Prolegómenos
Ao longo dos tempos, o Homem e particularmente as sociedades politicamente organizadas, foram configurando e reconfigurando teorizações que permitiram ou que permitissem chegar a conclusões, relativamente às vantagens de que poderia beneficiar, se controlasse e/ou dominasse determinada parcela daquilo a que poderemos chamar fontes estruturais do Poder: a Terra, o Mar e o Ar.
De facto, sobretudo no patamar de sistematização do pensamento geopolítico, onde se integram as suas perspectivas globais, diferentes teorizadores, com o auxílio, sobretudo, da Geografia, da História, da Ciência Política, da Antropologia e das Relações Internacionais, sustentaram acervo teórico, justificativo de acção, com base na relevância atribuída aos espaços terrestre, marítimo e aéreo, quer por si só, quer de forma conjugada.
Também parece claro e objectivo, que as diferentes reflexões efectuadas, encontravam as suas principais amarras em análises e posteriores sínteses, elaboradas de forma mais ou menos aprofundada, de factores, dos quais podemos destacar o físico e, neste domínio, releva-se a ideia do grande território indivisível, o humano, o dos recursos naturais e o da circulação, nomeadamente o sub-factor das comunicações de transporte, dado o tempo histórico.
Com o articulado que se irá seguir, pretende-se apenas verificar da existência de pensamento que busca nas teorizações clássicas, fonte de inspiração para aplicabilidade aos «céus inóspitos», por um lado e, por outro, relembrar, porque já o escrevemos, da existência de algumas linhas de contacto e de fricção, nessa eventual aplicação.
Neste alinhavar de ideias iniciais, por relacionáveis, diríamos que a temática se apresenta pertinente, mais que não seja, por verificarmos que das fontes estruturais de Poder enunciadas, o ser humano politicamente organizado, não inventou nenhuma, procurando assim, controlá-las e delas retirar o maior partido; situação aplicável ao espaço exterior, certamente1.
Finalizamos esta pequena nótula com referência ao facto inquestionável da já significativa e crescente importância do «espaço exterior», quer do ponto de vista civil, quer do militar, até pela aplicação de tecnologia dual, induzindo fortes possibilidades, nem que fosse por conhecimento da natureza humana, daquele território se configurar como mais um tabuleiro de futura convivência competitiva e conflitual; a complexidade e a diversidade das interacções existentes entre os diferentes agentes do Sistema Internacional, conjugadas com a característica antagonista de muitas delas, ajudam certamente a construir um cenário que isso prefigura.
Enquadramento
“Adapting a historical geopolitical maxim to space, one might observe that those who control low orbit control near earth space, those who control near earth space dominate Earth, and those who control Earth determine the destiny of humankind” (Nederveen, 2002, p.1).
A ideia de falarmos do espaço exterior, na lógica relacionável com a Geopolítica, já permitiu afirmações como a que se encontra em epígrafe, e que constituiu o que poderíamos apelidar de corolário a propósito do modelo de Dolman (2002).
A designada máxima geopolítica histórica é da autoria do britânico Mackinder e, assim, a ponte com a geopolítica clássica está construída e sobre ela já falaram vários autores, com particular destaque para o norte-americano Everett Dolman (2002), que conceptualizou as quatro regiões astropolíticas: o Espaço Solar, o Espaço Lunar, o Espaço Terrestre e a Terra (Dolman, 2002) (Dias 2006 e 2010); sobre as concepções de Mackinder, iremos abordar apenas a de 1919, dada a maior semelhança com o silogismo apresentado, “Who rules East Europe commands the Heartland. Who rules the Heartland commands the World Island. Who rules the World Island commands the World” (Dolman, 2002, p.41).
Antes de avançarmos, parece-nos importante acautelar, em primeiro lugar, que quando falamos de geopolítica, estamos a referir, muito simplesmente, aquela ciência que estuda determinados factores2, uns mais constantes, outros com maior índice de variabilidade, num trabalho utilitário para o desenvolvimento e acção da ciência política, consubstanciados, muitas vezes, em determinados modelos de dinâmica de Poder. E a ciência política tem um objecto, que na lógica da sua autonomização como ciência, foi evoluindo, num percurso iniciado no Poder, passando pelo Estado e pairando nesta altura sobre os Sistemas Políticos, que é o mesmo que dizer do conjunto Comunidades Políticas, Regimes Políticos e Autoridades Políticas3.
Em segundo lugar, parece-nos imprescindível relembrar que o estudo daqueles factores (ex: físico, recursos naturais, circulação, tecnológico), na procura de uma análise geopolítica, poderá ser efectuado utilizando metodologia diversa, cujo racional pode ser encontrado, em grande medida, na geografia política.
