros, livres de tiroteio ou da queda de granadas de morteiro. Além disso, quando os guerrilheiros detectam a presença dos helicópteros, bombardeiam os quartéis ou as pistas. Os aviões ligeiros como o DO-27 também não podem actuar neste cenário, o que provoca graves dificuldades às unidades atacadas.

Gráfico 4 – Actividade operacional do Alouette III, em 1973

 

Convém, no entanto, referir que a Força Aérea não desistiu da utilização dos helicópteros. Na verdade, para proteger os helicópteros TEVS, decidiu aumentar a protecção armada a estes aparelhos, que começaram a ter dois Alouette III armados de escolta (AESC). No gráfico 4, podemos ver uma análise às missões TEVS e AESC do Alouette III, ao longo de 1973, revelando que o número de acções de evacuação diminuiu, mas que as acções de escolta aumentaram de forma clara, confirmando o que foi dito anteriormente[20].

Gráfico 5 – Exploração operacional, em 1973

Por último, podemos analisar a exploração operacional das várias aeronaves da ZACVG, através do gráfico 5. O efeito do míssil é evidente, principalmente, nos aviões de hélice e menos significativo no Alouette III e no Fiat G.91. O caça italiano é mesmo o único meio aéreo que aumenta a sua actividade operacional ao longo do ano em análise. No saldo final, todavia, a exploração operacional do grupo operacional ressente-se com o míssil ao longo do ano, ficando sempre abaixo dos níveis de Março de 1973.

 

6. A saída de Spínola

Apesar do agravamento da situação militar, principalmente durante a crise militar de Guidage, Guileje e Gadamael, o regime político em Lisboa nunca expressou qualquer interesse em negociar a descolonização com o PAIGC, apostando na manutenção da guerra e no reforço da capacidade militar das forças no terreno. O primeiro alerta quanto à gravidade da situação é dado por Spínola, a 22 de Maio de 1973, quando escreve uma carta ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), general Costa Gomes, e ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, pedindo um reforço de meios para a Guiné “não tanto em ordem à obtenção do sucesso militar, mas tão-somente à prevenção de um colapso a prazo mais dilatado”[21]. Spínola alerta Costa Gomes e Silva Cunha para a possibilidade de um colapso militar na Guiné, o que provoca grande preocupação em Lisboa. É então decidido enviar o CEMGFA à colónia para se inteirar da situação[22]. Costa Gomes desloca-se à Guiné, a 6 de Junho, e fala com os diversos sectores militares para diagnosticar a situação. No fim da visita, a 8 de Junho, preside a uma reunião no quartel-general em Bissau, com a presença de Spínola e dos principais comandantes militares no território. Durante a reunião, os oficiais presentes defendem que a situação militar exige um retraimento do dispositivo que evite o aniquilamento das guarnições de fronteira e concentre meios na zona mais interior da província de forma a “ganhar tempo e consolidar um reduto final que “in extremis” ainda possa permitir uma solução política do conflito”[23]. Outra preocupação manifestada na reunião é a possibilidade da guerrilha usar meios aéreos e Spínola alerta para a “extrema gravidade que se revestirá um ataque aéreo a Bissau, dada a vulnerabilidade dos órgãos essenciais de apoio logístico”[24]. Face a esta análise, Spínola salienta a necessidade urgente de novos meios de combate na Guiné capazes de contrabalançar o crescente poderio militar do PAIGC, mas recebe de Costa Gomes a resposta, de que não é possível reforçar o teatro de operações com os pedidos feitos por Spínola, mas que concorda com a remodelação do dispositivo no sentido da retracção das unidades de fronteira[25].

A impossibilidade de fornecer novos meios de combate e a alteração no dispositivo levam Spínola a pedir ao Governo a sua substituição na Guiné, o que só aconteceria em Setembro de 1973, com a chegada a Bissau do general Bettencourt Rodrigues. É já com Bettencourt Rodrigues que as forças portuguesas na colónia recebem algum reforço militar em homens, material antiaéreo obsoleto e um navio patrulha, mas nada que permita aumentar substancialmente o potencial de combate na Guiné[26]. No entanto, o Governo de Marcelo Caetano vai preparando secretamente uma série de aquisições militares que passam essencialmente pela compra de novos aviões de combate e de transporte para a Força Aérea e de mísseis antiaéreos para o Exército, além de material de Artilharia. Para isso, efectua um empréstimo considerável junto da República da África do Sul (RAS), o grande aliado que Portugal tem na África austral.