Por último, neste enquadramento, não podem ser votadas ao ostracismo as reticências existentes sobre a própria aplicação do termo «geopolítica» ao espaço exterior. “O termo integra a componente «geo», ou seja, «terra», parecendo desajustada a sua utilização, quando se fala do «Espaço Exterior». Esta questão remete-nos logo, para o termo que vai aparecendo de «vez em quando» e que não é mais que uma adaptação: astropolítica.
No entanto, existem opiniões, sobretudo de geógrafos, que vão no sentido da aplicação, ainda, da componente «geo», visto que, o prisma de análise adoptado respeita aos efeitos que terá a utilização, controlo ou domínio de territórios Espaciais na vida da Terra. O controlo posicional de cada um de nós que utiliza telemóvel e/ou GPS é exemplo disto (Dias, 2010, p. 27 e 28).
Halford John Mackinder (1861-1947)
Nota Introdutória
O historiador, biólogo, geógrafo e político, na justa medida em que chegou a ser deputado por Glasgow para o parlamento britânico, Halford Mackinder ficou mundialmente conhecido, pelas suas concepções globais para o domínio da grande massa terrestre que é a Eurásia, à custa inicialmente do controlo de uma parcela de território, com determinadas características, esmagadoramente de natureza continental, denominada de «Pivot Geográfico da História»; era então tipificada pela difícil acessibilidade, que deveria ser associada à extensão, e pelas rudes condições climatéricas, constituindo-se assim como uma excelente base de Poder, a partir da qual, a projecção e expansão seriam realidade.
Dada a natureza desta reflexão e a sua finalidade, que não é a de expor detalhadamente o pensamento do professor britânico de geografia, importa sintetizar, para posteriormente, apenas explicitar a visão da projecção cartográfica do seu pensamento, por nós seleccionada, que as reflexões foram ditadas ou guiadas pelos elementos que a seguir apontamos:
- a dialéctica mar-terra, que o leva a comparar e a confrontar as epirocrassias com as talassocracias, associando parâmetros da base objectiva do Poder (recursos disponíveis, comércio, geografia física), da base relativa do Poder (capacidade de projecção/intervenção), bem como do potencial existente na lógica da defesa de determinados territórios;
- o entendimento da importância da grande massa terrestre dominante que é a Eurásia, para o domínio do mundo e que depois sofreu o acréscimo africano, denominando-se Ilha Mundial; por outro lado, a verificação de entidades espaciais importantes nesse território gigantesco que, desde que controlados, eram facilitadores de atitudes hegemónicas no primeiro; eram o caso do Pivot e das suas adaptações - o Heartland;
- o entendimento de que o aparecimento do caminho-de-ferro iria fragilizar, senão contribuir decisivamente, para o fim do domínio dos poderes marítimos sobre os oponentes terrestres;
- cumulativamente, o crescimento do poder naval alemão, na medida em que estava aberto o caminho para que uma potência terrestre, cujo sub-factor posição relevava, dada a centralidade em contexto europeu, ganhasse capacidades para ir na busca dos mares e rivalizar com o poder marítimo britânico; este elemento estaria subentendido também no seu pensamento geral, preconizando que seria preferível consentir que uma potência continental assumisse de facto, o controlo da «terra», desde que não possuísse condições que lhe viessem permitir a busca dos mares, com sucesso;
- as linhas de comunicações marítimas estabelecidas pela Inglaterra, por altura da guerra dos Boers, nomeadamente a sua extensão, em cerca de 6.000 milhas, que lhe permitiram apoiar do ponto de vista logístico o esforço de guerra no espaço africano;
- o esforço russo, com os mesmos propósitos, por altura do conflito russo-japonês, numa extensão idêntica, mas desta feita por Terra, em território asiático;
- algum peso determinista de base, pese embora reconheça a capacidade criadora do Homem;
- o contexto histórico e a evolução dos acontecimentos, que induziu não só à teoria, mas também às reformulações conhecidas, finalizando na teorização de 1943 e que é por nós conhecida como a do Midland Ocean; adiante-se que esta, anunciada em 1943, antecedeu a notoriedade que o britânico começou a atingir nos países de língua inglesa e que ocorreu nos idos de 1944.
A 2ª Teoria (Heartland e Ilha Mundial)
A teoria do «Heartland» e da Ilha «Mundial», anunciada em 1919 e incluída no livro «Democratic Ideals and Reality», evoluiu, por diferentes razões, da apresentada em 1904: assim, o Pivot Geográfico da História alarga-se, em particular para Oeste, passando a designar-se por «Heartland», pese embora o termo já tivesse sido usado, em 1915, por James Fairgrieve, no título «Geography and the World Power».
A grande massa continental dominante que era a Eurásia e que seria importante controlar, a partir, em primeiro lugar do domínio do «Pivot», foi acrescida de África e na concepção, esse vasto território foi baptizado de «Ilha Mundial».
A «Terra-Coração» constituía assim um território ainda inacessível à navegação, dado que essa possibilidade não existia nos rios Ob’Irtys, Jenissej e Lena, “desaguantes” no Norte asiático, nem para Sudoeste os veios de água eram livres, visto que morriam em mares interiores, tal como o Cáspio e o Aral. Por outro lado, no seu interior, mantinha características de mobilidade e ocupava uma posição central em território eurasiático.
O território em questão era então definido pelo espaço que se estendia desde o “Árctico às zonas tórridas do Baluchistão e da Pérsia e que corresponde às regiões árctica e continental que, ocupando metade da Ásia e ¼ da Europa, apresentam terreno contínuo a Norte e no centro do Continente” (IAEM, 1982, p. 48). Importa ainda dizer, por racional de aplicação do ponto de vista do pensamento, no que referiremos relativamente ao espaço exterior, que nesta vasta área estariam também incluídos os mares Negro e Báltico, visto que estes podiam ser fechados pelo «poder terrestre» (Dias, 2005).
Assim, poderemos ainda objectivar a região em causa, como aquela que incluiria o “Mar Báltico, o Rio Danúbio (médio e baixo navegáveis), o Mar Negro, a Ásia Menor, a Arménia, a Pérsia, o Tibete, a Mongólia e o conjunto Prússia, Áustria, Hungria e Rússia” (Dias, 2005, p. 113).
A Ilha Mundial, que possuía como único elemento de ruptura o deserto do Saara, dizia respeito a cerca de 56% da área terrestre do mundo e incluía cerca de 84% da população; por outras palavras estamos a falar de 2/12 da superfície do globo, sendo 9/12 constituídos pela grande massa líquida circundante e 1/12 por terras emersas (Dias, 2005, p. 110).
Obviamente, porque estamos a falar de geopolítica, a 2ª teorização do Mackinder (figura 1) afigurava-se pertinente, na justa medida em que a afirmação sobre a importância da Europa de Leste e inerente controlo, para o domínio do Heartland, pairava sobre o ambiente internacional de 1919 e a lógica do Tratado de Versalhes, consubstanciada na necessidade de criação de estados-tampão que separassem a Alemanha da Rússia.
Reitera-se então o silogismo: “Who rules East Europe commands the Heartland. Who rules the Heartland commands the World Island. Who rules the World Island commands the World” (Dolman, 2002, p.41).
Figura 1 - O Mundo de Mackinder: 1919
Fonte: (Cohen, 2003 p. 15)
Everett Dolman (2002)
Dolman, na sua obra datada de 2002 «Astropolitik: Classical Geopolitics in the Space Age», propõe-nos um modelo com 4 regiões astropolíticas (figura 2), sustentado não só nas propriedades físicas do espaço exterior e na astrodinâmica, mas também naquilo que corporizaria um estudo dos factores físico, circulação e recursos naturais, com a aplicabilidade que é hoje possível efectuar.
Figura 2 - O Modelo de Everett Dolman
Fonte: (Dolman, 2002, p. 69)
As regiões são a da Terra, do Espaço Terrestre, do Espaço Lunar e do Espaço Solar.
A região da Terra é limitada superiormente pela designada primeira órbita viável (cerca dos 150km de altitude) e inclui, obviamente a atmosfera terrestre. É, no modelo, um espaço de passagem. De facto, tudo o que será lançado da Terra e tudo o que seja enviado para a Terra, passará por este território.
Por outro lado, será sempre um centro importante, para não ser decisivo, de comando, controlo e comunicações, para além de nela se desenvolverem actividades de excepcional significado, como as de lançamento, de manutenção, de pesquisa e de investigação, entre outras (Dias, 2006).