 

7. O apoio sul-africano

Os contactos com os sul-africanos já tinham vários anos. Na verdade, desde 1972 que o Ministério da Defesa português discutia com o seu congénere sul-africano, a possibilidade de um empréstimo considerável da ordem dos 150-160 milhões de rands para a compra de material militar destinado ao Exército e à Força Aérea[27]. No entanto, as negociações para este grande empréstimo só começam no final de Agosto de 1973, em Pretória, sendo concluídas no final do ano. Finalmente, a 8 de Março de 1974, é assinado um acordo de empréstimo de 150 milhões de rands (6 milhões de contos) entre Portugal e a África do Sul, para a compra de material de guerra, em prestações mensais de 5 milhões de rands[28]. É o dinheiro de Pretória que permite a Lisboa obter os novos meios de defesa para a Guiné. Silva Cunha, que agora é ministro da Defesa, envia, a 4 de Março, ao seu homólogo sul-africano, uma lista com uma série de material de guerra que Portugal pretendia obter ao abrigo do empréstimo sul-africano. A lista é longa, mas estamos a falar, no essencial, de material de artilharia, munições, sistemas de defesa antiaérea e caças supersónicos Mirage, além de aviões de transporte e de observação[29].

Estas novas aquisições entusiasmam Bettencourt Rodrigues que, no início de Março de 1974, visita Silva Cunha, em Lisboa, sendo informado pelo ministro dos planos de rearmamento das forças armadas. Depois de regressar a Bissau, Bettencourt Rodrigues escreve a Silva Cunha dando conta que tinha ficado positivamente surpreendido “com o esforço feito no sector do rearmamento e reequipamento das forças armadas” e que esperava obviamente que os novos equipamentos chegassem à Guiné o mais breve possível para lhes dar uso na próxima época[30]. Esta carta mostra que a intenção de Bettencourt Rodrigues era obviamente continuar a guerra com um reforço do poder militar português através de novos armamentos.

 

8. Os contactos de Londres

Sensivelmente, na mesma altura, em finais de Março, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, envia a Londres um diplomata português, José Manuel Villas-Boas, para encetar contactos com uma delegação do PAIGC e oferecer a independência política da Guiné, todavia, sem estabelecer um calendário. Este contacto, altamente secreto, visava sobretudo obter um cessar-fogo na Guiné e abrir caminho para a independência, que viria numa fase posterior. Depois de um primeiro encontro sem grandes desenvolvimentos, foi marcado um segundo, para Maio de 1974, que nunca chegou a ter lugar devido à Revolução de Abril[31]. Até hoje, ainda não se sabe até que ponto Marcello Caetano tinha conhecimento desta iniciativa, pois não lhe faz qualquer referência nas suas memórias. João Hall Themido, que na altura era embaixador em Washington, conta, nas suas memórias, que Caetano limitou-se a não proibir esse encontro, transferindo todas as responsabilidades para Rui Patrício[32]. Seja como for, não se percebe qual a verdadeira intenção de enviar Villas-Boas a Londres, quando o Governo português tentava desesperadamente reforçar o seu poder militar na Guiné e nas restantes colónias com a aquisição de novos armamentos. O próprio Rui Patrício envolve-se nas negociações para a compra dos Mirage, pressionando o Governo francês a vender os caças sem restrições, pois Paris não queria autorizar o estacionamento destes aviões na Guiné[33]. Pressiona também Washington para vender mísseis terra-ar portáteis para serem usados na Guiné[34]. Por outro lado, a longa lista de material de guerra que Silva Cunha envia ao seu colega sul-africano, em Março de 1974, para ser financiada pelo empréstimo de Pretória, não indica que o Governo português estivesse particularmente interessado em negociar a paz. O ministro do Ultramar, Baltazar Rebelo de Sousa, autoriza na Guiné, em Janeiro de 1974, contactos exploratórios com o Senegal de forma a intermediar um encontro com Luís Cabral do PAIGC, mas sem qualquer intenção de negociar a descolonização[35]. Sendo assim, é lícito concluir que a opção de Marcello Caetano em relação ao Ultramar foi sempre a solução militar e que os contactos de Londres não passaram de uma manobra dilatória para ganhar algum tempo, enquanto não chegavam as novas armas. Só que o rumo da história de Portugal e das colónias africanas estava prestes a mudar às mãos dos capitães de Abril, muitos deles ex-combatentes na Guiné. Cansados da guerra e da falta de soluções políticas, este movimento de jovens oficiais transformou-se, rapidamente, num movimento militar de contestação ao Governo levando a cabo o golpe militar de 25 de Abril[36].

 

9. Conclusões

Em conclusão podemos salientar alguns aspectos que parecem ser de particular interesse no impacto que os mísseis terra-ar tiveram na guerra da Guiné.