O Espaço Terrestre encontra limite inferior na primeira órbita viável e limite superior na altitude aproximada de 36.000km, as designadas órbitas geoestacionárias, onde tudo parece fixo, e assim de fácil seguimento por parte das antenas localizadas em Terra: “disputadas para a localização de satélites meteorológicos e de comunicações globais, sendo hoje as mais lucrativas do ponto de vista comercial” (Dias, 2010, p. 16). “Sobre estes caminhos…importa apontar…que a estabilidade orbital é característica de significativa, senão de primordial importância, dado que, as naves espaciais, presentes e futuras, aí não consomem, praticamente, combustível e, já agora dizer, que quanto maiores as altitudes, maior a estabilidade, pela mitigação de efeitos devidos à densidade atmosférica e a flutuações gravitacionais (Dolman, 2002, p. 65)” (Dias, 2010, p. 18).
Logicamente, que neste espaço se integram também os «trilhos» de baixa altitude (até 800km de altitude) e os de média altitude (até aos 35.000km). Se nos primeiros, podemos encontrar por exemplo, a Estação Espacial Internacional, meios de reconhecimento terrestre, incluindo satélites meteorológicos4, nos segundos os satélites de navegação marcam presença efectiva, tal é o exemplo da rede GPS5 e será do futuro «Galileo», quando implementado na totalidade6.
O Espaço Lunar é aquele que se situa para além dos 36.000km de latitude e deve a designação ao facto de a Lua ser o único corpo visível, pelo menos, de forma clara e evidente. Terá limite superior na última órbita lunar (Dias, 2006).
A Lua localizada no perigeu a cerca de 350.000km de altitude e no apogeu a cerca de 405.000km constitui-se, pelo que se conhece já hoje, como uma enorme fonte de recursos. É conhecida a sua riqueza em ferro, cálcio, silício, oxigénio e titânio e existem fortes indícios ou ainda não se esgotou a esperança de encontrar água. Relevem-se ainda as opiniões existentes de que no regolito lunar está a solução dos problemas energéticos do planeta azul7, para além de pensamento existente relativo à implementação de bases lunares.
O Espaço Solar estende-se para a imensidão a partir da última órbita lunar e sofrendo, cada vez com maior intensidade o efeito gravitacional do Sol. De acordo com Dolman, poderá configurar futuro território a preencher, na lógica de um esgotamento terrestre de espaço e/ou de recursos (Dolman, 2002) (Dias, 2006), realçando-se, no sentido da aplicabilidade da ideia de um «Heartland», a vastidão de recursos existentes.
O modelo apresentado também se sustentou e, em simultâneo, abriu caminho para a comparação com o autor referenciado da designada geopolítica clássica, ao reflectir sobre constantes/variáveis como as «cinturas de Van Allen», os «Cinco Pontos de Equilíbrio de Lagrange», os «Poços de Gravidade» e outros, que bem poderiam integrar-se na análise factores como o físico, particularmente no que se refere à orografia ou à circulação, ao estendermos, por exemplo, o entendimento de ponto focal aos L4 e L5 ou à lógica selecção do trilho orbital.
Aliás, as referências ao estudo das órbitas e às «órbitas de Transferência de Hohmann» (Dias, 2006) (Dolman, 2002) também se enquadram no estudo dos factores físico e circulação e os apontamentos relativos às riquezas pululantes no espaço exterior e nalguns dos seus corpos, «atiram-nos para uma análise do factor «recursos naturais», elementos utilizados em muitas das análises de natureza geopolítica.
Halford Mackinder e Everett Dolman - Contacto ou Diferenciação
O articulado que se propõe irá, neste parágrafo, de encontro à finalidade proposta, isto é, encontrar confluências ou diferenças entre Mackinder, encarado como um dos representantes da designada geopolítica clássica e a projecção efectuada, para o espaço exterior, da autoria de Dolman. Este exercício já por nós foi efectuado, uma vez (Dias, 2006); apesar disto, acautele-se de novo a temporalidade histórica, com todas as suas inerências, incluindo a tecnológica.
Assim, como linhas de contacto, parece evidente mencionar: a existência de um modelo de natureza global, prefigurando determinadas regiões e, na medida do possível, tipificando-as; a utilização de uma fonte estrutural do Poder, no estabelecimento da equação de Poder: o controlo do «Espaço Exterior», significa o domínio do mundo; o Espaço Terrestre como território importante para aceder a um «Heartland», plasmado na vastidão do Espaço Solar e, por interpretação, incluindo componentes do Espaço Lunar (ex: Lua e seus recursos). No entanto, isto não aparece com a clareza com que se percepciona em Mackinder e na Europa de Leste, assim como o critério de selecção dessa «área espacial» seja substancialmente diferente, ou pelo menos se limite à lógica dos recursos naturais, para além das óbvias dificuldades de delimitação.
Como elementos diferenciadores, onde iremos incluir os de inaplicabilidade, poderemos descortinar: inexistência da lógica de confronto entre poderes dominantes de fontes estruturais de Poder; critérios de selecção do Heartland; a área do Heartland fazia parte integrante dos domínios territoriais de um agente ou actor do Sistema Internacional; “a lógica da importância assumida pela Europa de Leste, materializada na necessária separação da Alemanha da Rússia e as próprias características da área, incluindo a inacessibilidade ao Poder marítimo” (Dias, 2006, p. 680); Mackinder revelou na teoria a ideia da necessidade de evitar ou obviar a existência de um Poder terrestre, que depois criasse condições de ir buscar o controlo do mar, na justa medida em que era britânico, nacionalidade que plasma o poder marítimo à altura. Uma das leituras que se poderá fazer do articulado de Everett Dolman será a de que visualiza o controlo do espaço exterior ou pelo menos, uma posição dominante por parte dos Estados Unidos da América no que a ele respeita, no racional da conservação do Poder que actualmente detém; o acervo teórico de Mackinder foi-se adaptando à realidade dos diferentes momentos históricos, particularmente, aqueles de 1919 e de 1943; a não aplicação, por parte do autor norte-americano de um silogismo, apesar de eventuais tentações que o próprio modelo induz e às quais Nederveen não terá resistido. No que concerne à teorização das regiões astropolíticas, muito do que poderá corporizá-la, ainda se julga encontrar nos campos da especulação, da ficção científica, da imaginação ou quando muito, numa cenarização efectuada com base em indicadores, em tendências e também já em factos8, alguns dos quais procuraremos apontar no parágrafo seguinte.
Considerações Complementares
Embora não sendo matéria nuclear do artigo que se propõe, não poderíamos deixar de opinar que quer eventuais conjecturas, especulações, interpretações do imaginário, quer pensamento mais elaborado, incluindo afirmações como “Quem domina o espaço domina o mundo” (Boniface, 2003, p. 122), sobre a busca do controlo ou do domínio do terreno dominante que é o «espaço exterior», independentemente das razões para tal e dos custos financeiros exorbitantes envolvidos9 (Dias 2006 e 2010), parecem encontrar órbitas para trilhar, materializadas e até delimitadas por diferentes sinais emitidos pelos «terrestres» de agora, alguns dos quais nos atrevemos a identificar:
- a importância crescente da vertente comercial10 na exploração do «espaço exterior»11, associada também a aplicações de natureza não militar, mas na maior parte dos casos, com possibilidade dual (ex: no sector das telecomunicações, o desenvolvimento de plataformas como o SKYNET 5, o SYRACUSE 3, SICRAL, entre outros). Deste ponto de vista, importa também não esquecer as possíveis e quase certas, lógicas de competitividade e até de conflitualidade entre os diferentes agentes/actores envolvidos (Dias, 2006), por um lado, e por outro, entre os sistemas públicos e privados;
- a reconhecida mudança ou evolução da militarização para a armamentização do «espaço exterior», plasmada pela existência de projectos, alguns na fase experimental, respeitantes a sistemas anti-satélite (ex: minas espaciais)12, a armamento laser (ex: Space Based Laser - SBL), a armamento e sistemas utilizando outra tipologia de energia13, entre outros14, como os ponteiros de urânio ou de tungsténio (Dias, 2006, 2010a e 2010b); integram-se também aqui, por conveniência, os esforços desenvolvidos no sentido de se conceberem autênticas naves espaciais, tais são o projecto americano ORION, como o equivalente russo: o CLIPPER;
- a busca se soluções relativas à possibilidade de mineração no solo lunar, como são os projectos SCALAB, RESOLVE e PILOT;
- a existência de doutrina relativa a operações espaciais (Dias, 2006) e o aparecimento de referências ao «espaço exterior», em documentação doutrinária (Dias, 2006), preconizando a obtenção ou preservação de superioridade naquele «território. São também exemplos as publicações norte-americanas «Air Force Transformation Flight Plan»15 (2003), o «Air Force Doctrine Document 2-2.1 - CounterSpace Operations» (2004), que complementa no preconizado na publicação JP 3-14 - «Joint Doctrine for Space Operations», o AFDD 2, «Organization and Employment of Aerospace Forces» ou o AFDD 2-2, «Space Operations»16;
- na actualidade, 125 países encontram-se empenhados ou a desenvolver actividades espaciais ou com elas relacionadas; de acordo com Alexey Arbatov (2009), os países líderes são os EUA e a Rússia; com elevado índice de empenhamento, apontam-se França, China, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, Canadá, Holanda, Bélgica e Espanha; com recente aumento de actividade, identificam-se Índia, Paquistão, Argentina e Egipto;
- em 2009, dos 780 «veículos/objectos» espaciais em órbita e em perfeitas condições de operacionalidade, 425 eram dos EUA, 96 da Rússia e 22 da China (Arbatov, 2009)17;
- a preocupação existente no estabelecimento de enquadramento legal actualizado, indo além do já existente18, sobre a utilização do «espaço exterior»;
- a consideração de o «espaço exterior» se constituir como espaço de batalha no futuro; são exemplos a concepção do cenário, para o ano de 2018, em que o Teatro de Guerra envolvia o «espaço exterior», para um exercício realizado na forma de jogos de guerra em Janeiro de 2001 (Dias, 2006), as conclusões de uma comissão norte-americana, em 2000, chefiada por Donald Rumsfeld, ou mesmo o preconizado por Friedman (2010) relativamente às guerras no espaço19.