Em primeiro lugar, foi durante a guerra da Guiné que, pela primeira vez, uma força de guerrilha usou este novo tipo de arma. No Vietname, de 1972 a 1973, este tipo de míssil só tinha sido usado pelas forças regulares norte-vietnamitas, e não pelos guerrilheiros vietcongues. Depois da Guiné, estes mísseis aparecem nas mãos de forças irregulares na Europa, no Médio Oriente, América Latina, também em África e em toda a Ásia. A Guiné, no entanto, representou o primeiro teste.

Em segundo lugar, a guerra na Guiné também representou o primeiro uso em combate de uma nova versão do míssil Strela, o Strela-2M, conhecido na OTAN como SA-7B “GRAIL Mod. 1” As forças ocidentais nunca antes tinham visto esta versão em combate e tiveram assim a oportunidade de analisar o míssil a partir de fragmentos recolhidos na Guiné.

Em terceiro lugar, a reacção da Força Aérea Portuguesa foi semelhante à da Força Aérea americana (USAF) e sul-vietnamita, no Sudeste Asiático. Implementou rapidamente várias contramedidas que reduziram a eficácia do míssil.

Em quarto lugar, a reacção da Força Aérea reduziu o impacto táctico da nova arma. Embora surpreendidos inicialmente, os pilotos conseguiram contornar a ameaça antiaérea e recuperar o controlo sobre a generalidade das acções de apoio que prestavam às forças terrestres.

Em quinto lugar, apesar do agravamento da situação militar, o regime político em Lisboa nunca expressou qualquer interesse em negociar a descolonização com o PAIGC, apostando na manutenção da guerra e no reforço da capacidade militar das forças portuguesas. Para isso, serviu-se do apoio sul-africano que o regime de Pretória dava a Portugal para a manutenção da guerra e valendo-se de um empréstimo considerável tentou reequipar as forças armadas.

No entanto, o falhanço em negociar uma solução política contribuiu para a Revolução de Abril e para o golpe militar que mudaria profundamente a situação política no país e nas colónias.

 

Bibliografia

Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Lisboa, Edições o Jornal, 1984.

Cunha, Silva, O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril, Coimbra, Atlântida Editora, 1977.

Lemos, Mário Matos e, O 25 de abril, uma síntese, uma perspectiva, Lisboa, Editorial Notícias,1986.

Matos, José, A história secreta dos Mirage portugueses, 2ª parte, Revista Mais Alto n.º 401, 2013.

Matos, José, La psychose des MiGs dans la guerre de Guinée, Airmagazine n. º 61, 2014.

Spínola, António, País Sem Rumo, Editorial SCIRE, 1978.

Themido, João Hall, Dez anos em Washington 1971-1981, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995.

Villas-Boas, José Manuel, Caderno de Memórias, Lisboa, Editora Temas e Debates, 2003.

 

Arquivos consultados

Arquivo da Defesa Nacional (ADN)

Air Force Historical Research Agency (AFHRA)

Arquivo Histórico-Diplomático (AHD)

Arquivo Histórico-Militar (AHM)

Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT)


 


[1] Informação n.º 218/73-DSInf2 da Delegação da Guiné da DGS, Assunto: Actividade do PAIGC, 3 de Abril de 1973, ANTT, Arquivos da PIDE, Processo 641/61 PAIGC, pasta 9, fls. 102/104.

[2]  Ibidem.

[3]  Relatório sobre a situação no Ultramar nº4/73, CTI Guiné, Anexo A, ADN SGDN/1690.

[4]  Informação n.º 247/73-DSInf2 da Delegação da Guiné da DGS, Assunto: Rep. Guiné – Situação do PAIGC, 9 de Abril de 1973, ANTT, Arquivos da PIDE, Processo 641/61 PAIGC, pasta 7, fls. 190/192.

[5]  Informação Suplementar do Secretariado Geral da Defesa Nacional, Assunto: União Soviética: Míssil Terra-Ar individual GRAIL (SA-7), Fonte: DGS, 9 de Abril de 1973, Lisboa, ADN SGDN/5681/7.

[6]  Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Lisboa, Edições o Jornal, 1984, pp. 433-444.

[7]  Informação n.º 1387/RB c/anexo da 2ª Repartição do Secretariado Geral da Defesa Nacional para o Estado-Maior do Exército, Assunto: Míssil Terra-Ar, 4 de Junho de 1973, Lisboa, ADN, SGDN/5681/7.

[8]  Informação n.º 1387/RB c/anexo da 2ª Repartição do Secretariado Geral da Defesa Nacional para o Estado-Maior do Exército, Assunto: Míssil Terra-Ar, 4 de Junho de 1973, Lisboa, ADN, SGDN/5681/7.

[9]  Manual ST-CS-14-232-72, Dezembro de 1972, Missile Intelligence Agency (MIA), ADN, SGDN/5681/7.

[10]  Defense Intelligence Agency, teletype message, 111808Z SEP 73, to Defense Attache Office, Lisbon, 11 de Setembro de 1973, ADN SGDN 5681/7.