Considerações Finais
Mesmo sem uma análise aprofundada, impossível de efectuar num conjunto de letras com estas características, poderá concluir-se da existência de alguns pontos de contacto entre a designada geopolítica clássica e a sua eventual projecção para modelos, que têm no seu «core» a fonte estrutural de Poder que é o «espaço exterior», acautelando as diferenças resultantes do tempo histórico, das quais se relevam aquelas resultantes dos progressos relativos ao factor tecnológico/científico.
Utilizámos o pensamento de Halford Mackinder, por óbvio aproveitamento de Nederveen do silogismo de 1919, decorrendo, por sua vez, das regiões astropolíticas identificadas, sustentadas e trazidas à colação por Everett Dolman, efectuando por si, em simultâneo, uma utilização, quer de Mackinder, quer de Mahan20 (Dolman, 2002), na concepção que se propôs tornar pública. Da reflexão crítica, pudemos descortinar também, no nosso entendimento, elementos importantes de diferenciação, culminando assim a tarefa principal que nos voluntariámos executar.
Por julgadas importantes, tecemos algumas considerações relativas à problemática do «espaço exterior» e à sua utilização. Não parece haver dúvidas, pese embora o longo caminho ainda a trilhar, sobretudo no domínio da evolução tecnológica, que a ida para as alturas do Homem é ponto assente, tal como o são, as sociedades politicamente organizadas de hoje ou os grupos políticos existentes, no racional weberiano e as diferentes, competitivas, conflituais e também cooperativas interacções existentes entre eles.
Por outro lado, pese embora não tenha sido tema aqui tratado, a evolução tecnológica associa-se muito com o mundo empresarial, quer público, quer privado e com eventuais orientações recebidas para o desenvolvimento de determinados projectos, quiçá, considerados para alguns, vitais. Este elemento não pode ser dissociado da problemática da transferência de conhecimento, de grupo para grupo, de empresa para empresa, de Estado para Estado, e para os efeitos globalizantes, por exemplo, das deslocalizações ou dos líderes empresariais de topo, por exemplo, não serem da nacionalidade da casa-mãe da empresa, e outros.
A natureza humana, independentemente da forma como a entendemos (o Homem bom vs o Homem mau), vem obrigando à constituição e ao aparecimento de instituições que, de alguma forma, possam inibir comportamentos e acções de alguns, que prejudiquem outros. Até na lógica aparentemente simples da criação de associações protectoras do consumidor, parece estar, em profundidade, a natureza humana; pretende-se evitar que uns «roubem» outros, obviamente, na procura de um bem-estar superior.
Em tese e acautelando a existência de ficções e de especulações de hoje, o controlo de uma fonte como o «espaço exterior» assegurará enormes vantagens; aquele, para ser obtido obrigará, certamente, a interacções de natureza conflitual, flexibilizando, competitiva e, assim sendo, o emprego da coacção surge provável.
Em suma, porque a Geopolítica trabalha em prol da Ciência Política (relembra-se o afirmado no enquadramento), não deixará de ser, com certa naturalidade, normal, que seja chamada a aconselhar, a ajudar à pronúncia, até porque os factores por ela utilizados, estudados com metodologia seleccionada e apropriada, parecem ter a mesma aplicabilidade de outrora.
Logo se verá…
Bibliografia
ARBATOV,A. 2009. Space Weapons: Science Fiction, Real Threats and Arms Control Opportunities. Research Paper commissioned by the International Comission on Nuclear Non-Proliferation and Disarmament.
BESSA, A.M., PINTO, J. N. 2001. Introdução à Política. Vol. II, Editorial Verbo: Lisboa. ISBN 972-22-2035-7.
BESSA, A.M., DIAS, C.M.M. 2007. O Salto do Tigre: Geopolítica Aplicada. Prefácio: Lisboa. ISBN 978-989-8022-28-8.
BLAZEJEWSKI, K.S. 2008. Space Weaponization and US-China Relations, Strategic Studies Quarterly: 33-55.
BONIFACE, P. 2003. Guerras do Amanhã. Editorial Inquérito: Mem Martins. ISBN 972-670-407-3.
CL. 1982. Dicionário Técnico e Científico Ilustrado. Círculo de Leitores, Formar: Lisboa.
COHEN, S.B. 2003. Geopolitics of the World System. Rowman & Littlefield Publishers, Inc.: New York. ISBN 0-8476-9906-4.
COTARDIÈRE, P., PENOT, JP. 2003. Dicionário de Astronomia e do Espaço. Didáctica Editora: Lisboa. ISBN 972-650-618-2.
COUTO, A.C. 1989. Elementos de Estratégia. Vol. II, Instituto de Altos Estudos Militares: Lisboa.
DIAS, C.M.M. 2005. Geopolítica: Teorização Clássica e Ensinamentos. Prefácio: Lisboa. ISBN 972-8816-74-X.
DIAS, C.M.M. 2006. O Espaço na Guerra Futura, Revista Militar 2453/2454: 663-710. ISSN 0873-7630.
DIAS, C.M.M. 2010a. A Geopolítica e o Espaço Exterior, Prœlium 13: 11-30. ISSN 1645-8826.
DIAS, C.M.M. 2010b. Sobre a Guerra - Política, Estratégia e Táctica. Prefácio: Lisboa. ISBN 978-989-652-069-4.
DCTI (1982). Dicionário Técnico e Científico Ilustrado. Círculo de Leitores: Lisboa.
DOLMAN, E.C. 2002. Astropolitik: Classical Geopolitics in the Space Age. Frank Cass Publishers: Portland. ISBN 0-7146-8197-0.
ED 2004. A Space Policy for the Defense of Europe. Eurodefense. Luxemburgo.
FRIEDMAN, G. 2010. Os Próximos 100 Anos. Livros d’Hoje: Alfragide.
ISBN 978-972-20-3915-4.
GARWIN, R. L. 2003. Space Weapons: Not Yet. Discussion Paper, Pugwash Meeting N. 283: Pugwash Workshop on Preserving the Non-Weaponization of Space, May, Spain.
HQ USAF 2003. Transformation Flight Plan. Headquarters United States Air Force.
KREPON, M., CLARY, C. 2003. Space Assurance or Space Dominance? The Case against Weaponizing Space. The Henry L. Stimson Center, Washington.
MARQUES, A.H.O. 2009. Breve História de Portugal, 7ª Edição, Editorial Presença: Lisboa. ISBN
OLIVEIRA, R.M.1994. Estratégia Aeroespacial, Ciclos de Evolução e Perspectivas Futuras, Estratégia VI: 11-198.
Ó TUATHAIL, G., DALBY, S. 1998. Introduction: Rethinking Geopolitics, Rethinking Geopolitics, Routledge: Londres. 1-15. ISBN 0-415-17250-0.
ROBALO, M., MATA, M. 2005. 50 Grandes Discursos da História. Sílabo: Lisboa. ISBN 972-618-392-8.
STEINGART, G. 2009. O Conflito Global ou a Guerra da Prosperidade. Editorial Presença: Barcarena. ISBN 978-972-23-4140-0.
* Tenente-coronel de Artilharia. Chefe do Departamento de Estudos Pós-Graduados da Academia Militar. Professor dos cursos de mestrado e doutoramento ministrados na Academia Militar.
1 Importa associar, a título de curiosidade, que o Homem criou há relativamente pouco tempo, talvez, outra fonte estrutural de Poder: o ciberespaço.
2 Na sua pureza, em convívio no espaço que é acessível ao Homem. Por enquanto, no que respeita ao espaço exterior, alguma flexibilidade se exige, na aplicação conceptual.
3 No entanto e no fundo, o objecto da ciência política poderá ainda ser traduzido em tudo aquilo que nos levará ao conceito de Poder e aos seus próprios fundamentos. Até os regimes políticos se encontram materializados numa miríade de organizações e de instituições que têm como objecto o poder político, não só na lógica do seu próprio exercício, mas também e muitas vezes sobretudo, da própria legitimação e consequente legitimidade.