[11]  KBM Kolomna Strela-2/-2M (SA-7 ‘Grail’) Man-Portable Anti-Aircraft Missile System in Jane’s Electro-Optic Systems 2011, 19 Janeiro de 2011.

[12]  New N. Viet Missile Causes Changes in U.S. Pilots’ Tactics” (The Washington Post, Times Herald, 15 July 1972, A12).

[13]  Oral History Interview of General John W. Vogt, Jr., by Claude G. Morita, Seventh Air Force Historian, 29 November 1973, entitled “Implications of Modern Air Power in a Limited War,” typed transcript, in USAF Collection, AFHRA.

[14]  Relatório de interrogatório nº 41/73 anexo à informação 306/73-DSInf 2 da Delegação da Guiné da DGS, 1 de Maio de 1973, ANTT, Arquivos da PIDE, Processo 332-CI (2), pasta 5, fls. 58/62.

[15]  Relatório Imediato nº 5641/73/DI/3/SC da DGS sobre o míssil solo-ar Strella-2, 31 de Outubro de 1973, ADN/F3/1/1/1.

[16]  Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 14, 15, 16 e 17/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/SSR.002/87.

[17]  Directiva 20/73 do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Bissau, 29 de Maio de 1973, AHM/DIV/2/4/228/2.

[18]  SITREP circunstanciados do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/SSR.002/87 e 88.

[19]  Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 18/73 a 22/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/88.

[20]  SITREP circunstanciados do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/SSR.002/87 e 88.

[21]  Spínola, António, País Sem Rumo, Editorial SCIRE, 1978, p. 56.

[22]  Cunha, Silva, O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril, Coimbra, Atlântida Editora, 1977, p. 53.

[23]  Acta da reunião de comandos de 8/6/73, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Processo n.º 2202, Pasta A, ADN F3/17/34/4.

[24]  Ibidem.

[25]  Ibidem.

[26]  Estudo do CCFAG sobre a área do Boé, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Processo n.º 2202, Pasta A, ADN F3/17/34/4.

[27]  Informação nº 305/72 do Secretariado Geral da Defesa Nacional, Assunto: Lista de materiais a apresentar à RAS, 19 de Agosto de 1972, ADN F3/25/58/21.

[28]  Memorial sobre o acordo do empréstimo de 150 milhões de rands firmados com a R.A.S., Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), 18 de Setembro de 1975, ADN F3/20/48/64.

[29]  Carta do Ministro da Defesa Nacional para o Ministro da Defesa da República da África do Sul, Lisboa, 4 de Março de 1974, AHD, PAA 1140.

[30]  Carta do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné para o Ministro da Defesa Nacional, 12 de Março de 1974, ADN/F1/29/7.

[31]  Villas-Boas, José Manuel, Caderno de Memórias, Lisboa, Editora Temas e Debates, 2003, pp. 100-106.

[32]  Themido, João Hall, Dez anos em Washington 1971-1981, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995, p. 151.

[33]  Matos, José, A história secreta dos Mirage portugueses, 2ª parte, Revista Mais Alto n.º 401, 2013, p. 29.

[34]  Matos, José, La psychose des MiGs dans la guerre de Guinée, Airmagazine n.º 61, 2014, pp. 70-71.

[35]  Ver Operação Pirada ADN/F3/17/35/12.

[36]  Lemos, Mário Matos e, O 25 de abril, uma síntese, uma perspectiva, Lisboa, Editorial Notícias, 1986, pp. 61-91.

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2015-01-28
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Coronel da Força Aérea dos EUA (na reserva)

Dr. Matthew_M_Hurley

PhD. Coronel na reserva da Força Aérea norte-americana (USAF). Foi Chefe de Divisão da Secção da USAF no Pentágono, em Washington DC. Durante sua carreira militar esteve colocado nos Estados Unidos, Europa, Ásia, Médio Oriente e África, e exerceu também funções de apoio a operações na Bósnia e na Somália. Formou-se com distinção na Academia da Força Aérea dos EUA e no Air Command and Staff College da mesma força. Em 2009, fez o seu doutoramento em História na Universidade Estatal do Ohio. A sua dissertação analisou as operações da Força Aérea Portuguesa durante a guerra colonial, na Guiné. Para além da guerra na Guiné, tem também trabalhos publicados sobre operações da Força Aérea de Israel, a primeira Guer

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José Matos

Investigador independente em História Militar tem feito investigação sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial portuguesa, principalmente na Guiné. É colaborador regular em revistas europeias de aviação militar e de temas navais. Colaborou no livro “A Força Aérea no Fim do Império” (Âncora Editora, 2018).

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by COM Armando Dias Correia