4 No dia 11 de Janeiro de 2007, a China lançou um míssil balístico de médio alcance, portador de um rocket e destruiu um satélite meteorológico, à altura já inoperacional, que gravitava numa órbita de baixa altitude - cerca de 800km de altitude (o satélite era apelidado de «Feng Yung 1C»). Parecem existir receios de que o sistema acoplado a um foguete de maior capacidade, possa atingir altitudes ainda maiores.
5 A China tinha (tem?) planos para lançar um sistema satélite tipo GPS, designado por Beidon-2. De 2008 a 2010, os chineses planeiam lançar cerca de 100 satélites (Blazejewski, 2008).
6 Existe ainda uma quarta categoria de órbitas: as muito elípticas. Para algum aprofundamento ver (Dolman, 2002), (Dias, 2006) ou (Dias, 2010).
7 “Relativamente ao combustível, estamos também a falar do segredo das estrelas, ou seja, do hélio 3 que com um neutrão a menos que o hélio 4, se constitui como o combustível ideal para a fusão. A fusão do hélio 3 parece ser mais eficiente que o processo actualmente utilizado para o abastecimento de centrais nucleares,…” (Dias, 2010, p. 22).
8 Pese embora os custos astronómicos envolvidos ou a envolver nalgumas iniciativas.
9 A propósito do Space Based Laser (SBL): “The laser consumes fuel at a rate of some 3kg/MWs, or 9kg/s, and it would need to fire for 1700s at the assumed 3000km range, thus using 15 tons of fuel, at a launch cost for fuel of $150 million per target attacked. At a range of 1000km, the launch cost would be some $16M per target” (Garwin, 2003, p. 5).
10 “The most important set of factors that shape our perceptions of space power relate to the growing commercial importance of space, claims that it constitutes na economic center of gravity (COG), and its emergence as a global unity” (Hays, 2002, p. 8).
11 “No ano de 1999, segundo Pace (2003, p. 58 e 59) a actividade global relacionada com o espaço e sua exploração, que já emprega em todo o mundo, mais de um milhão de pessoas, apresentou lucros de cerca de 100 biliões de dólares, relevando-se como áreas principais de actividade as seguintes: infra-estruturas, comunicações, que é hoje a área em maior crescimento, aplicações espaciais e serviços de apoio. Em todas estas áreas, a competição entre os actores do Sistema Internacional, como EUA, China, Rússia, Ucrânia, França entre outros, é fortíssima e envolve montantes significativos de verbas” (Dias, 2006, p. 700).
12 “Surrey Satellite Tecnology Ltd., a Surrey University Company, is a leader in developing microsatellite technology” (Garwin, 2003).
13 É conhecido o teste efectuado pelos chineses de uma arma de microondas de alta potência, com a finalidade de empastelar as comunicações satélite (Blazejewski, 2008).
14 “No dia 23 de Abril de 2010 (00h52m), foi lançada para o espaço a primeira nave espacial militar não-tripulada; a X-37B, com 8,9m de comprimento e 4,5m de largura, nasceu como projecto em 1999, que terá sido entregue ao Pentágono em Setembro de 2004. Lançada de Cabo Canaveral, num foguete Atlas V, tem como tempo de permanência previsto no espaço, cerca de 9 meses (Dias, 2010b, p. 275 e 276).
15 “Six transformational capabilities the Air Force is pursuing support the Air and Space Superiority distinctive capability from Air Vision 2020. They fall into three major subcategories: Negating Enemy Air Defenses, Space Superiority, and Missile Destruction in Flight” (p.58). No que se refere à superioridade no espaço, duas «transformational capabilities» são apontadas, no sentido de obter e manter a superioridade no espaço: “Protection of vital space assets” e “Denial of an adversary’s access to space services” (p. 61).
16 “It may well be Europe’s intention to continue to be a credible and recognized partner and not be overtaken by emerging space powers such as China, India or Israel” (EA, 2004, p. 1).
17 “Active military-purpose SVs represent about 40% of the overall number of space vehicles” (Arbatov, 2009, p. 3).
18 Exemplos: Declaration of Legal Principles Governing the Activities of States in Exploration and Use of Outer Space; Resolução 55/32 (2001) da Assembleia das Nações Unidas - Prevention of an arms race in outer space.
19 “Com tratados ou sem eles, onde quer que vá a humanidade, vai a guerra. E uma vez que a humanidade irá para o espaço, haverá uma guerra no espaço” (Friedman, 2010, p. 228).
20 A propósito da projecção para o «Espaço Exterior» do acervo de Mahan e reflexão crítica efectuada, ver Dias (2006).